Três iniciativas contempladas pelo Fundo Baobá têm em comum o objetivo de impulsionar mulheres negras a ocupar espaços culturais a fim de protagonizarem suas próprias histórias
Por Júlia de Miranda*
A filósofa norte-americana Angela Davis defende que a arte é uma forma peculiar de consciência social que tem o poder de despertar nas pessoas tocadas por ela um impulso para transformar criativamente as condições opressivas que as cercam. Aqui no Brasil, muito da nossa cultura é oriunda do continente africano: comida, música, a nossa própria língua (o ‘pretuguês’ como chama Lélia Gonzalez), danças e muitas tradições. Conectar arte e ancestralidade negra de maneira responsável possibilita a abertura de processos de cura, pessoais e coletivos.
Projetos voltados para a arte e cultura ancestral foram contemplados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Os projetos: “Negras e Tecnologia – Produção Musical Enegrecida”, da produtora musical, cantautora e multi-instrumentista Andressa Ferreira, de Porto Alegre (RS); “Meduza a Vez e a Voz Dela”, da pedagoga Renata da Silva, de São Paulo (SP); e “Enegrecendo o artvismo: multilinguagem na luta antirracista”, da produtora cultural de Campina Grande (PB), Carolina Brito; foram três iniciativas que têm em comum o objetivo de impulsionar mulheres negras a ocupar espaços culturais e protagonizar suas próprias histórias.
Contornando os desafios
Renata da Silva articulou atividades culturais de capoeira e graffiti, mas com a pandemia os encontros e oficinas aconteceram em sua maioria de forma virtual. Algumas poucas presenciais, com número menor de pessoas e os cuidados necessários de distanciamento social. Já o projeto de Andressa Ferreira surgiu da necessidade de ter mais autonomia nos trabalhos em que participa, e também pela urgência de tornar o ambiente da produção musical menos hostil para mulheres, principalmente as negras e indígenas, cis e trans. “Isso se deve ao fato de que a área do áudio e da tecnologia ainda é dominado por homens brancos cis”, pontua.
O ‘Enegrecendo o Artvismo’, projeto de Carolina Brito, nasceu diante da falta de diálogo sobre a questão racial em sua cidade, no interior da Paraíba. A iniciativa foi baseada num caminho que a produtora já vinha percorrendo há 4 anos desde o seu trabalho de conclusão de curso, o “Enegrecida”. Ele evoluiu e virou atividade formativa e palestra, passou a ser iniciativa social, loja e página de produção de conteúdo.
Com o apoio do Fundo Baobá, Carolina vivenciou algo inédito, a possibilidade de olhar para si com mais carinho e dedicação: começou uma pós-graduação em História e Cultura Afro-Brasileira e também a psicoterapia. “O desenvolvimento pessoal acabou sendo a principal parte do meu projeto, estamos sempre olhando para fora ao invés de olhar para dentro primeiro e esse foi um ensinamento muito grande que o projeto me deu”, conta a artivista que chegou a ter início de depressão durante o processo e obteve ajuda no Programa. “Fizemos uma série de atividades on-line com mulheres negras sobre saúde mental e turmas de trabalho sobre o pensamento de Angela Davis”, relembra Carolina.
Adequando o projeto para uma nova roupagem remota e virtual, Andressa conseguiu acessar os conhecimentos em relação a áudio e tecnologia, área onde existem ainda vários desafios por se tratar de um espaço que é majoritariamente branco, masculino e elitizado. Ela comenta que trabalhar com isso requer alto investimento em equipamentos tecnológicos que não são acessíveis para a maioria da população negra, indígena e periférica. “Consegui montar um home estúdio itinerante; ampliei redes; conheci outros produtores (as); fiz cursos de formação; aulas de inglês e dei início a um novo empreendimento voltado para produção musical e inclusão de mulheres negras e indígenas cis e trans na área do áudio e tecnologia: o MAAT, Mulheres Afro-indígenas Áudio e Tecnologia”, elenca Andressa.
