Mídias Negras e Jornalismo Antirracista: a comunicação como ferramenta de luta e emancipação das mulheres negras

Mulheres negras enxergam na comunicação uma forma de enfrentar as desigualdades geradas pelo racismo

Por Andressa Franco*

 

O racismo está presente nos diversos veículos de comunicação tradicional, e implica não somente na baixa porcentagem de pessoas negras ocupando essas redações, mas também na forma como essas pessoas são representadas na mídia. Trata-se de um fenômeno que exige a presença de mais profissionais negros comprometidos com a luta antirracista atuando neste mercado. E, além disso, que atuem e fortaleçam as mídias negras, segmento que ao longo da história utiliza a comunicação como ferramenta de luta contra o racismo.

Foi com esse objetivo em comum, que Marina Ribeiro Lopes, Jaqueline Ferreira Fraga e Brunna Kalynne se inscreverem no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations  

Os projetos destas comunicadoras tiveram como meta trazer para o foco o papel das mídias negras e a importância da prática de comuicação antirracista. A pandemia mudou os planos, mas estas lideranças encontraram no apoio do Fundo Baobá maneiras de se reinventar e alcançar seus objetivos.

 

Marina Ribeiro
Marina Ribeiro
Jaqueline Fraga
Jaqueline Fraga

 

Brunna Moraes
Brunna Moraes

 

“Comunica Preta”

Desde antes do nascimento oficial da Imprensa no Brasil (1808), negros e negras já utilizavam a comunicação como forma de articulação das lutas pela liberdade. A Revolta dos Búzios (1798) é uma data simbólica para as mídias negras, já que, mesmo em um período onde a imprensa era proibida pela Metrópole portuguesa, a comunicação foi a estratégia utilizada. Boletins manuscritos foram espalhados pela cidade de Salvador, permitindo que a mensagem fosse propagada, dos poucos que eram alfabetizados, para a maior parte da população. 

Foi pensando nas mídias negras como um legado histórico, que Brunna Moraes, de 24 anos, decidiu se inscrever no Programa. O objetivo foi desenvolver suas habilidades como profissional da comunicação e a construção coletiva de um veículo de mídia antirracista no estado de Alagoas. 

“Eu sentia necessidade de escrever no meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] sobre o quanto o curso de jornalismo não aborda a comunicação antirracista, e deveria, porque não é a partir de hoje que existem mídias negras. Desde os tempos da escravização no Brasil existem pessoas negras organizadas dentro da comunicação”, conta a jovem, que é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Brunna também faz parte da Associação de Negras e Negros da instituição, e integra o Instituto do Negro de Alagoas (INEG).

O período como bolsista do Baobá foi turbulento para Brunna, tanto por conta da pandemia, que resultou na reconfiguração do seu planejamento, como também pela descoberta de uma gravidez. Mesmo nesse processo, conseguiu fazer um curso de design, área em que tinha mais dificuldade, além de ter se dedicado ao estudo sobre comunicação negra.

Também foi a partir do financiamento que a estudante pôde comprar seu celular e seu computador, acessando assim oportunidades de trabalho. A jornalista colaborou durante um ano com o portal Notícia Preta, seu primeiro contato profissional com uma mídia negra. Isso a estimulou ainda mais na construção de um veículo nos mesmos moldes no seu próprio estado. 

“Durante o projeto fiz diversos vínculos, consegui formar uma equipe que hoje trabalha comigo no Mocambo Online. Mas, todo mundo tem diversas demandas e é algo que não dá lucro instantâneo. Então, o desafio principal é esse, mas tá rolando”, comenta sobre o projeto de mídia negra que toca em Alagoas.  

Inicialmente, a pretensão de Brunna era promover reuniões, encontros, palestras, viagens para colher histórias, que viriam a fazer parte da produção jornalística e realizar um evento de lançamento do jornal Mocambo Online. Mas, todos esses planos foram barrados por conta da pandemia.

“O principal desafio foi conseguir reunir o grupo que ia fazer parte do Mocambo Online. Eram pessoas que eu não conhecia e convidei através das redes sociais. Até hoje a gente nunca se reuniu presencialmente, tudo que a gente faz é online, mas é algo que a gente foi aprendendo a lidar com o tempo. Hoje eu sou a maior defensora de: se existe a possibilidade de ser remoto, por que tanto fetiche no presencial?”, brinca. 

