Edital Vidas Negras Apoia Organizações que Defendem os Direitos de Pessoas Privadas de Liberdade e de seus Familiares

Por Ingrid Ferreira

Lançado em 5 de maio de 2021 pelo Fundo Baobá para Equidade Racial com o apoio do Google.org, o edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça é voltado para apoiar entidades negras que atuam no enfrentamento do racismo, da violência racial e incorreções que ocorrem dentro do sistema de Justiça Criminal no Brasil. 

Entre as organizações cujo projeto foi aprovado no eixo III do edital “Enfrentamento ao encarceramento em massa entre adultos e jovens negros e redução da idade penal para adolescentes”, encontram-se o Instituto Negra do Ceará e a Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo. 

Segundo o G1 “Em 15 anos, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Hoje, de cada três presos, dois são negros”. E a BBC News Brasil, publicou uma matéria no ano de 2021 sobre o sistema socioeducativo no país, em que consta que: “Segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), 46 mil menores de idade em conflito com a lei foram atendidos pelo órgão no ano de 2020. Ao todo, 59% dos adolescentes eram negros e 22%, brancos”.

O Instituto Negra que, em parceria com o Coletivo Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional, implementa o projeto Levante Pretas: Resistências Coletivas, e a Associação de Mães e Familiares que implementa o projeto Rede de Familiares em Luta Contra a Violência de Estado e Racismo tiveram suas vozes ampliadas em um diálogo com a equipe do Fundo Baobá. Alêssandra Félix fundadora e Coordenadora do Coletivo Vozes e a Patrícia Oliveira integrante da Rede, foram entrevistadas. Confira abaixo:

Fundo Baobá: O que motiva pessoas/familiares a se organizar em associações como a que vocês integram?

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

Nós nos organizamos para combater a pauta narrativa que o Estado prega. Existe um conjunto de leis, aplicado pelo judiciário nas pessoas que cometem alguma infração e existe os espaços de privação de liberdade que é para onde essas pessoas são mandadas. Mas qual é a narrativa do Estado? O Estado recorre por uma questão de ordem social, e a proposta é que essas pessoas percam a liberdade, se repensem e saiam melhores, só que a proposta que existe lá, é completamente diferente da que é colocada em prática, porque a punição piora as pessoas. E, quando nós familiares passamos a visitar, a gente vê o desserviço dos espaços. Começa na falácia da proposta da educação, ali não está para ressocializar os adolescentes, o espaço os transforma em futuros moradores de presídios. Os adolescentes, quando não são assassinados voltando para os seus territórios, que é uma outra discussão, eles vão morar em presídios. Então nós nos organizamos para desconstruir essa narrativa e também porque entendemos que o Estado, dentro de suas práticas,  nega, oprime, viola e destrói toda condição de sociabilidade que existe dentro dessas pessoas. Nós somos a humanização, é preciso que se ressalte que somos nós, mulheres negras. Existe uma cor da mulher que visita e que humaniza os espaços de privação de liberdade; a gente se organiza a partir daí. Nossa experiência começou na socioeducação do Coletivo Vozes, e vimos que o Estado nos devolvia um outro filho, um adolescente sem sonhos, sem perspectivas, mais violento. Então, quando nos tornamos mães do sistema prisional nós nos percebemos, dentro dessa construção de defensoras dos direitos humanos, por conta de todas as violações de direitos que existem dentro desses espaços, então a gente passou a se organizar para a desconstrução dessa narrativa e dessa falácia do Estado.

Alêssandra Félix – Fundadora e Coordenadora do Coletivo Vozes – Ceará

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

As  pessoas são atingidas  pela  violência  do Estado  e  muitas  não  sabem  como  agir, por isso é tão importante o trabalho realizado pela Rede.

Fundo Baobá: O que está em jogo caso um movimento como este não seja forte?

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

O que sempre esteve colocado é esse projeto político de encarceramento dos nossos. Se nós não estivermos fortes, se não tivermos essa coragem de ceder voz e corpo para essa luta… Eu costumo dizer que somos as vozes e corpos silenciados pelo Estado e suas práticas. Somos os ecos das violações e das desumanizações que acontecem nas senzalas modernas que são os presídios. E nisso o que fica em jogo também é o futuro dos adolescentes autores de atos infracionais. Existe um filme que eu gosto de referenciar: “O Ódio que Você Semeia”. Eles falam que o ódio que você semeia nas crianças, prejudica a todos. E esse  projeto de punitivismo, do encarceramento que segue seu curso livre porque temos uma sociedade punitivista; se nós enfraquecemos, não há esse debate, que inclusive algo que nos tem deixado assustadas é a discussão da redução da maioridade penal; se enfraquecemos, essas pautas não são levadas para a academia, para os fundos, projetos e que inclusive politiza as mulheres, porque hoje nós não queremos socialização para essas pessoas, queremos prevenção. Queremos que essas crianças não cheguem nesses espaços, queremos chegar antes da bala e da algema. Essa é nossa coletividade que debate o encarceramento do povo preto, falamos muito sobre muitas coisas, inclusive que os nossos tenham a possibilidade de sonhar e estar em outros espaços de afirmação que não seja só esse da privação.

