Mulheres negras periféricas de Recife (PE) se reinventam em projeto de formação política feminista e antirracista

A Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Espaço Mulher e Cidadania Feminina promoveram em conjunto formações com mulheres de bairros da capital pernambucana, além de se fortalecerem institucionalmente

Por Jamile Araújo*

 

Com o objetivo de fortalecer lideranças negras, femininas e periféricas de Recife (PE) e região metropolitana, o “Projeto Olori: mulheres negras e periféricas construindo lideranças” foi um dos projetos apoiados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Executado coletivamente pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Espaço Mulher e Cidadania Feminina, o projeto realizou formações com mulheres de bairros da capital pernambucana, e ações de fortalecimento das três organizações que construíram a iniciativa. A trajetória de Ediclea Santos, Liliana Barros e Rosa Marques, coordenadoras do projeto Olori, mostra a resistência e reinvenção das mulheres negras nas estratégias de combate ao racismo e ao machismo. 

Liliana Barros faz parte do coletivo Cidadania Feminina, uma organização de mulheres negras periféricas sediada no Córrego Euclides, em Recife. Liliana explica que os principais eixos de atuação do Cidadania é o enfrentamento da violência contra as mulheres e o combate ao racismo.  “Eu comecei pelo Cidadania Feminina, depois integrei o Fórum de Mulheres de Pernambuco, e em 2016 nasceu a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e comecei uma aproximação. Hoje eu integro a Rede de mulheres Negras, trabalho na sala da rede”, diz. Liliana também integra a Articulação de Mulheres de Bairros, composta por nove entidades que se organizam para se manterem na atual conjuntura.

O Espaço Mulher é um grupo de mulheres negras, periféricas, feministas e antirracistas, que tem 22 anos de história, seu nascimento data de 22 de janeiro de 1999, na comunidade de Passarinho em Recife. “Começou com um grupo de trabalhadoras domésticas. Eu vim do Morro da Conceição, lá eu já fazia parte do grupo de mulheres do Morro, já fazia teatro e já conhecia o fórum de mulheres”. Clea, como Ediclea é chamada por suas companheiras, relata que entrou para a militância nos anos 80. “E até hoje a gente faz a resistência diária, pela falta de políticas públicas. Além de ser um grupo de mulheres negras que luta por várias coisas aqui na comunidade, como saúde e educação, porque é uma comunidade pequena, que a escola e a saúde que tem não agrega todos os moradores”. Assim como Clea, Evandra Dantas, conhecida como Vânia, também faz parte do Espaço Mulher e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. “Eu e Clea estamos desde o começo do Espaço Mulher, porque nós éramos trabalhadoras domésticas”, diz.

Desde 2015 o Espaço Mulher realiza uma ação chamada “Ocupe Passarinho”. Antes da pandemia as mulheres faziam palanque feminista na rua, carta política, feira agroecológica e oficinas para mulheres. Clea conta ainda que em Passarinho falta lazer e esporte para os jovens, por isso a comunidade tem realizado diversas reuniões com secretarias em torno dos temas segurança pública, lazer e esporte. 

Com uma trajetória em movimentos sociais desde a década de 80 entre movimentos de juventude e movimento negro, Rosa Marques hoje é militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Rosa relata que a Rede foi fruto do processo de construção da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo à Violência e pelo Bem Viver. A Marcha aconteceu em 2015 e reuniu em Brasília mais de 100 mil mulheres negras de todo o Brasil. “Quando a Marcha das Mulheres Negras iniciou sua construção, a gente foi sendo convidada para articular as mulheres negras nos estados. Então se formou um comitê impulsor de Pernambuco e cada uma, a partir do seu local, de suas possibilidades financeiras, pois não tínhamos recurso mesmo de mobilizar, foi juntando essas mulheres”, afirma.

