Apoiada pelo Fundo Baobá, a organização alcançou visibilidade local, nacional e internacional
Por Danielle Souza*
Apesar de representarem 52,2% da população brasileira (IBGE – 2020), as mulheres ainda são subrepresentadas em espaços de poder e liderança. No mercado fotográfico, isso não é diferente. A grande maioria dos profissionais de fotografia são homens. Segundo pesquisa feita pela Women Photograph, iniciativa online com mais de 850 fotógrafas documentais ao redor do mundo, a representatividade de mulheres nos cliques das principais agências de notícias internacionais em 2018 foi inferior a 10%. Se feito um recorte racial, as mulheres negras têm ainda menos oportunidades de mostrarem os seus trabalhos e de ocuparem espaços historicamente negados como este.
Em contrapartida a essa realidade, surge em 2016 a Coletiva NegrasFotosGrafias, através do movimento e articulação de fotógrafas negras do circuito carioca, a fim de apresentar novas narrativas produzidas por e para mulheres negras. NegrasFotosGrafias foi uma das coletivas apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Intitulada no feminino, a Coletiva realiza exposições, rodas de conversa, debates e lives que colaboram com a educação visual, a interlocução de linguagens, ensino de fotografia, criação e memória viva. O objetivo é utilizar isso como instrumentos afirmativos para equidade racial e de gênero. Sua missão é fomentar a visibilidade das mulheres negras e suas produções, assim como a consciência de afrovisualidade brasileira a partir de narrativas visuais afirmativas, antirracistas e antissexistas. “O nome evidencia o protagonismo de mulheres negras que, ao registrar imagens, escrevem narrativas e grafam seus nomes na embranquecida fotografia e visualidade brasileira”, afirma Adriana Medeiros, organizadora do Projeto Olhar e Escuta em Rede de Criação.
A iniciativa tem por objetivo estimular as mulheres negras ao desafio de se reconectarem aos territórios de afeto internos e externos, através da reflexão, aprimoramento e publicização de suas trajetórias e ações diante do mundo e da localidade. A Coletiva atua em regiões periféricas do Rio de Janeiro, como Duque de Caxias, zona norte e oeste da cidade, verdadeiros ‘berços de formação, produção e circulação visuais’. “Esses territórios são guardiões da história, cultura e saberes populares, reinventores cotidianos da identidade viva brasileira. Também são palco de negligência e violação de direitos pelo poder público e privado, que se aprofundam, adoecem e matam nossos povos”, declara Adriana.
Atuação em meio a pandemia
Assim como outras organizações, antes da pandemia, as atividades do grupo eram desenvolvidas de forma presencial. Mas, a perda do contato físico não impediu que elas avançassem em suas conquistas no espaço acadêmico, escolar, entre coletivos e lideranças. Com o apoio do Fundo Baobá foi possível aprimorar conhecimentos em gestão, elaboração de projetos, planejamento, gestão financeira, marketing digital, comunicação interna e externa, além de ajustar as novas capacidades tecnológicas, atraindo mais seguidores nas mídias sociais. Essa migração para o digital possibilitou conexões com outros coletivos no Rio de Janeiro, em outros lugares do Brasil, países da América Latina e Estados Unidos, evidenciando a atuação da Coletiva em âmbito local, nacional e internacional.
Segundo Adriana, essa rede de criação já era um dos objetivos almejados pela Coletiva há algum tempo. “Estamos finalizando novos conteúdos com novas conexões e parcerias com potencial alcance. Essa rede busca intervir artisticamente na produção de sentidos com efeito político para preservação da memória das mulheres negras e na construção de identidades referenciadas em nossa ancestralidade, atualizando a própria identidade brasileira”, afirma a coordenadora. Adriana ressalta também o quanto esse processo tem sido rico e prospectivo, não só na busca por novas parcerias, mas também no fortalecimento das antigas.
A Coletiva NegrasFotosGrafias tem, atualmente, 9 membras. Ao longo do projeto foi possível conectar-se a mais 25 profissionais envolvidas nas capacitações e produções, além de grupos de estudantes e projetos atendidos pela Coletiva, onde são aplicados os aprendizados. Só nas mídias sociais da instituição, foram mais de 400 pessoas impactadas com as lives e aulas promovidas, sendo a grande maioria mulheres negras.
