Diretor Executivo e Vice-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá falam sobre posicionamento da instituição frente a questões sociais

             Por Wagner Prado

Giovanni Harvey vai completar um ano à frente da Direção Executiva do Fundo Baobá. Antes de assumir o cargo, Harvey foi presidente do Conselho Deliberativo do Fundo e construiu uma carreira com 30 anos de experiência como executivo na iniciativa privada, na administração pública e no terceiro setor. A política sempre esteve presente em sua vida, tendo sido presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF) entre 1988 e 1989. Giovanni ocupou o cargo de Secretário Nacional de Políticas de Ações Afirmativas entre 2008 e 2009 e foi Secretário Executivo, de 2013 a 2015, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir). Atuando no Fundo Baobá, Giovanni Harvey tem sido uma das vozes mais vibrantes nos eventos relacionados à questão racial no Brasil. Ele faz o seguinte alerta: “O papel da sociedade civil não é concorrer com o Estado. É buscar identificar quais são as demandas que o Estado não está atendendo, por qualquer que seja a razão, e propor soluções inovadoras que possam (no futuro) inspirar a ampliação das políticas públicas.”  

Amalia Fischer é a vice-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá. Profissional com grande experiência de trabalhos em filantropia, investimento social e responsabilidade na diversidade, ela tem doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de ser Socióloga. Amalia Fischer faz uma análise sobre as origens da filantropia no Brasil. “A filantropia branca tem origem na Santa Inquisição. É uma filantropia em que a Santa Inquisição, que de santa não tinha nada, era aquela que tinha a ideologia e a política daquele momento. E isso foi aplicado a todos os diferentes: judeus, mulheres, negros e indígenas na medida em que o homem branco foi colonizando e se apropriando do mundo.” Em entrevista, Giovanni Harvey e Amalia Fischer falam sobre direcionamentos do Fundo Baobá, realizações e perspectivas. 

Qual a expectativa do Fundo Baobá com relação a políticas públicas a serem implementadas e como a instituição vai atuar frente a elas?

Giovanni Harvey – Essa resposta ela tem dois aspectos. E o primeiro aspecto é exatamente essa expectativa mais genérica, que  passa pela reconstrução, pelo restabelecimento de políticas públicas que não são políticas públicas de governo,  independentemente do que se pensa. São políticas públicas de Estado. O Estado brasileiro  veio aperfeiçoando a sua visão sobre as suas responsabilidades no enfrentamento às varias desigualdades. E, no que diz respeito à desigualdade nas relações étnico-raciais,  o Estado brasileiro, desde a Constituição de 1988, que tornou o racismo crime inafiançável, imprescritível -momento no qual inclusive foi criada, por iniciativa do governo, a Fundação Cultural Palmares-, o Estado brasileiro veio avançando no seu entendimento sobre as suas responsabilidades no enfrentamento das desigualdades geradas pelo racismo estrutural.  Lamentavelmente na última quadra (últimos quatro anos), em termos de visão política, vimos o Estado brasileiro se abstendo de dar continuidade a este processo. Então, a primeira expectativa que eu tenho é de que essas políticas públicas de Estado serão reestabelecidas. A partir daí nós poderemos fazer uma avaliação sobre o posicionamento do Fundo Baobá. 

O segundo aspecto desta resposta é que o papel da sociedade civil não é concorrer com o Estado. É buscar identificar quais são as demandas que o Estado não está atendendo, qualquer que seja a razão, e propor soluções inovadoras que possam (no futuro) inspirar a ampliação das políticas públicas. Quais são as aspirações que não estão sendo atendidas pelas políticas públicas? Porque não estão sendo atendidas por iniciativas que tenham uma certa envergadura. E é a partir dessa análise que nós, o Fundo Baobá, identificamos pontos de melhoria, demandas não atendidas, demandas contra-hegemônicas,  tensões sociais que merecem  adquirir uma maior visibilidade e, a partir daí,  o Baobá se posiciona. Estamos acompanhando com atenção esse redesenho das políticas públicas. Estamos com as nossas operações em curso e certamente vamos fazer um ajuste no nosso posicionamento a partir do desenho e do escopo das políticas públicas que vierem a ser definidas. 

Giovanni Harvey, Diretor Executivo do Fundo Baobá

O Baobá não “apenas” é um mecanismo de captação e repasse de recursos. O Baobá se fez para além disso. Criou uma forma de atuar dentro desse ambiente da filantropia para justiça social. O Baobá virou referência? Ele é inspiração para outros? 

