Juristas negras criam metodologia de aprendizagem para viabilizar maior acesso e ocupação do Sistema de Justiça

A coletiva de Pernambuco apoiada pelo Fundo Baobá, Abayomi – Juristas Negras, desenvolveu uma metodologia própria com o objetivo de incidir e transformar o Sistema Nacional de Justiça

Por Brenda Gomes*

 

Ao longo do tempo, pessoas negras foram afetadas pelas estruturas racistas do país. Mesmo com recentes avanços relacionados a acessos e ampliação da escolaridade, ainda existem grandes desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Para as mulheres negras, afetadas pela discriminação de raça e gênero, a situação é ainda mais difícil. Essas desigualdades podem ser visualizadas nas diversas áreas, principalmente, nos espaços de poder. 

No Brasil, na maior parte dos ambientes de liderança e cargos de direção que são ocupados por mulheres, são por mulheres brancas. Somente 0,4% são pretas, segundo dados do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. No sistema judiciário, a presença dessas mulheres muitas vezes está apenas representada na base, enquanto homens ocupam os espaços de destaque. Pensando na diminuição dessas desigualdades que a Coletiva Abayomi – Juristas Negras tem realizado ações a fim de impulsionar a carreira de profissionais negras nesta área. 

De acordo com a advogada Débora Vanessa Gonçalves, uma das co-fundadoras da coletiva, a missão do grupo é combater de forma estratégica o racismo estrutural. O foco da organização é ocupar cargos nos órgãos que compõem o Sistema de Justiça Brasileiro. “Vivemos dentro de uma estrutura de poder que é originalmente racista e sexista, o que faz com que as mulheres negras sejam prejudicadas em todos os sentidos. Nossa missão, como coletiva de mulheres negras, é levantar nossas pautas nos espaços que estamos inseridas e levar também outras mulheres negras conosco”, afirma. 

O nome “Abayomi”, de origem yorubá, significa “encontro precioso”. O que diz muito sobre o grupo, que foi formado em 2019, em Pernambuco, após um encontro de juristas negras. O evento foi realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, seção Pernambuco (OAB/PE) no Dia  Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. 

 

Abayomi Juristas Negras em primeiro eventos na OAB Pernambuco

 

A coletiva é um dos grupos apoiados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Com o apoio do Fundo Baobá, um dos investimentos da coletiva foi no aperfeiçoamento da Metodologia Abayomi da Aprendizagem – MADA, que tem como proposta utilizar outras áreas de conhecimento para impulsionar o ensino e as aprendizagens. 

Desenvolvida pela Procuradora Federal e co-fundadora da Abayomi, Chiara Ramos, a metodologia envolve atividades como mentoring, coaching, treinamento estratégico e estudo em grupo afrocentrado. “Diferente dos cursos tradicionais, a técnica leva em consideração quatro pilares: o intelectual, que é toda a teoria exigida nos exames; o mental, que considera as nossas experiências psicológicas; o físico, e o espiritual, onde buscamos resgatar a identidade e autoestima das participantes e colaborar para o rompimento de diversas crenças limitantes”, afirma Débora. 

Com a pandemia de Covid-19, os encontros presenciais das turmas MADA deram espaço a turmas virtuais, o que permitiu a inclusão de alunas de outros estados, ao todo foram 102 pessoas matriculadas. Durante a formação, as alunas tiveram acesso a cronogramas de estudos semanais; encontros on-line para debate de metas; aulas e palestras; atendimentos individuais e simulações de provas objetivas e dissertativas online. Além da formação referente aos temas tratados nos concursos, as participantes são provocadas a ampliarem a capacidade de leitura política a respeito de temas fundamentais para a compreensão do racismo no Brasil.  “Nós não queremos entrar nos espaços apenas para ter números de mulheres negras, queremos estar nesses espaços para fazer diferença. Então, ter esse aquilombamento, onde a gente faz o reconhecimento da nossa negritude e o reconhecimento do nosso espaço, faz com que a gente ocupe os espaços de poder com um outra visão” declara Débora. A advogada ainda afirma que após muita luta, conseguiram na OAB/PE a cota de 30% para advogadas negras dentro do sistema. “Hoje nossa meta é ocupar espaços dentro da diretoria, e só chegaremos lá através de formas estratégias e nos articulando como quilombo”, completa.

