Esperança Garcia: Iniciativa de coletivo piauiense forma mulheres negras como lideranças

O resultado foram organizações de mulheres locais com maior participação em editais, conselhos, sindicatos e liderando as entidades de que participam

Por Andressa Franco*

 

A necessidade de fortalecer a luta pelo combate ao racismo, ao sexismo, por um modelo de democracia plurriracial e para construção de uma sociedade centrada no bem viver, pede por novas lideranças determinadas a ocupar espaços decisórios fundamentais. Nesse sentido, a capacitação e a formação política e organizacional são instrumentos para percorrer esse caminho.

Possibilitar que novas lideranças femininas tenham habilidade de incidir politicamente em suas entidades ou locais de atuação, através de formações internas e externas, foi uma das motivações do Ayabás – Instituto da Mulher Negra do Piauí para escrever o projeto “Esperança Garcia – Conhecimento de Resistência”. A proposta foi contemplada na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. 

O título do projeto faz alusão a Esperança Garcia, mulher negra escravizada do Piauí, que foi considerada a primeira mulher advogada do estado. Em 1770 ela enviou ao presidente da Província uma petição denunciando os maus tratos que ela e seu filho sofriam na fazenda onde trabalhavam. 

 

Equipe Ayabás

 

O Projeto 

O Instituto Ayabás nasceu com o propósito de debater as implicações do racismo e do sexismo na sociedade, além de lutar pela eliminação das desigualdades e pela valorização e promoção das mulheres negras. Luzilene de Sousa e Silva, conhecida como Leninha, atualmente faz parte da coordenação da organização, e está presente desde a sua fundação. Ela  é bióloga, especialista em cultura afrodescendente e educação brasileira.

Leninha conta que dedicou um dia inteiro à escrita do projeto ao lado da contadora do instituto. Uma vez aprovadas, começaram a desenvolver as atividades, que precisaram ser adaptadas para o contexto da pandemia de covid-19. “Não tínhamos nenhuma habilidade com tecnologia. Mas dissemos: ‘vamos meter a cara e fazer’, e ao meu ver foi um sucesso”, avalia. O resultado foram organizações de mulheres locais com maior participação em editais, conselhos, sindicatos e liderando as entidades que participam. Além disso, ela cita também como resultado o fortalecimento interno da instituição, e maior visibilidade alcançada pelo grupo. 

“É isso que a gente quer, mais lideranças femininas à frente de organizações, porque somos nós, mulheres negras, que carregamos o Brasil nas costas”, acrescenta. Pessoalmente, Leninha, que nem mesmo se considerava uma liderança, destaca as habilidades que adquiriu na área das mídias sociais, e no desenvolvimento de projetos com as consultorias oferecidas pelo Fundo Baobá. “Além do dom da fala. Eu sou envergonhada demais, e com os depoimentos das meninas que disseram que eu fazia parte das mudanças de vidas delas, eu me encorajei mais a falar”, relata.

Para dar início às ações desenvolvidas pela iniciativa, o instituto começou com uma enumeração de entidades e movimentos sociais relacionados com a temática de racismo e gênero no Piauí, para realizar a inscrição dessas mulheres nas oficinas. A partir daí, os resultados se manifestaram a partir da elaboração do site da organização; do primeiro projeto aprovado por uma das entidades participantes das formações; e da produção de um documentário sobre sua realização.

As Ayabás também foram responsáveis pela realização de eventos como a Feira Preta no Julho das Pretas e o III Encontro Estadual de Mulheres Negras, que desencadeou na formalização da Rede de Mulheres Negras do Piauí. Além de aumentar as participações em lives nacionais, regionais e locais falando sobre feminismo negro, enfrentamento ao feminicídio e participação de mulheres negras na política.

 

Nascem novas liderança

Participar dos cursos promovidos pelo instituto afetou a vida de dezenas de mulheres. É o caso da quilombola Marcília Rodrigues, de 31 anos, conhecida como Chitara. Ela enviou um depoimento em vídeo para as mulheres do instituto agradecendo a iniciativa. Professora de capoeira, militante negra rural, quilombola do Grupo Cultural Capoeira de Quilombo do município de São João do Piauí e descendente do território Riacho dos Negros, Chitara participou das formações no intuito de aprender do zero a prática de designer para desenvolver artes para os movimentos sociais em que atua.

“Eu não sabia nada do trabalho de um designer, e hoje posso criar artes de divulgação dos nossos trabalhos. Nos nossos movimentos hoje o dinheiro que a gente gastaria para fazer banners, cartazes e camisetas, conseguimos desenvolver atividades para os próprios movimentos, o que era um dos meus sonhos”, relata. Chitara também é técnica agrícola, comunicadora social, mobilizadora sociocultural, membra no Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de São João do Piauí e fundadora do Coletivo de Mulheres Quilombolas Descendentes do Território Riacho dos Negros. 

