Agosto negro e o cuidado com a saúde mental

No mês passado, foi celebrado o “Agosto Negro”. Sua origem foi a luta do movimento negro nos Estados Unidos, na década de 1970, após a prisão e morte de George Lester Jackson, em 21 de agosto de 1971, na prisão de San Quentin, na Califórnia.  Ele foi preso e condenado à prisão perpétua depois de ter roubado 70 dólares em um posto de gasolina. 

Durante o tempo em que permaneceu preso, estudou economia política e, ao mesmo tempo, se destacou como líder da resistência negra – o que levou ao seu assassinato por um agente penitenciário. Sua morte fez com que milhares de pessoas fossem às ruas, clamando pelo fim do racismo e do extermínio da população negra. Quatro décadas depois, o povo negro continua nas ruas, mesmo diante de uma pandemia mundial,  afirmando que vidas negras importam, sim!

A luta antirracista requer resistência, é verdade, mas também demanda da sociedade uma análise aprofundada dos impactos do racismo em todas as fases da vida de suas vítimas,  que sofrem com o preconceito, a discriminação e desenvolvem uma série de traumas. Discutir o racismo e as suas consequências, além de frisar a importância dos cuidados com a saúde mental, é de extrema importância para a promoção da equidade racial. Iniciativas como a da Articulação de Psicólogos Negros, que dedica um mês à saúde mental e à luta antirracista, são fundamentais.

Apoiado pelo Fundo Baobá para Equidade Racial no edital de doações emergenciais no combate ao Coronavírus, o psicanalista, doutorando da PUC-SP e membro do Coletivo Margens Clínicas, Kwame Yonatan Poli dos Santos, organizou a cartilha “Saúde mental, relações raciais e Covid-19”, em parceria com a psicanalista Laura Lanari. A cartilha contém cinco textos que pretende dialogar com a população negra sobre os problemas relacionados à vivência do racismo. Confira sua entrevista: 

De qual forma o racismo impacta a saúde mental das pessoas negras?
Os efeitos das práticas do racismo na subjetividade devem sempre ser escutados na sua singularidade ou podemos incorrer no erro de universalizar que toda população negra se afeta, e responde da mesma maneira, com as práticas de racismo. Nossa aposta deve ser a construção de saídas singulares, coletivas ou individuais. No entanto,  se entendermos que o racismo é um dado estruturante das relações,  compreenderemos que é um sistema que estrutura o laço social, assim sendo,  temos que pensar como esse sistema atua em nós e como respondemos a ele. Isso significa que algumas pessoas e grupos construirão saídas mais ou menos a reexistir, ou seja,  afirmar a sua existência na sua diferença diante dessa ferida colonial que sangra. É importante mencionar que o racismo estrutura o campo das relações. E subjetiva tanto as pessoas negras quanto as brancas, pois não é possível silenciar, discriminar, humilhar, violentar, matar sem se tornar monstruoso, isto é,  desumanizar-se também nesse processo. Por fim,  possuímos indicadores no âmbito da saúde mental de que o racismo produz um sofrimento psíquico intenso em uma grande parcela da população negra, produzindo efeitos no horizonte do desejo. Cito o exemplo  dos dados de 2016 do Ministério da Saúde que mostram uma prevalência do aumento do suicídio em jovens negros, isso nos mostra uma face do genocídio .

Kwame Yonatan Poli dos Santos

O racismo sofrido durante a infância e adolescência interfere na vida adulta e nas relações pessoais do negro?
Como disse anteriormente,  o racismo é um dado estruturante das relações e pode deixar marcas no campo do desejo de modo a violentar, desde muito, a infância a população negra. Portanto, escuto muitas mulheres negras  e homens negros na clínica relatarem vivências violentíssimas na escola  e até mesmo na família, que deixaram sequelas profundas na forma de se posicionar diante do mundo até a vida adulta, chegando a internalizar como mecanismo de sobrevivência,  por exemplo:  adaptar-se o tempo todo para  ser aceito e/ou reconhecido por pessoas brancas. Como diz a psicanalista Neusa Santos Sousa, autora da obra Tornar-se Negro (1983), ser negro é estar submetido a uma dupla injunção: de odiar sua negritude (cabelo, história etc) e almejar os ideais da branquitude. Logo, é  preciso ressignificar constantemente a vivência da negritude de maneira a produzir linhas de singularização, da experiência de enegre-ser produzindo outros sentidos para além da captura binária resistência/sofrimento.

