Comunicação enquanto direito: mulheres negras protagonizam iniciativas de comunicação antirracista e estratégica

Contempladas pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, as comunicadoras baianas Midiã e Danubia desenvolvem projetos transformadores

Por Jamile Novaes*

 

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabeleceu o direito à comunicação como fundamental. Desde então, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) vem empenhando esforços para garantir que a comunicação seja efetivamente instituída enquanto um direito. Seja através da emissão ou do acesso às informações, ela é crucial para a elaboração, implementação e acompanhamento de políticas públicas e, mais que isso, para a garantia do acesso aos demais direitos humanos. 

Porém, o que tem se notado ao longo da história do Brasil é uma regulação ineficiente da área. As concessões públicas aos veículos de comunicação permanecem, por décadas, nas mãos dos mesmos conglomerados – pertencentes a algumas poucas famílias ricas e brancas. Uma pesquisa realizada pelo Reuters Institute for the Study of Journalism e divulgada em março de 2021, mostrou que não existem pessoas negras no comando de nenhum grande veículo de comunicação no Brasil, apesar de quase 57% da população brasileira se autodeclarar negra (IBGE, 2019). 

Indo de encontro a essa realidade de invisibilização da população negra na mídia brasileira, várias iniciativas ao longo da história lutaram para mudar o cenário, como a imprensa negra. Mais recentemente o avanço das tecnologias digitais e a popularização do acesso à internet, tem permitido que novos veículos e mídias sigam com a luta histórica deste segmento. Um mapeamento das mídias negras no Brasil foi realizado em 2020 pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (Fopir). Neste cenário, as mulheres negras se destacam: das 65 mídias mapeadas pelo Fopir, 31% eram compostas exclusivamente por mulheres negras. Quanto à sustentabilidade dessas mídias, o estudo revela que a maioria se mantém através de recursos próprios, publicidade, voluntariado e editais. 

E foi justamente através de um edital que as baianas Danubia Santos e Midiã Noelle tiveram a oportunidade de investir em suas formações profissionais e alavancar projetos relacionados à comunicação. Ambas foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Midiã Noelle
Danúbia Santos

 

Danubia é estudante de graduação em Publicidade e Propaganda e, através do financiamento do Programa, pôde voltar à faculdade; participar de cursos e formações online; fazer aulas de inglês e realizar o evento “Julho das Pretas – Arte e Solidariedade”. Seu projeto previa viagens e atividades presenciais que não puderam ser realizadas por conta da pandemia de Covid-19, então parte dos recursos foi destinada para a distribuição de cestas básicas às mães em situação de vulnerabilidade em comunidades periféricas.

Ela contou sobre como o apoio técnico e financeiro do Programa Marielle Franco foi essencial para que conseguisse se capacitar, potencializar suas atuações e ampliar as vozes negras no campo da comunicação: “Dei várias entrevistas, fui um dos destaques na Revista Claudia, fiz muitas lives e até escrevi um livro [Danubia é co-autora do livro ‘Mães Negras – Maternidade Solo e Dororidade’]. É muito satisfatório ser parte disso e me tornar uma referência positiva para a minha favela, principalmente para outras mulheres pretas”, comemora Danubia.

O reconhecimento obtido por meio das suas ações resultou em um convite para coordenar as redes sociais da Central Única das Favelas (Cufa) e a implantação do núcleo Mulheres da Cufa – projeto que visa a reunião de mulheres que protagonizam temas, agendas e ações para a transformação social. Ela explica que “as Mulheres da Cufa vem com o intuito de potencializar ainda mais essas mulheres que muitas vezes estão invisibilizadas em suas áreas para mostrarem suas forças nacionalmente”. As formações do coletivo acontecem através de lives abertas ao público e formações internas entre as participantes.

Danubia entende a comunicação como uma importante ferramenta de engajamento comunitário no contexto das lutas protagonizadas por mulheres negras. “Quando conseguimos mostrar nossas potencialidades, surgem novas oportunidades e uma mulher preta nunca chega só em lugar nenhum. Toda uma comunidade chega junto conosco, pois nós estamos embaixo de tudo e não tem como chegarmos ao topo sozinhas”, afirma.

