Duas mulheres contam suas histórias de luta pelas populações quilombolas

Lucimar Sousa Silva Pinto, 63 anos, nascida em Pirapemas, no Maranhão, é um exemplo de resistência por amor ao próximo e à natureza. Mãe de oito filhos, criou mais cinco – seu caçulinha tem hoje 38 anos! Selecionada no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco – iniciativa do Fundo Baobá em parceria com Instituto Ibirapitanga, Fundação Ford, Open Society Foundations e Fundação Kellogg – com o projeto “Plantando sementes, cultivando redes de cuidado e colhendo justiça social”, ela também é uma das coordenadoras do grupo Guerreiras da Resistência. E diz que, não fosse o projeto, estaria “sozinha e louca”, cuidado do Sítio Raízes – um espaço de 500 m2 que divide com mais oito pessoas, com roça e “umas 500 árvores”, diz. “Lutamos pela natureza, pela verdade, pelos ribeirinhos e demais povos para que tenham direito de plantar e colher nas suas terras, de criar os seus animais e de pescar”. 

O Sítio Raízes fica próxima de uma comunidade quilombola que foi crescendo e, hoje, chegou à cidade, confundindo limites. “Tudo é só um trecho: cidade e povoado”, afirma. O agronegócio continua avançando lentamente, ameaçando o babaçu – fonte de receita de muita gente por lá, que tem perdido espaço para a soja e a pecuária. “Nossos ribeirinhos foram jogados para a cidade por causa desse agronegócio. As comunidades que querem viver lá são impedidas”, desabafa.

Talvez por isso, sua voz se entristeça quando fala do descuido com o meio ambiente na região, cada vez mais pressionada pelo agronegócio e esquecida pelas autoridades. No povoado, também não há saneamento básico. “Nosso rio está pedindo socorro. Está cheio de lixo e esgoto…e isso tudo é muito triste, porque não tem muita  gente com quem compartilhar essa preocupação.” 

Lucimar Sousa Silva Pinto

O grande empecilho à resistência, segundo ela, é a falta de companheirismo, exceto das mulheres que, como ela, são mãe e pai – também chamadas de “pingadas” [por serem cada uma de uma comunidade e de uma região diferente]. São elas que se reúnem no Sítio Raízes para lutar por melhorias. 

Como ela, outras 21 mulheres integram o coletivo Guerreiras da Resistência – seis delas estão totalmente voltadas também para o cuidados com o meio ambiente e a saúde da mulher. Além do grupo, ela ainda encontrava tempo (antes da pandemia) para visitar as comunidades do entorno promovendo rodas de conversa com mulheres e crianças, cumprindo as diretrizes do projeto selecionado.

Graças à mentoria do Programa Marielle Franco, entendeu que a melhor forma para chegar aos lugares e falar com as pessoas, para se fazer entender, era promovendo pequenas oficinas de bonecas e costura. Também organiza aulas de artesanato, basicamente com babaçu – uma palmeira cujos frutos são usados nas mais variadas produções: da alimentação à indústria de medicamentos. 

Diante de todas as dificuldades que vivencia diariamente, Lucimar abre um sorriso e sua voz se anima quando pede pela preservação do meio ambiente. “Temos que zelar pela natureza como cuidamos da nossa saúde. Quando zelamos pela mãe natureza, que é terra, água e vida, nós podemos dizer: ‘eu sou terra, eu sou água, eu sou vida. Precisamos de vida e a vida a gente encontra na mãe natureza'”. 

Lucimar tem uma relação especial com o meio ambiente. Seu amor à terra a fez investir em cursos técnicos, especialmente os que são ligados à natureza e às suas riquezas, como fitoterapia, ervas medicinais e medicina popular. No ensino tradicional, cursou até o primeiro ano do ensino médio. “Há 20 anos, casei com a natureza e firmei um compromisso de não machucá-la mais”, conta.