Como é falar da importância da saúde mental, sem demagogia, considerando as desigualdades sociais, o genocídio dos jovens negros, o encarceramento em massa da população negra, entre outros problemas?
É preciso compreender o genocídio de maneira ampla, isto é, para além daquele policial que atira ou do que enfia a faca. Existem os amoladores de faca (ideia do professor da UFRJ Luís Antônio Baptista) – ‘antes do punhal ser cravado nas costas do mestre Moa do Katende (capoeirista, compositor, percussionista, artesão e educador, assassinado em outubro de 2018)  existiram aqueles que amolaram o punhal, prepararam o terreno, autorizando a morte, enfraquecendo a vítima antes do golpe mortal. Nessa perspectiva, antes de o jovem negro ser preso, assassinado ou morrer de frio na rua, existe uma série de pessoas e instituições que amolaram o punhal. Logo, o genocídio é uma trama de poder que mata aos poucos. O genocídio também se refere aquilo que nos mata aos poucos  ao sequestrar o futuro daqueles que ainda nem viraram adultos. Quando apontamos os dados sobre prevalência do suicídio dos jovens negros,  essa é a ponta do iceberg, a parte imersa conta processos de subjetivação coloniais que sequestram a potência,  aniquilam as perspectivas de sonhar um futuro. Uma das piores formas de miséria humana é a de não poder sonhar mais. O cuidado em saúde mental deve produzir sonhos, isto é, por meio dele deve-se investir em estratégias de produção de energia vital,  revitalizando esse sujeito para que possa protagonizar sua vida.

Em junho de 2020, com o apoio do edital de doações emergenciais do Fundo Baobá para Equidade Racial, e em parceria com o coletivo Margens Clínicas, você, ao lado da Laura Lanari, organizou a cartilha “Saúde Mental, Relações Raciais e Covid-19”, fale sobre esse trabalho.
A cartilha é fruto de muitas mãos. Ela nasce em 2016 com um convite para realizar oficinas de relações raciais e saúde mental em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da zona sul de São Paulo. À medida que ia passando por outros Caps ia percebendo a dimensão racial como uma chave de análise da instituição. Então, por exemplo, lembro de uma equipe, majoritariamente branca, que não se sentia à vontade em fazer roda com os usuários e, consequentemente,  tinha várias dificuldades de se enxergar racializada. Com a pandemia temos a descaracterização dos serviços, mas também um ‘relançar dos dados’, a oportunidade dos Caps se reinventarem e fazerem a rede a partir da transversalização da temática racial. A cartilha traz a proposta do Aquilombamento da Rede Sul, em São Paulo (SP), que se reformulou com a pandemia para o formato on-line. Nessa perspectiva, o quilombo é um mundo sem os muros da colonialidade. Aquilombamento é a construção do comum que toca o plano singular, uma reorientação vital,  a partir da perspectiva  interseccional de uma analítica das relações de poder e seus efeitos no corpo. A cartilha tem cinco textos que versam sobre saúde mental, Covid-19, relações raciais,  psicanálise e saúde pública.

Cartilha Saúde Mental, Relações Raciais e Covid-19

Leia a cartilha “Saúde Mental, Relações Raciais e Covid-19” aqui

Saúde das mulheres, um retrato sem retoques

Nesta entrevista para o boletim do Fundo Baobá, a psicóloga Clélia Prestes desvenda aspectos importantes da condição física e mental das mulheres negras

Em 28 de maio comemora-se o Dia Internacional de Luta pela Saúde das Mulheres. A data é mais uma oportunidade para discutir a condição das brasileiras e, mais especificamente, da mulher negra. Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) estabeleça uma série de direitos que fazem parte da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, criada em 2004, na prática não são todas que têm acesso a exames de mamografia, papanicolau, ao parto humanizado ou ao planejamento familiar.