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

O que  está  em jogo em  primeiro  lugar são  as  vidas  das pessoas. Em  segundo plano  o tratamento igualitário.

Patrícia Oliveira (Coordenadora de Projeto) e Maria das Graças Nascimento Nacort (Presidenta) da Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

Fundo Baobá: E existe o direito ao direito de defesa?

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

Dentro da estrutura do sistema judiciário, há muitas injustiças e violações, que começam desde a apreensão do adolescente ou a prisão de uma pessoa porque é permeada pela violência por parte da polícia. Essas pessoas passam pelo seu julgamento, são sentenciadas e mandadas para lá (presídios), e eu sempre trago as duas idades, da adolescência, e da fase adulta, porque são os caminhos carcerários que nós conhecemos então, quando você pergunta se há o direito ao direito de defesa, pelo caminho da socioeducação, é possível. Tem algumas pautas que conseguimos bater, tem um grande parceiro nosso que é o Centro de Defesa a Criança e ao Adolescente, onde a gente consegue, de fato, legitimar que ali há um espaço de defesa dos direitos da criança e do adolescente, mas no sistema prisional a gente tem mais dificuldade. Tem as especializadas que são direcionadas para presos provisórios e sentenciados, e existe a estrutura da defensoria pública. Em sua maioria somos assistidos por ela, mas precisamos de uma defensoria mais atuante e combatente. Existe um número muito assustador de presos provisórios que poderiam estar em casa aguardando essa sentença. São presos com sentenças vencidas mas que, pela lentidão do sistema, não têm o direito de defesa. Eu e muitas mães somos assistidas pelo sistema de defensoria pública, só que a gente deseja, dentro de todas as nossas pautas, que seja mais atuante e combatente, porque o que prevalece é o punitivismo, são poucas as portas de saída.

Fundo Baobá: Os grupos se articulam localmente? Existe uma articulação nacional?

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

O Coletivo Vozes surgiu em 2013, foi um coletivo matriarcal durante muito tempo, mas com o tempo fomos abrindo para os familiares que precisavam de acolhimento, e a gente se organizou para discutir a respeito do direito da criança e adolescente. A nossa primeira bandeira surge decorrente a violência contra os corpos dos nossos filhos, que era de garantia de direitos, para que parassem de bater neles, que garantisse as visitas, que se cessasse aquelas opressões que aconteciam. Em 2014 e 2015 foi um ano de perversas rebeliões aqui no estado do Ceará, inclusive com mortes nos centros, com isso precisamos de fato nos manter organizadas e dialogar sobre o que estava acontecendo; porém em 2016 e 2017 quando os meninos foram saindo (dos Centros socioeducativos), foi o período que os grupos armados e facções chegaram no Ceará e eles começaram a ser assassinados, os que não foram assassinados, migraram para o sistema prisional, e nesse período a gente sai do luto pra ir pra luta, porque os nossos filhos foram para o sistema prisional, e lá foi preciso a gente debater, porque no socioeducacional a gente ainda tem mais entrada, no sistema prisional é mais difícil. Então nós nos encontramos mensalmente para nos fortalecer, indicamos para as mulheres os espaços onde elas podem recorrer para acompanhar o processo, a gente direciona onde são as defensorias, as especializadas. Localmente, por conta da legitimidade da nossa fala e entrada no debate, a gente construiu o Fórum Popular de Segurança Pública, a Rede de Mulheres Negras do Ceará, estamos na frente estadual pelo desencarceramento, compomos o conselho estadual de direitos humanos. Agora, no âmbito nacional estamos inseridas na Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado, porque o que acontece também dentro dos espaços da privação de liberdade é terrorismo. E, enquanto discussão do desencarceramento, a gente compõem a agenda nacional.

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

A associação  vem  se  articulando com  varios  outros  coletivos, inclusive  faz  parte  da Rede Nacional de Mães e Familiares Vitímas de Terrorismo do estado.

Fundo Baobá: Ao longo destes anos de atuação, quais foram as conquistas? 