“O depoimento dela é maravilhoso, fiquei muito feliz porque o projeto deu ciência às lideranças não só daqui de Teresina, que é a capital do estado, mas também do interior bem longínquo”, pontua Leninha. 

Para a jovem quilombola, os desafios que se seguem são enormes porque ainda são poucos os espaços ocupados por seus pares. “Lidamos com o não acesso às políticas públicas voltada para nós, as retiradas do direito de manter a educação nos nossos territórios e acesso negado ao trabalho para que possamos viver, ter o que comer, conseguir nos manter na roça produzindo”, desabafa Chitara.

Assim como Chitara, Maria das Mercedes Alves de Souza, de 39 anos, também decidiu contribuir para sua comunidade depois de participar das oficinas do projeto. Assim, participou das eleições para coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Piauí, e foi eleita. “Eu acho que foi o máximo dos nossos objetivos”, afirma Luzilene satisfeita.

Também conhecida como Cesinha, Maria das Mercedes é pedagoga, especialista em educação do campo e indígena da etnia Gamela. A entidade que hoje coordena tem por objetivo contribuir com os povos do campo na luta pelo acesso à terra, água e direitos na construção de uma vida digna para comunidades, territórios e trabalhadores e trabalhadoras rurais. Ela afirma que o Instituto da Mulher Negra do Piauí teve uma grande influência na sua formação política, e como liderança dentro de uma instituição. “O Instituto despertou muito em mim a busca pelo meu lugar enquanto mulher no meio social, a lutar pelos meus direitos, a ver que o espaço da mulher é onde a gente deseja estar”, conta. 

 

Obstáculos e Estratégias 

Ocupar uma cadeira de liderança, sendo uma mulher, traz consigo muitos obstáculos. “A gente enfrenta uma sociedade muito cruel, machista e um patriarcado muito forte quando ocupa uma coordenação. Mesmo encontrando no órgão que a gente está atuando o fortalecimento, a sociedade em si ainda é preconceituosa”, destaca Cesinha. Ela acredita que as capacitações como as promovidas pelo Ayabás são, de fato, a melhor alternativa para se enfrentar esses desafios e fazer com que as mulheres se sintam confortáveis quando ocupam essas posições.

Mas, antes de enfrentar esses problemas, os processos de capacitação que influenciaram nas formações dessas mulheres também tiveram suas próprias adversidades. Com a chegada da pandemia, todos os cursos foram adaptados para o formato online, e o acesso à internet foi a dor de cabeça número um. Para isso, algumas das saídas foram as gravações das aulas, e a criação de trabalhos fora do meio virtual para serem realizados entre um encontro e outro.

Lucineide Medeiros, professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), educadora popular, militante feminista e integrante da Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio, ficou responsável por ministrar a oficina de Gestão e Liderança. Ela conta que houve um envolvimento importante de todas as mulheres que participaram.

“No final os testemunhos foram de que o processo trouxe um estímulo para pensar o desafio de ocupar espaços na sociedade e gestar a sociedade que a gente quer, começando pelos lugares em que estamos”, relata a professora. Ela explica que, para além de ocupar esses espaços, foi passado que é preciso fazer isso a partir de princípios que não reproduzem os valores patriarcais e colonialistas, raiz de uma série de problemas sociais.

De acordo com Lucineide, todas as aulas tinham em média 45 mulheres. De diferentes faixas etárias, territórios, rurais, urbanas, mulheres que já eram militantes, ou que ainda não eram. Assim como mulheres de diferentes escolaridades. Por isso, ela teve o cuidado de organizar estratégias que alcançassem o máximo possível essas diferenças. Algumas atividades que implicam escrita, por exemplo, foram adaptadas para as várias formas de expressão que não somente a escrita, como também as expressões artísticas.

“Também haviam as questões de conciliar esses processos de participação com outros afazeres. Para uma parte das mulheres isso não é fácil, considerando que estão em múltiplas tarefas, como as domésticas. Também penso que tem o desafio de, estando nesse espaço virtual, ter condições adequadas para participar, como um ambiente silencioso, ventilado, que dê uma tranquilidade para se concentrar”, acrescenta.

 

Projetos Futuros

De olho no futuro, o projeto que as integrantes do Ayabás vislumbram no horizonte é a Escola de Formação de Lideranças de Mulheres Negras no Piauí. “Esse é nosso projeto maior, assim como trabalhar com crianças e adolescentes, incentivar porque eles são o futuro, os próximos líderes”, enfatiza Leninha. 

O grupo também pretende organizar mais uma edição do Encontro Estadual de Mulheres Negras, já que em 2021 não foi possível. A coordenadora, além disso, idealiza desenvolver oficinas de empoderamento e capacitação dentro do Memorial Esperança Garcia. “A gente também quer trabalhar a questão do afro empreendedorismo, está em alta e diz muito sobre a subsistência das mulheres negras”, finaliza.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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