Segundo Rosa, fizeram parte dessa construção diversas mulheres, organizadas em coletivos ou não. “E a gente foi construindo essa marcha nos processo de formação política. Porque a gente não queria que as mulheres fossem para a Marcha por irem, a gente queria que elas soubessem porque estávamos indo, porque estávamos marchando contra o machismo, contra o racismo e pelo bem viver”, ressalta. 

Rosa conta que elas saíram da Marcha com dois compromissos, o primeiro foi realizar a Marcha em Recife, depois de Brasília, para as mulheres que não foram. E “o segundo foi o fechamento do comitê. E aí nasce a Rede, porque a gente fechou o comitê, mas as mulheres disseram ‘nós não queremos mais voltar para as nossas casas e dormir’”, diz Rosa.

 

Formação política e fortalecimento das organizações

De acordo com Rosa, a ideia do projeto surgiu para fortalecer umas às outras enquanto segmento de mulheres negras, pois a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco já possui uma inserção no campo da mobilização de recursos e já teve outros projetos financiados, mas o Espaço Mulher e o Cidadania Feminina possuem menos estrutura e necessitavam bastante de apoio financeiro. “Quando a gente viu esse edital a gente pensou: ‘é agora’”, afirma.

O Projeto Olori contou com formação política virtual para mulheres negras periféricas organizadas e não organizadas em coletivos, beneficiando cerca de 200 pessoas. Mas, possibilitou também que fossem adquiridos equipamentos, que houvesse a sistematização das histórias das organizações, a catalogação dos livros da Biblioteca Maria Antônia, do Cidadania Feminina, entre outras coisas.

“Nosso projeto foi muito interessante porque foi um trabalho de formação com mulheres da articulação de bairros de várias periferias da cidade do Recife e região metropolitana. Ele foi voltado para a questão da formação, e iria ser feito presencialmente, aí chegou a pandemia, foi todo mundo naquela loucura, sem saber como iria acontecer”, relata Liliana.

Ela conta que houve muitas formações e diálogos com as pessoas do Fundo Baobá para organizar como seria a execução do projeto nesse período. “Então a gente começou o grande desafio de fazer as formações online, com mulheres que muitas vezes tinham muita dificuldade com o acesso, porque para a gente é tudo muito novo. A Rede disponibilizou crédito para os celulares das mulheres para contribuir, fez orientações de como entrar”, relata.

Mesmo com os desafios impostos, Liliana compartilha que as formações tiveram participação constante. “As mulheres estavam acompanhando ali com toda dificuldade. Teve um fato que muito me surpreendeu e não esqueci: foi a Elisângela Lopes, que ela estava no quintal de casa e com ela tinha mais quatro pessoas assistindo a formação’”, conta. 

Clea diz que o projeto veio também para dar visibilidade e contribuir com equipamentos para o Espaço Mulher. “Ajudou a gente a comprar vários equipamentos que a gente não tinha, computador, telão, caixa de som, veio muita coisa pra gente. Nós também somos artesãs, o dinheiro dos artesanatos que  a gente vende é para um lanche, para pagar uma água ou luz. Então a gente só tem a agradecer”.

Liliana ressalta que além da catalogação da biblioteca e de materiais, a sistematização da história das organizações foi muito importante. “O Cidadania Feminina começou num quintal de uma casa, mulheres tomando cerveja e foi aumentando o número de mulheres. A gente sabe da história, mas a gente não tinha isso registrado”, descreve. A militante afirma ainda que o projeto deixou frutos não só no Cidadania, mas por onde ele passou com a formação. 

O Espaço Mulher deu um grande passo a partir do projeto: a produção do estatuto da organização. “A gente tinha um problema seríssimo porque a gente não tinha grana,  e esse projeto deu a oportunidade de estarmos fazendo nosso estatuto, está no cartório”, relata Clea. Ela diz ainda que as mulheres permanecem no grupo da formação e que estão animadas para saber se terá continuidade. “Foi um projeto diferente porque nem todas as mulheres sabiam abrir o aplicativo, e a maioria que se inscreveu permaneceu do início até o fim. Foi um projeto que deixou frutos e, para gente, foi muito rico”, reforça.