Aliás, há 21 anos, aconteceu a “cerimônia de casamento” em meio a um curso de permacultura com 150 alunos. “Na época, estava meio perturbada, tinha acabado de sair de um casamento”, relembra. Todos os anos, repete o ritual: faz uma grande fogueira com lenha e galhos secos, usa aliança. “Hoje, sou casada com a natureza e divorciada de um homem bruto.” 

Identidade e territorialidade 

Tania Heloisa de Moraes, 28 anos, é negra, mãe do Bernardo e agricultora familiar. Ela reside no Quilombo Ostras, no município de Eldorado, cidade histórica a pouco mais de 200 quilômetros de São Paulo.  Lá, integra a equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira SP/PR (EAACONE), entidade que articula comunidade quilombolas, além de ser militante do Movimento dos Ameaçados por Barragem (MOAB).

Tania também foi contemplada pelo Programa Marielle Franco com o projeto “Mulher quilombola na defesa dos direitos e pela vida”. O seu propósito é retomar o trabalho coletivo das mulheres quilombolas e aprimorar a habilidade de liderança dentro da EAACONE. Foi a partir desse projeto que adquiriu mais força e autonomia para se posicionar e até falar em público, por exemplo. “Achava que só ouvir e concordar bastava”, diz. 

Hoje, tenta ser mais decidida  e sempre  mostrar o que acha, mesmo que não esteja totalmente certa ou segura. “Posso afirmar que cresci como mulher, podendo valorizar minha identidade negra e fazer com que outras se orgulhem da sua ascendência e tradição. A formação do Fundo Baobá vem ampliando meus horizontes e mostrando que sou negra, com capacidade de seguir em frente, valorizando meus conhecimentos e me ajudando a lutar por melhorias para nosso povo”, relata.

Tania Heloisa de Moraes

Atualmente, sua batalha é garantir o direito ao território que, em grande parte, está nas mãos de quem produz banana, gado, eucalipto. “O Estado não indeniza essas terras que, por direito, são nossas. Também estamos enfrentando grande ameaça dentro dos quilombos que têm suas áreas sobrepostas pelos parques (unidades de conservação) que não recebem o olhar adequado.”

Duas questões que têm tirado o sono da comunidade local é a construção de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que, saindo do papel poderão atingir áreas da comunidade, e a mineração – por atrair empresas do setor de olho nas riquezas escondidas nas entranhas da terra.

Como base nesse cenário e com condições agravadas pela Covid-19, a EAACONE  elaborou um informe para as comunidades assessoradas, indicando a criação de acordos seletivos para organizar entrada e saída das pessoas das comunidades. “Estamos provocando o governo para aplicar testes,  buscando meios de prevenir o surgimento de casos da doença entre os quilombolas”, confirma. 

Por isso, segundo ela, é tão importante garantir a essas comunidades o máximo acesso à informação, aos auxílios, à saúde e à terra para plantar. No Vale do Ribeira (SP), por exemplo, onde está localizada a histórica cidade de Eldorado, há 88 comunidades quilombolas, 16 aldeias indígenas, 5 comunidades caboclas e mais de 30 caiçaras.

Mesmo enfrentando racismo e imensa dificuldade de produzir para garantir a renda da família, sempre existe resistência. A Cooperativa de Agricultores Familiares Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) tem fortalecido suas tradições, sua cultura e produzido vários alimentos orgânicos, impulsionando o negócio agroecológico que parte faz parte da  tradição do sistema de manejo dos quilombos. Com isso, gera recursos para as famílias. “Em pleno século XXI, estamos lutando ainda pelo direito de ir e vir e de morar nas terras que são nossas por direito”, desabafa. 

Outro risco que bate à porta é o discurso de que a construção de barragens e a exploração de minérios pode levar trabalho e renda para essas comunidades. A líder explica que, conversas não documentadas legalmente, trazem a reboque abuso sexual, drogas, degradação das terras e doenças para as populações. “Queremos a liberdade de plantar e colher, gritando bem alto que somos quilombolas com muito orgulho. E na resistência sempre”, finaliza.

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