Levantamento realizado em 2018 pelo Instituto Datafolha a pedido da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) mostrou que 58% das mulheres atendidas por profissionais da ginecologias recorreram ao serviço público, enquanto 20% acionaram os planos de saúde e 20% optaram pelo atendimento particular. Das entrevistadas, 8% não costumam ir ao ginecologista e 5% nunca foram. O tema saúde das mulheres negras e saúde da população negra, em geral, são de especial interesse do Fundo Baobá e integram o eixo prioritário de investimento Viver com Dignidade. 

A pesquisa revelou ainda que o hábito de procurar esse especialista é mais comum entre as moradoras das regiões metropolitanas do Sudeste e cresce conforme a escolaridade e a condição social. Entre as que nunca recorreram a um ginecologista estão as que residem no interior, as mais jovens e as mulheres de renda mais baixa. A dificuldade de acesso ou acesso restrito são os motivos relatados como principais razões. Realizada entre 5 e 12 de novembro de 2018, a pesquisa ouviu 1089 brasileiras a partir de 16 anos, pertencentes a todas as classes econômicas, distribuídas por 129 municípios e representa 80.980 milhões de mulheres. Por trás desses números existem nomes e vidas, que são impactadas pelo enorme peso imposto pelo machismo e pelo racismo existentes neste país. 

Há ainda impedimentos psicológicos e ideológicos relacionados sobretudo à mulher negra, como fala Clélia Prestes, doutora em Psicologia Social, integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude, de São Paulo. Sua tese de doutorado, intitulada “Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver“, foi defendida em 2018, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Ela explica que, numa sociedade estruturada pelo patriarcado e pela supremacia branca, discursos, relações e imagens sobre a mulher negra são permeadas por ideologias. “Cada ser humano na sociedade tem sua história pessoal, sua trajetória de vida, seus pertencimentos e também uma construção social totalmente influenciada por esses discursos e por questões de interseccionalidade.”

Essa intersecção de eixos de opressão influenciam a vida dessas pessoas. E esses eixos têm a ver com o pertencimento racial, identidade, orientação sexual, nacionalidade ou origem, gênero, localização geográfica, habilidade ou deficiência, geração, classe, entre outros. “Portanto, mulheres negras se constituem a partir de recortes em uma sociedade em que também representam uma grande parcela da população pauperizada. Quanto mais os eixos se conectam, não se tem apenas a soma de prejuízos, mas a multiplicação de mazelas e o efeito nocivo de cada um”. 

Clélia Prestes, Psicóloga e doutora em Psicologia Social, integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude

O desafio é, além de lidar com essa intersecção, pensar  em saúde e em estratégias que atinjam a dimensão pessoal dessa mulher e suas relações. “Muitas vezes, apesar de termos acesso, não temos garantido o cuidado e a atenção às nossas especificidades. É necessário cuidado específico e ações afirmativas para reverter o prejuízo que cerca a mulher negra a partir dessas formas de opressão”.

Em relação à saúde mental, segundo a psicóloga, há impactos negativos e positivos interferindo na saúde. Negativamente, atuam os discursos  associados às diferentes ideologias discriminatórias. E positivamente, como ela constatou na pesquisa de mestrado (intitulada Feridas até o coração, erguem-se negras guerreiras. Resiliência em mulheres negras: transmissão psíquica e pertencimentos, 2013), estão os processos de resiliência influenciados pela transmissão psíquica transgeracional.

“Minha pesquisa de mestrado mostrou que mulheres negras são positivamente afetadas por superações de experiências de grande adversidade que aconteceram em gerações anteriores ou posteriores. Essas experiências influenciam tanto a segurança quanto os recursos para que elas possam, em várias situações, enfrentar grandes desafios.” 

Outro elemento é o simbolismo associado à mulher negra que, por um lado traz um peso, como o de guerreira – muito associado a elas pelos estereótipos –, por outro traz a vantagem de sugerir que essa mulher tem muita força. Essa crença, aliada à desumanização da mulher negra, faz com que recebam menos cuidado.

“Aspectos que influenciam os processos de resiliência são os significados compartilhados em manifestações africanas e afro-brasileiras que resgatam história, conquistas e a possibilidade de enfrentar e superar, historicamente e até hoje, os diversos desafios que nos foram impostos e os os contextos de vulnerabilidade individual, social e programática a que estamos submetidas”, diz. “Esses significados permitem que nós nos identifiquemos com as grandes heroínas e figuras que nos inspiram, mesmo com grandes prejuízos, a enfrentar e buscar saídas para nós mesmas e para os nossos.”