Giovanni HarveyO Baobá não é apenas um captador e distribuidor de recursos, o Fundo Baobá também faz captação para redistribuir recursos para o  campo. Eu entendo a pergunta na dimensão institucional e política, considerando o que pode ser a percepção da sociedade diante da experiência  de construção de uma instituição negra. Depois que eu fui a Salvador e conheci com mais profundidade a história da Sociedade Protetora dos Desvalidos, não posso mais dizer que o Fundo Baobá é a primeira experiência negra pensada com o ponto de  vista da sustentabilidade. Porque nós temos a Sociedade Protetora dos Desvalidos,  fundada em 1832. E a Sociedade foi fundada já numa lógica de buscar a autossustentabilidade e, passados 190 anos,  continua funcionando e continua sendo guiada por uma visão de busca de sustentabilidade. Então, dentro do modelo atual de buscar sustentabilidade a partir de uma gestão financeira mais arrojada, com aplicações, com endowment, o Baobá é a primeira instituição no Brasil que alcança um certo patamar de sustentabilidade em cima da estratégia de um fundo patrimonial. Nesse sentido, o Baobá   é inspiração sim. Ele tem que navegar fora do senso comum. O Fundo Baobá é uma referência por ser uma instituição que opera na fronteira de tensões do enfrentamento do racismo estrutural.

Amalia Fischer Evidentemente que sim. O Baobá é uma referência. Ele é único. Além de referência ele é uma instituição que está consolidada. É uma instituição que é transparente, eficiente, inovadora e tem todas as características de, não sendo uma fundação como a Fundação Ford, ter todos os elementos de uma governança, o que faz com que ela seja forte, capaz de ir às profundezas dos problemas da população negra, buscando soluções junto à população. Então, é a única que vai até as profundezas das necessidades para procurar soluções para a população negra.

O Baobá é referência. Tenho ouvido, por exemplo, a Aline Odara (Fundo Agbara) falando com admiração e falando que quer ser grande quer ser como o Baobá. Isso é maravilhoso, porque pega uma tradição dentro da resistência dos negros no Brasil e das instituições que os negros criaram, como as Irmandades. Isso é uma tradição e é possível ver um histórico. É possível ver que a população negra é capaz de mobilizar recursos e fazer filantropia de um jeito que não o jeito branco. A filantropia branca tem origem na Santa Inquisição. É uma filantropia em que a Santa Inquisição, que de santa não tinha nada,  era aquela que tinha a ideologia e a política daquele momento. E isso foi aplicado a todos os diferentes: judeus, mulheres, negros e indígenas na medida em que o homem branco foi colonizando e se apropriando do mundo. Então, a resistência e a oposição que os negros fizeram a essa filantropia de esmola é uma filantropia que responde promovendo cidadania, alforria e educação de negros. E isso foi feito por muitas mulheres que estavam à frente das irmandades e à frente também de alguns negócios, as ganhadeiras. Então, os negócios sociais foram criados pelos negros. A filantropia de justiça social foi criada pelos negros. E isso você não vê na história da filantropia do Brasil. Você tem que cavoucar para chegar lá e ver coisas que não se falam na história oficial. O conceito da igreja católica para filantropia foi a piedade. E a piedade nunca vê o outro como um igual. Vê o outro como um subalterno e dá a esmola. 

O Baobá e toda filantropia desenvolvida pela comunidade negra é uma filantropia que olha para a cidadania plena, para os direitos, para a equidade racial, para a equidade de gênero. 

Amalia Fischer, vice-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá

Analisando o contexto das relações raciais no Brasil, que tipo de influência o Fundo Baobá pode ter nacionalmente? No terreno internacional, ele pode ser um influenciador? Isso é algo que o Baobá pretende? 

Giovanni HarveySim, o Baobá é um influenciador no campo nacional. As  parcerias que o Baobá tem com instituições da iniciativa privada, do investimento social privado,  da filantropia, do terceiro setor já o colocam como uma instituição importante dentro desse cenário. O Fundo tem interface com instituições internacionais. Ele se  constituiu a partir do apoio de uma organização internacional, que é a Fundação Kellogg, e o Baobá acompanha o cenário internacional. Vamos lembrar que nós estamos na década dos afrodescendentes da ONU, de 2014 a 2024, e que certamente esse tema da década vai voltar à agenda brasileira. Aquela fala do Lula (presidente eleito em 30/10/2022) na COP 27: “O Brasil está de volta”, eu não considero que esta frase se limita apenas à projeção internacional do Brasil no tema do meio ambiente. Existe uma agenda internacional de enfrentamento ao racismo e o Brasil estará de volta a essa agenda, qualquer que seja o ministro ou a ministra da Igualdade Racial. O Brasil vai estar sentado novamente nessa mesa. O Brasil que perdeu o protagonismo, ao longo dos últimos anos,  vai voltar ao debate, vai voltar a incidir nessa área e o Fundo Baobá vai estar inserido dentro desse cenário sim. 