O cuidado que recebeu das responsáveis pela iniciativa também chamou sua atenção. “As meninas sempre deixavam claro que o financiamento não era apenas de resultados demonstrados em nota fiscal. Mas, que a gente pudesse, de repente, cuidar da nossa pele, da nossa saúde mental, o que achasse necessário para crescer profissional e pessoalmente nesse período. Foi um cuidado muito importante se tratando de mulheres negras”, lembra a estudante, que hoje tem como perspectiva conseguir manter o projeto de maneira sustentável. 

“Aqui em Alagoas é muito difícil, é um estado extremamente oligárquico, as mídias são muito controladas e monopolizadas pela política local de coronelismo. Então, é furar uma situação de que as pessoas almoçam assistindo jornal policial, sabe? É um desafio, mas se ninguém fizer, não dá pra mudar”, completa.

 

“Comunicação Negra: Inspirar, Apoiar e Conscientizar”

Melhorar a comunicação para público em debates, formação, rodas de conversas e em construção de parcerias e captação de recursos era o principal objetivo da pernambucana Jaqueline Fraga, de 31 anos. Ela é jornalista da Folha de Pernambuco, escritora, e também é formada em administração.

Com MBA (Master in Business Administration, pós-graduação na área de gestão e administração) em Comunicação e Jornalismo Digital pela Universidade Cândido Mendes, Jaqueline destaca o apreço pelo estudo como uma de suas principais características. Foi com o recurso do Fundo Baobá que pôde alimentar essa característica, e também atuar em rede com mulheres negras de todo Brasil, o que considera um legado deixado pela iniciativa.

Desde a infância, sua identificação com a escrita se mostrou presente, o que a levou a publicar um livro finalista do Prêmio Jabuti na categoria biografia documental e reportagem: “Negra Sou: Ascensão da Mulher Negra no Mercado de Trabalho”. A jornalista era a única mulher entre os 10 finalistas do prêmio na categoria, e também a única com produção independente. 

O trabalho conquistou menção honrosa na 36ª edição do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo. A série de reportagens, antes de se tornar um livro físico, foi agraciada com o prêmio Antonieta de Barros – Jovens Comunicadores Negros e Negras.

Um dos seus desejos é que o livro seja adotado por escolas do ensino básico, mas destaca que, muitas vezes, ser mulher, negra e nordestina é um obstáculo. “Eu valorizo demais e tenho orgulho de ver tantas escritoras negras ganhando o mercado. Mas, às vezes, é como se fosse só aquele pequeno nicho, as pessoas não estão tão dispostas a conhecer pessoas de outras regiões, comprar do novo”, explica. 

A partir do financiamento, Jaqueline conseguiu realizar seu MBA; participou de cursos de marketing digital para auxiliar na divulgação de seus livros; adquiriu equipamentos e livros que atendessem às necessidades do seu trabalho. E, graças à rede com quem teve contato durante o Programa, conheceu outras mulheres com quem criou a Coletiva Negras que Movem, que tem uma coluna coletiva no portal Geledés.

A construção desta rede proporcionada pelo Programa fez diferença no trabalho de Jaqueline. A jornalista já fez entrevistas e escreveu matérias tendo como fontes mulheres que conheceu através do Baobá. “São projetos que querem levar pessoas negras, mulheres negras em especial, para locais que ainda são muito embranquecidos, e isso dialoga muito com o Programa” relata.

Mas, a pandemia também impactou as metas iniciais. Em maio de 2020, o pai da jornalista faleceu, e seus planos precisaram de uma pausa. Alguns ficaram inconclusos, como o curso de inglês avançado que queria fazer de forma presencial e não pôde terminar.

“Sigamos criando e ocupando espaços, porque a gente tem que ocupar os que nos foram negados e precisa criar os que sejam nossos”, é um dos lemas da comunicadora. Ela acompanha o conteúdo produzido pelas mídias negras, e acredita na importância de ocupar as redações tradicionais, para “tentar modificar o sistema por dentro”. 

Tendo ingressado em um jornal tradicional na área de colunismo social, surpreendeu o público ao trazer mais pessoas negras como personagens dos seus textos. Nesse processo, também produziu uma série para o site  Roberta Jungmann, colunista social da Folha de Pernambuco sobre a negritude pernambucana, em que entrevistou personalidades negras do estado que ganharam o mundo nas suas áreas de atuação. 