Em sua tese de doutorado, procurou identificar estratégias de promoção da saúde de mulheres negras. Do universo pesquisado, tomando por base mais de 800 artigos sobre o tema em bancos de dados diversos, apenas 14 tratavam efetivamente da promoção de saúde dessa população. Decidiu comparar esses resultados com ações promovidas por mulheres negras nos movimentos sociais e de promoção da equidade. 

“Entrevistei pessoas que praticavam estratégias reconhecidas. O retrato é composto por figuras sociais bastante atingidas por adversidades que, ao mesmo tempo, se empenham em cuidar de si, dos seus, das suas. Enquanto cuidam, também pensam sobre contexto social, economia, política e sobre a natureza”, revela. A psicóloga afirma que isso evidencia a potência de produção de conhecimento da mulher negra – seja na academia ou no movimento social – o que reverbera em melhorias para toda a sociedade. 

Escancarando diferenças – Nesse quadro da pandemia no Brasil, Clélia confirma que a posição da mulher negra continua a mesma, infelizmente, ou seja: em desigualdade de acesso a direitos. O que, segundo ela, é resultado de um quadro histórico de  genocídio. “Este país foi programado não para garantir direitos iguais, mas para assegurar privilégios de alguns às custas do prejuízo e extermínio de muitos”, afirma. “Nessa configuração, o que está em curso é o racismo estrutural que, em forma de genocídio, atinge nossos corpos com o assassinato de grande número de jovens negros – mortos que superam o de países em guerra. Isso se configura também como epistemicídio e ataque à nossa capacidade de ter projetos e sonhar com o futuro.” 

No caso de mulheres negras, Clélia explica que não só elas são atingidas por piores condições de saúde, como também pela crença de que, tendo menos humanidade e mais força, precisam de menos cuidado ou podem ser deixadas à própria sorte ou azar. A psicóloga defende que, enquanto o país não atribuir igual valor para diferentes características físicas, pertencimento racial, contribuições, fontes de conhecimento e práticas de cuidado, esse será um país fadado a uma distorção em sua identidade. 

“Um dos conceitos centrais da minha tese foi o bem viver. E foi central não por acaso, mas porque está inserido nos movimentos de mulheres negras e porque serve para pensar esse momento e em uma sociedade com relações melhores”. Ela finaliza, explicando que os direitos precisam caminhar na direção de enxergar a saúde individual indissociada da coletiva, de uma natureza saudável e de relações sadias. “O desafio é que os direitos precisam ser de todos, todas, todxs, de forma que os seres vivos possam não apenas sobreviver, mas viver.”

Da gestação ao parto, racismo estrutural faz vítimas entre mulheres negras

Pretas e pardas são mais impactadas que brancas tanto no atendimento em caso de emergência como na hora de dar à luz

Dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) mostram que, diariamente, 830 mulheres morrem no mundo em decorrência de complicações no parto ou durante a gestação. Desse total, 99% das vítimas estão nos países em desenvolvimento e vivem em áreas rurais ou em comunidades pobres. Jovens adolescentes também enfrentam maior risco de complicações e morte na gravidez. O número assusta é verdade, mas é importante saber que, entre 1990 e 2015, a mortalidade materna já caiu aproximadamente 44%. 

A meta, parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), é reduzir ainda mais a taxa global para menos de 70 a cada 100 mil nascidos vivos. Entre as principais complicações apresentadas pelas mulheres durante a gestação, que representam quase 75% de todos os óbitos, estão: hipertensão (pré-eclâmpsia e eclâmpsia), hemorragias graves (principalmente após o parto), infecções (normalmente depois do parto), complicações no parto e abortos inseguros. Todas causas evitáveis, preveníveis. Outros fatores são doenças como malária ou infecção pelo HIV durante a gravidez.