Carolina também financiou cursos de edição de vídeo, investiu em livros, e comprou alguns equipamentos para colocar em prática o conhecimento no audiovisual. A execução do seu trabalho envolveu encontros virtuais para debates sobre raça e também o Slam das Pretas, que contou com a participação de mulheres do Nordeste e poetisas da Colômbia, Moçambique e Angola.
Expectativas e autoestima
Renata descreve a sua participação no Programa como “um momento mágico” na sua vida. Ela conseguiu ter tranquilidade financeira para se organizar, e estar próxima, mesmo que virtualmente, de outras lideranças. “No decorrer do projeto aproveitei o momento de isolamento social para estudar editais e escrever projetos, um deles veio ao encontro com o triste momento vivenciado em março de 2020. O ‘CapoELAndo na Luta por Direitos Fundamentais’, nos possibilitou auxiliar centenas de famílias com produtos de higiene, cestas básicas e conscientização na região de Sapopemba, no município de São Paulo”, explica Renata.
O principal objetivo do seu projeto foi alcançado enquanto liderança feminina negra e também no desenvolvimento de atividades culturais, realizadas de forma remota, ligadas ao graffiti e capoeira. Com o apoio do Fundo Baobá, Renata conseguiu remunerar mensalmente 15 pessoas, e indiretamente dezenas de artistas, agentes culturais, músicos, grupos de capoeira e outros coletivos.
Para Andressa o período também foi de “grande benção” e muito crescimento e colheita que a ajudou bastante a passar pela pandemia conseguindo visualizar novos horizontes e possibilidades. “Me sinto apta e autorizada a me apresentar e atuar cada vez mais como produtora musical, pois além de ter uma formação, tive várias oportunidades para colocar em prática os conhecimentos adquiridos ao longo da execução do projeto”, comenta a produtora. Ela conta que graças às aquisições dos equipamentos, realizou a produção musical de diversos trabalhos, além de mentorias para pessoas da comunidade LGBTQIAP+. “Compartilhei e sigo compartilhando saberes com mulheres negras, e também com algumas comunidades indígenas Mbya Guarani a convite da Tela Indígena, em parceria com a Comunicação Kuery”, comemora a produtora.
Carolina Brito, através da experiência oferecida pelo Fundo Baobá, também enxerga hoje todo o seu potencial enquanto líder. A única parte do seu projeto que não foi concluída foram as oficinas nas escolas (escrita criativa afrocentrada, identidade racial e vídeos-poemas). Como tudo estava fechado durante a pandemia e agora as aulas presenciais retornaram, essas atividades serão realizadas com os estudantes do infanto-juvenil. “Ser uma mulher negra que trabalha com audiovisual e que está no mercado com autonomia das suas produções, isso é revolucionário para a minha história. Tenho agora uma equipe formada para fortalecer essas atividades culturais comigo”, afirma.
Andressa pretende continuar atuando na área para adquirir mais experiência e, se for possível, realizar mais algumas formações técnicas para aprimorar os trabalhos que vem desenvolvendo e assim poder abrir mais portas. Além disso, quer organizar novas oficinas e vivências estimulando outras mulheres negras e indígenas a ocuparem a área de produção musical. “A oficina que eu ofereci para mulheres negras e indígenas cis e trans foi um sucesso e me fez confirmar a demanda e vontade de outras mulheres de acessarem esses conhecimentos”, afirma.
Para ela o Fundo Baobá realiza mudanças efetivas na nossa sociedade, conseguindo fomentar projetos que contribuem de fato na construção de uma sociedade mais equânime. “Tive a oportunidade de participar das formações políticas junto com as outras lideranças apoiadas, e esses encontros foram de extrema importância para que eu alcançasse meu objetivo. Hoje eu, assim como todas as mulheres contempladas por esse edital, podemos estar aqui planejando nosso futuro e potencializando não só a nossa trajetória como as das próximas gerações”, prevê a produtora musical.
*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.