A professora Simone Ricco faz parte da Coletiva desde o início e confessa que esta é uma experiência desafiadora, que envolve esforço mas que resulta em fortalecimento. “Conciliar a vida profissional com as ações da Coletiva me tira da zona de conforto, pois as demandas envolvem criação artística e criação de meios para transformar os projetos em ações concretas”, afirma.
Simone reforça ainda que o formato de atuação colaborativa da Coletiva foi de suma importância para sua atuação no projeto, beneficiando-a e a todas as membras, com a ampliação de conhecimentos. Para ela, os relatórios de avaliação também foram importantes no processo, pois ensinaram sobre organização, apontando questões técnicas e estruturais que as fizeram aprender sobre pontos fortes e fracos presentes no percurso da Coletiva. “Também vale destacar os aprendizados sobre autocuidado e psicologia, resultantes dos encontros com o Instituto AMMA Psique e Negritude e do curso de Comunicação Não Violenta, além de todas as mudanças aplicadas em nossa prática a partir das oficinas. A aprovação no edital é uma aprendizagem sobre conquistas possíveis a partir da mobilização de mulheres negras. Aprendi a acreditar mais em nós”, finaliza a professora.
Outra membra que também está presente na Coletiva NegrasFotosGrafias desde a sua idealização é a antropóloga e professora universitária, Bárbara Copque. Para ela, neste espaço é possível estar em irmandade, refletindo sobre os regimes de visualidades e representações que envolvem as mulheres negras. “As imagens pretas são violadas, controladas e,constantemente, demandam questões. Se antes pensar tais questões eram individuais, pessoais, hoje toma-se outra dimensão. É uma questão política que precisamos enfrentar e confrontar”, afirma. Bárbara ressalta ainda que, ao participar do Programa, pôde pensar em conjunto na estruturação das ações da Coletiva, como: cursos de formação sobre diversas áreas pertinentes à organização; produção de uma memória e sua preservação, bem como seu compartilhamento.
Olhar e escuta para o futuro
A Coletiva NegrasFotosGrafias se prepara para fazer o lançamento do seu website, além de também ter criado o seu canal no YouTube, outra ferramenta de divulgação das suas ações. A logomarca da organização também mudou e hoje, ressignificada, está mais alinhada às premissas do grupo. Ela enfatiza agora o compromisso político com a ancestralidade, o feminino e a fotografia a serviço da igualdade. Foram feitos investimentos na infraestrutura, com equipamentos para armazenamento, e banco de imagens, para gerar conteúdos narrativos visuais em abrangência estadual.
A Coletiva NegrasFotosGrafias também recebeu convites para participar de reflexões na pesquisa e no meio fotográfico diante de outros coletivos negros e feministas. A organização desenvolveu reportagens através de memórias locais e a série Ciranda das Rainhas, com lideranças negras, onde cada ativista reconheceu a luta uma da outra, mesmo em territórios e campos de atuação diversos.
Em termos de perspectivas para o futuro, a Coletiva pretende atuar na produção de microreportagens; séries de conversa audiovisuais; oferecimento de curso de formação visual antirracista e antissexista, trazendo referências femininas pretas e ancestralidade; e inserção no mercado de acervos fotográficos. Além disso, elas também aguardam pelo resultado de projetos submetidos a editais artísticos com outros coletivos e estudam a criação de uma rede de corresponsabilidade com acervos locais e visualidades produzidas por pessoas negras.
Com o foco no olhar sobre as mudanças nos territórios segundo as dificuldades na pandemia, a Coletiva fez a preservação de acervos particulares, histórias de grande impacto da imaginária local. Segundo a coordenadora Adriana Medeiros, aprender a governança em grupo também as potencializou a realizar seus sonhos e projetar o futuro sem restrições, inspirando outras lideranças e outros projetos. Além da técnica, as formações auxiliaram na visão política do mundo relacionada aos aprendizados internos como autocuidado, paciência, coragem, autoestima, sabedoria, autoconhecimento e confiança no grupo, proporcionando valorização de cada membra e equilíbrio interno.
“Estamos mais instrumentalizadas para produzir novas visualidades e produzir alicerces de formação visual e fotográfica, que incluam a perspectiva histórica local e política, técnica decolonial. Esse período representou um desfecho de tudo o que provocamos e buscamos por um ano e hoje podemos tornar visível. Aprendemos a resistir e acreditamos”, conclui Adriana.
*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.