Embora a mortalidade materna tenha apresentado redução nas últimas décadas, ainda há muito a ser feito no Brasil além de ter apenas uma data como o 28 de maio no calendário  – quando se comemora o Dia Nacional da Redução da Mortalidade Materna. Como esse tema faz parte do eixo Viver com Dignidade, um dos focos do Fundo Baobá, o boletim foi conversar com Emanuelle Goes, enfermeira, doutora em Saúde Pública e pesquisadora do Centro de Integração de Dados da Fundação Oswaldo Cruz (CIdacs/Fiocruz), na Bahia. O objetivo dessa conversa é entender esses números e saber sobre a violência sofrida pelas gestantes negras que, entre outras representações sociais repletas de estereótipos, são vistas como “boas parideiras”. 

Essa forma de enxergar as mulheres negras pode custar suas vidas em decorrência da demora no atendimento, entre outras razões. No Brasil, em 2019, foram 1523 óbitos maternos declarados entre mulheres de 10 a 49 anos, dos quais 1025 (67,3%) resultaram de complicações obstétricas diretas (decorrentes de complicações na gravidez, parto ou pós-parto por causa de tratamento incorreto ou intervenção malsucedida).

Entre as vítimas destas complicações estavam 298 brancas, 681 negras (118 pretas e 563 pardas), 1 amarela, 18 indígenas. Vinte e sete vítimas não tiveram sua raça/cor informada pelo responsável por atestar o óbito. As regiões do país com os maiores números foram: Sudeste e Nordeste, segundo informações extraídas do Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde. Vale lembrar que esses são os casos oficiais notificados e não consideram problemas decorrentes de aborto, por exemplo.

Levantamento do Sistema de Informação de Nascidos Vivos do Datasus/Ministério da Saúde (2016) revela que as mulheres negras foram também as que tiveram mais partos tardios (3,2%) em comparação às brancas (1,7%). De acordo com o American College of Obstetricians and Gynecologists and The Society for Maternal-Fetal (2013), a gestação a termo é considerada a partir de 39 semanas. Dessa forma, é considerada tardia de 41 semanas a 41 semanas e 6 dias e a pós-termo, com 42 semanas ou mais.

Protocolo do Ministério da Saúde recomenda que, caso o parto não ocorra até a 41º semana, a gestante seja encaminhada para avaliação do bem-estar fetal, que inclui análise do índice do líquido amniótico e seu monitoramento cardíaco. Quando necessário, o parto é induzido.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 140 milhões de partos aconteçam todos os anos no mundo. Pretas e pardas, de acordo com um estudo da Fundação Perseu Abramo, de São Paulo, são mais afetadas pela violência nessa hora seja pela falta de atendimento, não aplicação da anestesia para aliviar a dor e até comentários agressivos. Acompanhe a entrevista de Emanuelle Goes que fala especificamente sobre esse tema:

1. Pela sua experiência, a mulher negra sofre mais no parto? Qual a razão para isso?

Emanuelle Goes – As mulheres negras tanto no parto como no pós-parto estão sujeitas à violência obstétrica. Mas não apenas isso. Estão expostas também à dupla discriminação e à interação das duas violências tanto a obstétrica como a discriminação racial  que se sobrepõem. Dessa forma, a violência obstétrica tem levado muitas vezes essas mulheres à morte, como no caso de Alyne Pimentel e de Rafaela Silva.

Alyne Pimentel morreu em 2002, quando estava no sexto mês de gravidez e buscou atendimento hospitalar após sentir-se mal. Nas duas vezes em que foi ao hospital seu atendimento foi negligenciado. Isso levou à morte do feto e a uma intervenção cirúrgica complicada. Dois dias depois do primeiro atendimento, uma hemorragia digestiva levou-a à morte. Já a adolescente Rafaela Silva, também do Rio de Janeiro, faleceu em 2014 aos 14 anos, após complicações decorrentes de hipertensão na gravidez e do péssimo atendimento recebido)

2. Como mudar a cruel desigualdade que se repete até mesmo no parto?

Emanuelle Goes – É preciso reconhecer o racismo institucional para que o parto seja humanizado para todas as mulheres e para que a atenção humanizada seja igualitária e com equidade. Mas só se discute o parto humanizado e o enfrentamento da violência obstétrica se o racismo atravessar essas experiências de revisão das práticas. Sem isso, não tem como superar a desumanização nem a violência obstétrica para mulheres negras. O racismo vai ser determinante nesse tratamento e vai potencializar essas questões. Sem o racismo no centro do debate e no centro do enfrentamento, não é possível mudar essa realidade.