Quando passou pela editoria de cultura, levantou pautas com escritoras negras da região. Hoje na editoria de cotidiano tenta, ao máximo, trazer pessoas negras como fonte para debater os mais diversos assuntos. De economia à medicina.

“E não são só jornalistas negros que têm esse papel. Deve ser um objetivo da mídia fazer jornalismo pautado no antirracismo” defende. “Eu trabalho muito com histórias de exceções. As mulheres que eu entrevistei sempre são as únicas mulheres negras nos seus espaços. E a gente não quer mais que aconteça dessa forma”.

 

“Vozes Pretas – o poder da comunicação no combate ao racismo”

Já na vida de Marina Ribeiro Lopes, a comunicação se encaixa em outro lugar. O aprimoramento das habilidades como jornalista e comunicadora e a divulgação do trabalho de outras mulheres negras foi seu objetivo ao se inscrever para o edital com o projeto “Vozes Pretas – o poder da comunicação no combate ao racismo”.

Nascida em Santa Maria da Vitória, interior da Bahia, Marina vive há muitos anos em Aracaju, capital sergipana. Dentro do movimento negro organizado, ela fez parte do Grupo Abaô de Capoeira Angola. Também integra a Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria, e a diretoria do terreiro Ile Axé Opo Osogunlade. 

Como profissão, ela nunca passou pela área do jornalismo. Atua como bombeira militar, e com auxílio do Programa, agora também está experimentando a carreira de escritora. “Foi bem doido fazer esse projeto dentro de uma pandemia, no meu caso, além da pandemia, uma gestação e um parto, eu tive que mudar algumas coisas”, conta.

A ideia inicial de Marina era trabalhar as habilidades com a comunicação, para iniciar um projeto dentro do Grupo Abaô com crianças e adolescentes negras e negros, a fim de ajudar no desenvolvimento desses jovens. 

“O que atrapalhou mesmo minha comunicação foi ser uma criança negra dentro dessa sociedade. Eu sempre me omitia, não queria aparecer, histórias comuns às pessoas negras, às crianças principalmente”. Mas, por conta da pandemia, o Grupo Abaô perdeu a sede, e pouco depois a comunicadora descobriu que estava grávida. 

O projeto então foi redirecionado. O recurso se voltou para um projeto que Marina já vinha desenvolvendo, o Mercado Negro Aracaju, uma plataforma onde pessoas negras cadastram seus serviços e produtos. “Às vezes a gente quer ir a um médico, a uma costureira, ou qualquer serviço, e queremos dar prioridade às pessoas negras, e não sabemos onde encontrar. É dessa necessidade que surge a plataforma”, relata. 

Com ajuda do Programa, ela conseguiu uma parceria para auxiliar na produção de conteúdo para o site e para as redes sociais da plataforma, o que resultou em crescimento de acessos e de cadastros. A outra ação que Marina desenvolveu, surgiu por acaso, foi o livro QUARTA ÀS 9, que assina como autora, e nasceu da publicação de seus textos no Facebook.

“Eu tinha muita vergonha de mostrar o que eu escrevia, e como minha habilidade a ser desenvolvida era a comunicação e a gente estava na pandemia, eu acabei experimentando escrever e publicar”. Mesmo com medo de se expor, depois do convite de uma pequena editora independente de um casal de amigos da cidade, a IPADÊ – Estúdio Gráfico – Marina aceitou o desafio. Começaram uma campanha de financiamento coletivo e, junto com os recursos do Programa, o livro foi lançado em setembro deste ano. 

“Não sei se tenho dimensão do quanto esse projeto impactou minha vida. Acho que minha maior dificuldade era trabalhar no âmbito individual, porque sempre falei enquanto parte de coletivos. Minha maior transformação foi a coragem de falar que eu não sou somente uma pessoa em um grupo”. 

O foco de Marina hoje é a filha recém-nascida. Mas depois da experiência e da iniciativa de lançar um livro, ela pretende se esforçar para continuar na trajetória de escritora. Tudo isso, afirma, sem abrir mão de tentar colocar em prática seu objetivo inicial, trabalhar com a comunicação de jovens negros através do Grupo Abaô de Capoeira Angola.

 

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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