Amalia FischerO Baobá foi criado pelo movimento negro. Então, quem mais sabe das necessidades e sobre abrir oportunidades para a população negra senão o movimento negro? Ter ativistas, pensadores,  filósofos, sociólogos, sociólogas e filósofas  dentro da governança e dos conselhos dá ao Baobá legitimidade para fazer o que está fazendo. Talvez o Baobá não seja a organização que lá no território “X”  esteja transformando a vida das pessoas, mas está impulsionando, fortalecendo essa organização para que ela continue a sua atuação pela equidade racial. 

A existência do Baobá depende das organizações que ele apoia. E essas organizações também dependem do Baobá. Quando falo em dependência não é no contexto negativo, estou falando de apoio mútuo. O fato de o Baobá ser um meio para que as organizações se desenvolvam e possam ter sustentabilidade de todo tipo é uma inter relação saudável para ambos os lados. Mutuamente aprendem e a cada dia é colocado um grão de areia para que o racismo estrutural e o racismo institucional sejam desconstruídos.  

A captação de recursos é o grande gargalo do Baobá?

Giovanni HarveyEu quero detalhar isso um pouco mais. A captação em si não é um problema. A captação para o endowment, dada a falta de cultura de doação para um fundo patrimonial de uma organização negra,  é o problema. Então, captar para realizar projetos não é. O grande desafio que o Fundo Baobá está enfrentando é diminuir a captação carimbada para projeto e migrar para uma captação de confiança, como é o caso da Mackenzie Scott (filantropa norte-americana que em agosto doou US$ 5 milhões para o Fundo Baobá).  É uma doação de confiança. Eu dou o dinheiro e você decide o que vai fazer com ele.  Então, eu diria que é um gargalo,  mas o gargalo está na destinação do montante captado e não necessariamente no ato de captar em si. E o nosso desafio é aumentar a qualidade da nossa relação com o financiador  e o grau de confiança nessa relação, já que o Baobá é a instituição especializada – é um fundo especializado no enfrentamento ao racismo. 

Amalia Fischer – Uma coisa é o começo de qualquer fundo que seja por uma causa. Principalmente uma causa polêmica na sociedade. Porque a sociedade brasileira nega o racismo. Nega que exista desigualdade. Nega que exista opressão às mulheres. Então, cada fundo que é lançado e defende uma causa tem que movimentar recursos e a mobilização de recursos vai além da captação. A mobilização de recursos também tem a ver com a transformação mental das pessoas, com o coração das pessoas, com a paixão das pessoas. Se a pessoa acha que dando esmola na rua ela está fazendo uma transformação, ela nunca vai pensar que doando para uma organização será muito melhor. Porque o menino ou a menina que está na rua pedindo esmola poderia ter outras oportunidades a partir da atuação das organizações da sociedade civil, porque essas organizações da sociedade civil respondem a causas, a movimentos e, se você não as apoia materialmente, você está capenga na democracia. A pessoa não está enxergando que cada vez é mais saudável para a sociedade que ela se envolva. Isso não tira do Estado a sua obrigação. Mas o que se tem que ter bem nítido quando se constitui um fundo é que vai ser difícil. Muito difícil. Sobretudo no campo das causas.     

Saúde, Educação, Empreendedorismo, Recuperação Econômica, Auxílio a Populações em Situação de Vulnerabilidade. Que outros terrenos da ação social o Fundo Baobá ainda precisa semear? 

Giovanni Harvey O Baobá sempre busca a inovação nas suas áreas de atuação.  Tem que refletir sobre quais são as fronteiras da inovação em termos de posicionamento de pessoas negras na sociedade. Nós estamos olhando para as carreiras de liderança. Então, acho que inovação é um caminho, melhoria da performance na gestão. A gente precisa conseguir criar soluções de Comunicação mais amplas, e indicadores.  Então a resposta é olhar para nós mesmos, assim como olhamos para os nossos grantees e inovar.

Amalia FischerA partir dos achados da área programática, a partir dos relatórios das organizações é que podemos saber o que está acontecendo e o que está necessitando a população negra.O Baobá tem investido nisso. Porque se não tivermos uma escuta atenta podemos ter ideias mirabolantes e as pessoas podem não estar precisando de ideias mirabolantes. 

O Baobá acaba de completar 11 anos. Qual a sua projeção para os próximos 5 ou 10 anos de atuação? 

Giovanni HarveyNós estamos comprometidos, estamos trabalhando para nos fortalecer e  alcançar a meta de R$ 250 milhões de  endowment  até 2026. É a nossa meta. 

Amalia Fischer Acho que o Baobá vai viver 50 anos ou mais. Eu espero que não seja mais que isso, porque temos que acabar com o racismo. Acho que o Baobá hoje não é só uma referência, mas uma liderança importante na questão da equidade racial no Brasil. Uma entidade importante que deve ser ouvida e respeitada. Uma liderança. Pessoas  brancas que queiram se engajar profundamente contra o racismo têm que ouvir o Baobá. 

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