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

Eu costumo sempre dizer que éramos mães convencionais, e passamos a ser mães institucionais. Uma das nossas maiores conquistas foi nos politizar, entender nosso lugar de mãe nesses espaços, nos tornamos defensoras dos direitos humanos, a partir daí fomos ganhando reconhecimento na nossa caminhada, na academia quando vão  pautar segurança pública ou alguma coisa voltado para o aprisionamento, sempre somos chamadas e, para nós, isso é uma conquista, pois nos tira do lugar de marginalização que o Estado nos coloca. Também hoje temos o apoio do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, um lugar de muito respeito aos nossos olhos e nós conseguimos nos reunir lá mensalmente, acolhemos mulheres dos dois sistemas, socioeducativo e prisional. E a nossa maior conquista, foi nos submeter aos editais, nosso primeiro edital foi com o Fundo Brasil e agora estamos com o Fundo Baobá, quando o recurso vem, ele nos possibilita segurança de passagem, alimentação e de formação. Nós somos divididas, nós temos familiares, pioneiras que vem desde o início do grupo, temos mães da memória, que perderam seus filhos em 2015, 2016 e infelizmente vem perdendo, e temos mães com filhos tanto em medida socioeducativa quanto no sistema prisional, e essas mães nunca nos deixam, têm as mães que se identificam com a nossa luta e para nós isso é uma vitória. 

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

Nossa  conquista vem da  articulação e do  fortalecimento  do  coletivo, ao levar  um  pouco  da  nossa  experiência para o fortalecimento da  nossa luta.

Fundo Baobá:  Quais são as principais  pautas e os principais desafios desse movimento hoje?

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

As nossas principais pautas são: a prevenção, desenternamento de adolescentes autores de atos infracionais e a problematização do sistema prisional. Os nossos maiores desafios são permanecer nessa luta, ter saúde mental e seguridade. Inclusive para pautar isso aqui no Ceará. A gente não tem direito a cidade, somos perseguidas e marginalizadas. Algumas de nós está no programa de proteção, o atual governo piorou muito nosso lugar de defensoras dos direitos humanos.

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

Recursos e a articulação nacional dos  familiares de pessoas privadas de liberdade, muitos não  conhecem  seus  direitos e não sabem como recorrer a apoio.

Fundo Baobá:Sabemos que vocês listaram desafios, mas é possível imaginar os desafios futuros?

Alessandra Félix,  Coletivo Vozes

Sim, é possível! Poucas são as conquistas, mas a gente fica feliz quando um deles volta vivo e consegue se reerguer. Mas para os desafios futuros, nós temos muito receio do endurecimento das leis e das pautas de segurança pública que os políticos podem apresentar. Nós como abolicionistas desejamos um mundo sem prisões, mas o Ceará é um estado extremamente violador e encarcerador, temos só em Fortaleza mais de 8 centros  socioeducativos, no complexo de Taitinga temos quase 14 presídios, e o empecilho é essa legitimidade que ele nos tiram, porque nós temos, nós perdemos nossos filhos, muitas dessas mães enterraram seus filhos.

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

Os desafios são muitos, é a falta  de  trabalho, vulnerabilidade alimentar, além da questão psicológica, pois muitos familiares ficam doentes depois da  perda de seus filhos e isso é um grande desafio para  todos nós.

Fundo Baobá: Como o edital contribuiu com a  causa?

Alessandra Félix, Coletivo Vozes:

Tudo que nos possibilita resistir é muito bem-vindo, e é preciso que se referencie a Inegra que topou estar conosco, a importância que há para a gente é a garantia de que podemos executar algumas ações e no período da pandemia, muitas de nós ficaram desempregadas, e muitas encontram-se em vulnerabilidade social, e o projeto nos apoia nessas ações, fortalecendo como é chegar nessas mulheres, nessas famílias, porque também não é só sobre assistência, a maioria das atividades desenvolvidas foi de fortalecimento, politização, discussão sobre o que está acontecendo. Como a partir dessa dor a gente ressignifica e administra a ida aos presídios, como a gente se porta lá, como a gente fortalece uma mulher preta que está ao nosso lado, como levamos essa pauta para dentro das nossas famílias e nossa comunidade, então o projeto auxiliou no fortalecimento dessa árdua pauta e no fortalecimento enquanto organização, porque quando conseguimos receber um recurso que nos auxilia a apoiar famílias, isso retorna para a gente. E a gente vai construindo outros caminhos que não seja o cárcere ou o cemitério.

Patrícia Oliveira, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violências do Estado do Espírito Santo

O projeto veio num momento muito importante para o fortalecimento da associação  e  dos  coletivos  de  familiares de pessoas privadas de liberdade em  todo  o Brasil.

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