As relações de poder que, direta ou indiretamente, sustentam o racismo estrutural fizeram parte dos temas mais comentados pelos(as) palestrantes da mesa “Filantropia e relações raciais: presente e futuro”. Esse painel fez parte do webinário Investimentos Filantrópicos para a promoção da equidade racial, organizado pelo J.P. Morgan e o Fundo Baobá, em 28 de outubro.
Alejandra Garduno Martinez, diretora da Fundação Kellogg para a América Latina, relembrou que a Covid-19 expôs, de forma contundente, as profundas desigualdades da sociedade com relação à justiça social e à equidade. Lembrou que o racismo se expressa de muitas formas, algumas invisíveis, mas a pandemia as tornou evidentes.
Átila Roque, Diretor Regional da Fundação Ford no Brasil, lembrou que o racismo está estruturado em uma consistente ideia, construída por séculos, de supremacia branca. “O mundo ocidental é tributário do racismo e o Brasil, historicamente, se colocou no centro desse processo. Basta olhar os números. Do total de 11 milhões de negros trazidos para a América e o Caribe, quase 5 milhões, algo em torno de 46%, vieram para o Brasil. Não dá para desconsiderar essa memória e a dívida que temos.”
O diretor da Fundação Ford destacou que o grau de dedicação e de investimento da filantropia brasileira é desproporcional ao imperativo ético que é a questão antirracista. “Não há nada mais central do que essa agenda”. Logo, o padrão de desigualdade não é sustentável nem rentável para o país. Por isso, é primordial reconhecer o papel de cada instituição e olhar com franqueza para o quanto cada uma é tributária da ideia de progresso ancorada no legado do colonialismo ou da supremacia branca.
Respondendo à pergunta da mediadora Fernanda Lopes, diretora de Programa do Fundo Baobá, Alejandra Garduno Martinez ressaltou que a filantropia avançou nos últimos anos, embora questões antigas continuem latentes, como a intolerância que se agrava frente às posições mais conservadoras de poder, como as que estão em curso na América Latina e Caribe. “Avançamos, sim, nesses indicadores, mas não o necessário. Ainda temos cenários políticos que, em seu conservadorismo, fortalecem discursos pró-racismo”, afirmou.
Dessa forma, reconhecer a existência do racismo estrutural e dar visibilidade a essa questão é um dos principais desafios da filantropia. “Precisamos gerar maior número de parcerias entre nós e com outros setores, junto a organizações filantrópicas diversas, mas é essencial avaliar como nos associamos, com quem nos associamos e quais as causas sociais que nos permitem aspirar bons modos de vida para todos.”
Embora na última década tenham sido implementados esforços para promover justiça social por meio da filantropia, segundo a diretora falta olhar se as entidades doadoras estão, efetivamente, voltadas para quem precisa, como as organizações negras e as que trabalham pela equidade.
“Na Kellogg, tínhamos essa preocupação desde 1968. Em 2007, iniciamos processo para estabelecer compromisso com uma declaração realmente antirracista, contribuindo para erradicar o racismo moderno”, afirmou. Nessa época, consolidou-se a ideia do Fundo Baobá, criado em 2008, inicialmente como um mecanismo. “Temos que ser claros, explícitos até, na forma como impulsionamos o acesso a um fundo que procura investir, a longo prazo, em modelos que promovam mudanças estruturais sistêmicas.”
Para Átila Roque, eventos que reunissem fundações, empresas privadas e um grande banco seriam impensáveis há alguns anos, quando a filantropia dava seus primeiros passos no país. “Dificilmente, teríamos essa tela diante de nós. Avançamos, sem dúvida, mas avançamos pouco e tardiamente.”
André Degenszajn, diretor-presidente do Instituto Ibirapitanga, também concorda que houve progresso da filantropia no Brasil, principalmente porque os debates não se restringem mais aos pequenos círculos. Hoje, ocupam também jornais e discussões em família. Mas é preciso avançar mais. “Quando olhamos as estatísticas em qualquer dimensão, como educação, renda, violência, o quadro é assustador. E a ausência de pessoas negras em lugares de poder e não só na política, mas em escolas, por exemplo, é acintosa.”
Para Degenszajn, é fundamental as organizações buscarem coerência entre seus investimentos para fortalecer o movimento negro e sua constituição, inserindo, por exemplo, pessoas negras na equipe. “Muitos avanços foram alcançados por esses movimentos, como a Lei de Cotas e a Lei Caó. Essas instituições não estão apartadas do racismo estrutural quando se fala do acesso delas a fontes de financiamento. Assim, existe a necessidade de construir caminhos para que isso aconteça”, acrescentou.
“Temos que ver o quanto nossos mecanismos e critérios de doação servem realmente para permitir o acesso de organizações negras, de forma que seja cada vez mais acessível empoderar atores que precisam ser promovidos”, afirmou Átila. Um ponto essencial levantado pelo diretor da Fundação Ford é a dúvida que está no DNA da população em decorrência do histórico da colonização, sobre a capacidade dessas organizações serem protagonistas quando beneficiadas com apoio de longo prazo. “Volto a dizer que não existe fórmula, mas temos que olhar onde alocamos os recursos e fazer essa pergunta constantemente. É preciso estimular a dúvida e promover, sem medo, o protagonismo negro.”