Apesar da trajetória das mulheres negras juristas, apesar do empenho de coletivas como as Abayomis, o cenário da magistratura ainda é marcado por sub-representatividades. Segundo o censo divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021, apenas 15,6% dos magistrados do país se autodeclaram como pessoas negras. Quando é feita a segmentação entre sexo e raça, as mulheres negras ocupam apenas 5% dos cargos de juízes do Brasil, 553 dos 10.782. Menos de 5% de mulheres negras exercem os cargos de Procuradoras Federais, Juízas Federais, Procuradoras da Fazenda Nacional, Juízas estaduais, Procuradoras do Trabalho, Advogadas da União e Juízas do Trabalho. Em alguns órgãos, como a Justiça Militar, os conselhos superiores da magistratura e a Procuradoria da República, não possuem mulheres negras enquanto membros. Números que, para Débora, são frutos do racismo estrutural.

“Eu consigo identificar as sutilezas do racismo hoje. Quando a gente consegue entrar nos espaços para exercer a advocacia, é muito visível a falta de diversidade. E o que podemos fazer quando pegamos a nossa OAB? Sermos autônomas? Estamos a serviço da comunidade? Tudo isso são caminhos possíveis, mas não queremos só estes”. Para a advogada é preciso de fato incidir dentro dos ditos espaços de poder para transformá-los. “Os espaços são mínimos para as mulheres negras. Sozinhas não temos como equiparar a carreira com mulheres brancas que possuem privilégios financeiros e/ou familiares em carreira jurídica. Muitas vezes, dentro das nossas famílias, somos as primeiras a nos formar, ou fazemos parte da primeira geração que conseguiu chegar a ter um curso superior”, completa.

A pernambucana, Maria José de Oliveira,  sempre sonhou em seguir a carreira jurídica, e foi com a ajuda da MADA que ela conseguiu a tão esperada aprovação na OAB. “Conheci a Abayomi através de uma colega de faculdade. Quando iniciamos a formação com a MADA eu fiquei maravilhada, pois tudo aquilo era algo novo para mim, apesar de sempre ter tido uma proximidade com as questões sociais”. A advogada, agora licenciada, afirma que  nenhum outro curso preparatório abriria tantos horizontes como o oferecido pela coletiva. “Antes eu não acreditava tanto em mim, aí veio a primeira fase da OAB, depois a segunda fase e depois o resultado. Esse mês ainda [outubro de 2021] estarei lá fazendo meu juramento, para poder em breve dar a minha contribuição para as próximas que virão. A gente precisa estar lá para mudar a estrutura por dentro”, descreve Maria José.

 

Uma proposta de mentoria enegrecida

Uma outra realização possível com o apoio do Fundo Baobá, foi o desenvolvimento do programa Black Coach Abayomi. A partir de técnicas de autoconhecimento e de desenvolvimento pessoal e profissional, o programa tem como proposta resgatar a identidade e a autoestima do povo negro a fim de desenvolver competências para ocupar “espaços de poder”. 

“Os pilares da MADA são utilizados para a formação dessas profissionais, pois acreditamos que é uma metodologia que fala sobre nós enquanto quilombo. É um curso de coach afrocentrado. Para além das técnicas de coach, a gente inclui os quatro pilares da MADA, para que as profissionais que estão sendo formadas possam aplicar esses pilares em seus ambientes de atuação”, conta Débora Gonçalves.

A proposta inicial da formação era atender cinco lideranças, mas com o recurso foi possível atender 20 lideranças. Dentre elas a pedagoga, Viviane Carneiro, que encontrou na mentoria a possibilidade de aperfeiçoar os atendimentos que já realizava. “Em um determinado momento da minha vida eu achei que poderia encorajar outras mulheres com as minhas vivências, e passei a utilizar as redes sociais para disseminar esse trabalho. Mas, nada que eu pudesse comparar com a aplicação da MADA. Após a formação, eu me sinto com maior capacidade técnica para atender outras mulheres”, afirma.

A trajetória das mulheres juristas Abayomis também passou a ser registrada através de artigos no site da coletiva e no Anuário Abayomi Juristas Negras, materiais também produzidos com o apoio do Fundo Baobá. Foi possível incentivar a produção de 50 artigos, com temas relacionados a questões raciais, gênero e o meio jurídico. Uma espécie de registro da luta da coletiva para a incidência no Sistema Judiciário brasileiro.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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