Emanuelle Goes, Enfermeira, doutora em Saúde Pública e pesquisadora do Centro de Integração de Dados da Fundação Oswaldo Cruz na Bahia

3. O que é exatamente o conceito de justiça reprodutiva?

Emanuelle Goes – A justiça reprodutiva tem por finalidade a ampliação do olhar sobre o direito e traz consigo o conjunto de outros direitos e da justiça social, pensando no pleno exercício da saúde reprodutiva da mulher negra. É vista também como uma teoria interseccional e emerge da experiência das mulheres negras que vivenciam o conjunto de opressões e hierarquias reprodutivas.

4. A justiça reprodutiva está diretamente conectada à equidade?

Emanuelle Goes – A justiça reprodutiva se baseia no entendimento de que o impacto das opressões de raça, classe, gênero e orientação, interagem e fazem com que as mulheres sofram de forma mais potencializada as diversas violências no campo dos direitos reprodutivos e da saúde reprodutiva. Então, a justiça reprodutiva tem esse ambiente mais amplo que a gente vai experimentar nas diversas identidades das mulheres e nas diversas opressões a que estão submetidas.

Ágora da Abrasco discute avanço da pandemia de Covid-19 em regiões vulneráveis

No dia 8 de maio, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) realizou mais uma edição da Ágora, um espaço livre de diálogo, com a participação de pessoas de diversos setores públicos e movimentos sociais. O tema debatido foi a pandemia, que na época do evento já havia feito 9 mil vítimas fatais no país. Hoje, o número se aproxima dos 30 mil mortos no Brasil. Na ocasião, o país também chorava a morte do músico e compositor Aldir Blanc, em 4 de maio, também vítima da Covid-19. O evento contou com homenagens que reverenciavam o seu legado para a cultura brasileira.

Com a mediação do professor Luís Eduardo Batista, coordenador do GT Racismo e Saúde da Abrasco, o encontro virtual, que foi transmitido em tempo real pelo YouTube, contou com a presença da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), do senador Rogério Carvalho (PT/SE), de Richarlls Martins, coordenador da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento do Rio de Janeiro, e de Fernanda Lopes, diretora de Programa do Fundo Baobá. Estiveram presentes os membros da Abrasco: Gulnar Azevedo, presidente dessa entidade, Eli Iola Gurgel, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, e Cristiani Vieira Machado, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Luís Eduardo Batista, Coordenador do GT Racismo e Saúde da Abrasco

Fernanda Lopes, do Fundo Baobá para Equidade Racial, falou da atuação da organização no combate ao coronavírus por meio do edital Doações Emergenciais, que recebeu demandas de apoio para ações de combate à Covid-19. “Nós ficamos com edital aberto por duas semanas e recebemos, nesse período, 1.037 inscrições, sendo 650 de indivíduos e 387 de organizações”, disse. 

Para Fernanda, o recorde de números reflete o problema da desigualdade no país. “Isso foi um dos indicadores mais precisos dessa relação da filantropia e justiça social, com um problema  que é estrutural. Dentro do contexto da pandemia, não estamos lidando com uma situação que é nova porque as desigualdades sempre existiram. Esse caminho que o coronavírus toma, rumo a maior letalidade de pessoas que estão em situação de pobreza e em condições de vulnerabilidade socioeconômica, é um percurso comum das doenças no Brasil, dado que a saúde e a doença não são fatalidades nem obras do destino.” 

Fernanda Lopes, Diretora de Programa do Fundo Baobá

A proliferação do coronavírus em lugares mais vulneráveis é o que pauta a atuação do Fundo Baobá no trabalho de promoção da equidade, oferecendo a oportunidade de viver com dignidade, um dos eixos trabalhados pela organização. “Quando a gente olha para a cidade de São Paulo, que concentra um enorme número de casos de Covid-19, vemos que, para cada óbito em Moema, bairro com menos pessoas negras, são quatro óbitos na Brasilândia, um bairro periférico e um dos mais negros em São Paulo”, revelou. “Então, é também sobre isso que estamos falando e sobre as intersecções entre raça, pobreza, gênero. A nossa ação vem como uma resposta imediata para essa demanda urgente.”