A jornalista Midiã Noelle também aposta na comunicação como um meio de ampliar as vozes de mulheres negras em suas diversidades e singularidades. Ela explica que é uma importante maneira não só de manifestar percepções, dores e vivências, mas também “as nossas narrativas e as formas possíveis de transformação e de melhoria dos nossos territórios, das nossas vidas, das nossas famílias, dos nossos projetos de vida, das nossas individualidades”.

Foi também pensando no caráter comunitário e numa perspectiva antirracista para a comunicação que Midiã, apoiada pelo Programa Marielle Franco, criou a Commbne, projeto que propõe discutir a comunicação aliada à inovação, raça e etnia. “A Commbne surge com um objetivo, que é promover esse diálogo, esse intercâmbio entre comunicadores e fomentar esse debate da comunicação enquanto direito humano fundamental na perspectiva de gênero e raça numa lógica diaspórica”, explica.

Desde 2020,  a Commbne já atingiu cerca de 500 pessoas com formações em comunicação antirracista e comunicação estratégica pra organizações sociais e atuou em rede com canais como o Notícia Preta, Ong Crioula, Diáspora Black e Afro Resistance. A partir da Commbne e das redes estabelecidas durante o programa de formações, Midiã passou a integrar a Rede de Líderes da Fundação Lemann, Ong que impulsiona pessoas engajadas em resolver questões sociais em todo o território nacional.

Inicialmente, o projeto enviado por Midiã ao Fundo Baobá incluía uma experiência de intercâmbio fora do Brasil para aperfeiçoar as suas habilidades linguísticas e fazer conexões internacionais, o que não foi possível realizar por conta da pandemia de Covid-19. Mesmo com as limitações impostas, Midiã conseguiu ampliar os seus canais de diálogo e as possibilidades de realizar ações em formato virtual: “Eu consegui me abrir para o mundo, realizar formações com diversas organizações que eu fui dialogando e também ampliando meu diálogo com os comunicadores”, relata. 

Apesar das ameaças à liberdade de expressão, apagamentos históricos e culturais e limitação do acesso de pessoas negras à comunicação, Midiã pontua que houve avanços no campo durante as últimas décadas, graças a mulheres negras como: “Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Valdecir Nascimento, Vilma Reis, Nazaré Lima e Fernanda Lopes”. Mulheres  que abriram os caminhos para as comunicadoras negras da atualidade: “Comunicação é fazer o círculo rodar. Quando essas mulheres se movem, a gente se move junto. Quando elas utilizam de ferramentas e métodos de comunicação para disseminar a nossa luta coletiva enquanto população negra, isso também é comunicação”, defende.

 

Planos para o futuro

Após concluir o ciclo de ações propostas para o edital, as comunicadoras já traçam planos para o futuro com perspectiva de expandir suas atuações e continuar desenvolvendo projetos que pautem reflexões sobre a necessidade de uma comunicação popular, negra e antirracista. Danubia pretende continuar a sua trajetória com um trabalho voltado para crianças negras, com o objetivo de mostrar que “podemos e devemos transformar o mundo através do nosso poder de comunicar por nosso lugar”. Já Midiã, tem como foco criar um portal para ampliar as conexões internacionais e discutir comunicação a partir de uma perspectiva afrodiaspórica, chamando também para o diálogo comunicadoras(es) negras(os) não formais.

Diante de um cenário adverso, onde a democratização da comunicação ainda soa distante, iniciativas criadas por comunicadoras negras para socializar as suas demandas, percepções, projetos e estratégias coletivas de luta, têm se mostrado como um caminho possível. Através delas é possível pensar em reapropriação das narrativas sobre negritude, garantia do livre expressar e geração de impactos políticos que afetam diretamente as condições de vida e existência da população negra brasileira. 

“O espaço da comunicação é um espaço de poder, conseguimos transformar vidas e criar consciência através da comunicação. Minha perspectiva é de que nós, pretos e pretas, possamos cada dia mais estarmos ocupando a comunicação”, conclui Danubia.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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