Além do grande desafio imposto pela pandemia de covid-19, as mulheres apontam que coordenar um projeto coletivamente foi algo novo para elas. “A gente não tinha feito isso ainda, a gente faz cada uma no seu segmento ou organização. Então foi um grande desafio coordenar um projeto juntas. Buscando outras mulheres que não estavam nem na rede, nem no Espaço Mulher, e nem no Cidadania Feminina, para somar nesse processo de formação política e a gente teve muitos aprendizados”, destaca Rosa.

 

O processo em meio a pandemia 

As coordenadoras do projeto consideram que a pandemia foi o pico da surpresa desagradável. “A gente estava com o projeto presencial, mas quando chegou a pandemia a gente se deparou com as nossas mulheres em processo de fome, depressão, inquietação, de doenças, e a gente no início não olhou muito para o projeto, fomos cuidar de nós mesmas. Porque ou a gente cuidava ou a gente ia se perder”, explica Rosa. 

Rosa afirma ainda que a pandemia também trouxe mudanças de comportamento e novos conhecimentos: “Agora, minha filha, pede para Ediclea, Vânia, e Liliana organizarem uma live aí. Daqui há um dia elas estão fazendo webnário. Isso foi um aprendizado. A gente não tinha acesso a essas informações, mas a gente buscou e executou o projeto lindamente”, aponta. Vânia reage ao comentário de Rosa sobre o webnário: “Não sei fazer ainda, mas se me botar para fazer eu faço”, diz de forma descontraída. 

Um dos aprendizados com o projeto que Liliana pontua foi o de fazer planejamento.  “Para nós que somos de organizações periféricas, a gente não pensa muito no planejamento, a gente planeja, mas o dia a dia da gente é nos ‘corres’ mesmo. Então, parar para pensar como ia ser, planejar essas ações foi uma parte da formação que nós tivemos”.

 

“Enquanto eles pensam em nos matar, coletivamente a gente resiste para não morrer”

“Eu acho que o Fundo Baobá poderia proporcionar novamente esse tipo de projeto, e também proporcionar que outras organizações possam fazer. O Espaço Mulher agora com o estatuto em mão, ele pode ter um espaço de onde buscar recursos”, pontua Rosa.

Liliana reflete sobre o futuro na perspectiva do momento atual que o Brasil atravessa: “Quando você pergunta o que esperamos para frente, não consigo pensar. Porque para nós que somos de bairros populares, a situação não está fácil, está extremamente difícil”. Ela acredita que é preciso continuar fortalecendo as lideranças que estão na base. “Porque muitas de nós já não conseguimos reunir tantas mulheres porque as dificuldades estão deixando as mulheres sem acreditar, o sentimento do descrédito começa a aflorar com muita força”, reitera. Ela diz ainda que sonha com projetos mais acessíveis para quem é da base. 

Fico pensando como fortalecer esses grupos. A gente só entrou nesse projeto porque a gente estava em grupo, no coletivo. Porque a maioria das organizações pedem que os grupos tenham CNPJ, os grupos periféricos de mulheres negras ‘dançam’, todas as vezes que a gente escreve”, diz Clea sobre os desafios para o futuro. Clea conta que o Espaço Mulher resiste porque possui grandes parceiras que “chegam junto em termos de alimentação, de doação, dando oficina, então a gente tem uma grande parceria que nos fortalece. E a gente só se fortalece quando está no coletivo. Porque se a gente estivesse sozinha aqui em Passarinho, pode ter certeza, a gente não tinha saído do canto”.

Clea finaliza reforçando sua gratidão ao Fundo Baobá e ao projeto. “Só tenho a agradecer a esse projeto, por esse apoio, por fazer tanta gente se reconhecer como mulher negra, porque a gente precisa falar de racismo. A gente tem que sustentar que é mulher negra, periférica, e a gente resiste. Enquanto eles pensam em nos matar, coletivamente a gente resiste para não morrer”, conclui.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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