Demanda urgente que também fez Fernanda relembrar um ponto simbólico na história do Brasil. “Esse edital de apoio é uma marca simbólica do nosso compromisso de resgate ao ideal da filantropia negra, porque quando as irmandades começaram a atuar no Brasil foi exatamente em uma situação de calamidade, porque a escravidão negra também foi uma situação de calamidade, e as irmandades se reuniam e angariavam recursos para apoiar sepultamentos e funerais com dignidade”, relembrou. “Agora, os nossos investimentos são para que haja menos mortes no país.”

Jandira Feghali, que além de deputada federal é médica,  falou da sua atuação parlamentar no enfrentamento da doença e dos desafios dessa ação.  “No Congresso nacional, enfrentamos hoje três crises: sanitária, econômica e política, sendo que essa dá saltos cada vez maiores. Mesmo assim, a gente tenta pautar projetos no campo da saúde, mas também no campo econômico, tentando superar essa amistosidade que há entre a saúde e a defesa da vida, com o emprego e a defesa da renda, até porque a economia tem que estar a serviço das pessoas”. Entre os projetos votados citados pela parlamentar estão o decreto de calamidade e o auxílio emergencial no valor 600 reais, além da aprovação do orçamento citado por ela como Orçamento de Guerra. 

Jandira Feghali, Deputada Federal – PCdoB/RJ

“Há projetos também como a MP 936, pela proteção do emprego, que a gente está tentando avançar. Nós estamos tentando responder. Mas, do ponto de vista do Congresso Nacional, o nosso problema está no Executivo, que confronta o Supremo e Congresso, rompendo permanentemente a constituição brasileira e estimulando a ruptura democrática de forma permanente. Mas o esforço é grande”, finalizou a deputada.

O mesmo desafio também enfrenta o também médico e  senador Rogério Carvalho. Entre as ações realizadas estão o cancelamento da MP 905, que permitia o rompimento de contrato de trabalhadores por seis meses, durante a pandemia. “Conseguimos derrubar, pois seria um absurdo aprovar uma reforma trabalhista em meio a todo esse contexto. A gente também conseguiu melhorar o recurso de R$ 50 bilhões para os estados do país, que têm a maior responsabilidade assistencial, mas sem tirar dinheiro dos municípios, garantindo que  houvesse suspensão de pagamentos de débitos previdenciários. Então, agregamos em torno de R$ 10 bilhões a mais no auxílio emergencial a estados e municípios.”

Rogério Carvalho, Senador – PT/SE

Na esfera social, Richarlls Martins, professor da UFRJ e doutorando em saúde coletiva, conta como foi coordenar o processo de  elaboração do Plano de Ação Coletiva ao Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro. “Tudo começou quando um grupo de pesquisadores da UFRJ, da UERJ, da PUC-RJ e da Fiocruz se reuniu com articuladores dos territórios moradores das favelas do Rio de Janeiro, como a Cidade de Deus, Rocinha, Dona Marta, Maré e Alemão, para pensar a construção de um plano de ação ideal para o enfrentamento da pandemia nesses locais”. Esse trabalho foi realizado durante dez dias, durante os quais foi elaborado um plano de ação que dialoga com três grandes eixos cooperativos com medidas preventivas, sendo que um deles se relaciona diretamente com pólos de atendimento nas favelas e ações de apoio social.

“Para a nossa surpresa, conseguimos reunir, em tempo recorde, as principais autoridades públicas do Rio de Janeiro, para a entrega desse Plano, juntamente com a participação da Abrasco, do sindicato dos médicos, das enfermeiras e os agentes comunitários de saúde. Entregamos para o subsecretário de saúde e também para o de infraestrutura municipal e estadual do Rio de Janeiro”, disse Richarlls. 

Richarlls Martins, Coordenador da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento

Apenas um dia depois desse encontro, Richarlls Martins foi convidado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para entregar o mesmo Plano para os deputados e deputadas. “O principal encaminhamento dessa reunião foi a aprovação do recurso emergencial do enfrentamento à Covid-19 para ação integral do Plano. Saímos de lá com o compromisso de orçar esse Plano para rápida implementação”, afirmou.

Assim como destacado por  Fernanda Lopes, do Fundo Baobá, para Richarlls Martins a pandemia tem um curso marcado fortemente pela desigualdade social. “Analisando os dados da infecção, em especial na zona oeste do Rio de Janeiro, estão os bairros com os maiores níveis de contágio e de letalidade, em comparação a outros bairros. Se ações emergenciais não forem feitas neste momento, as favelas do Rio de Janeiro serão os lugares com os mais altos índices de mortes por coronavírus”, finalizou.

Para a Deputada Jandira Feghalli, o trabalho realizado pelo Fundo Baobá e pela Rede Brasileira de População e Desenvolvimento é importantíssimo para a sociedade. “As desigualdades se expressam com muita força neste momento, por isso são necessárias essas ações emergenciais.”

Um raio-x da saúde da população negra no Brasil em meio à pandemia

Coronavírus expõe os perversos efeitos da desigualdade que penaliza quilombolas, ribeirinhos, pescadores e pessoas em situação de rua  

Dados divulgados pelo Ministério da Saúde em abril mostram que 1 a cada 3 mortos por Covid-19 no Brasil é negro, embora pretos e pardos somem 1 a cada 4 brasileiros internados com a síndrome respiratória aguda grave. Embora assustadores, esses dados não representam a realidade e podem ser até mais impactantes, segundo Luís Eduardo Batista, coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo. 

Luís Eduardo Batista
(Coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo)

Ele explica que, embora existam dois instrumentos utilizados pela vigilância epidemiológica  para notificar doenças e agravos no Sistema Único de Saúde (SUS) – o e-SUS e o e-SUS VE (DATASUS) –  somente há poucos dias a variável raça/cor foi incluída. “O preenchimento desses campos é fundamental para se ter uma visão mais realista e fundamentada”, afirma o pesquisador.

Rita Helena Borret, médica da família e comunidade, membro do coletivo Negrex de estudantes de medicina e médicos negros e que também é coordenadora do GT Saúde da População Negra, na Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, concorda. “Há dificuldade de acesso para a população negra à saúde. E, quando olhamos a quantidade de óbitos, vemos que há mais gente morrendo do que em estado grave. Isso evidencia subnotificação”, destaca.  Ela ressalta ainda que um dos motivos para discutir os dados desagregados por raça/cor é reconhecer que no nosso país não existe equidade no acesso à saúde, porque o cuidado nessa área é ofertado de maneira desigual ainda que o SUS oriente a ofertar mais a quem mais precisa, ou seja, ofertar assistência e cuidado de acordo com as necessidades. 

Médica Rita Helena Borret

Segundo Rita, o racismo institucional no Brasil é histórico e, ao longo dos anos, não permitiu que fossem criadas políticas públicas para garantir acesso ao trabalho, à moradia digna, à terra. “O que vemos hoje é esse acesso desigual reforçando quem, neste país, está autorizado a morrer porque tem menos valor”, destaca a médica. Ela acredita que as disparidades e desigualdades vão fazer com que a letalidade seja muito diferente quando a sociedade olhar para a população negra e para a não negra.

O pior ainda está por vir  

Luís Eduardo acredita que, em breve a sociedade brasileira poderá assistir, sim, a uma nova onda de contágio. Muitos pesquisadores argumentam que houve duas ondas anteriores: a primeira atingiu a classe média, que teve contato com o vírus no exterior.  A segunda teve como foco as comunidades. A terceira, então, será cruel com as populações em situação de rua, marisqueiras, pescadores, quilombolas, as pessoas privadas de liberdade e as que vivem em assentamentos.

“Não estão olhando para as pessoas em situação de extrema pobreza, que dependem do lixo para sobreviver, os cuidadores de idosos e as que vivem em regiões sem acesso à água, esgoto e políticas públicas”, completa Luís. De acordo com ele, essa pandemia vai escancarar as diferenças da nossa sociedade principalmente porque “o Sistema Único de Saúde leva um tempo para chegar até essas pessoas”.

Rita Helena concorda e argumenta que a pandemia evidencia o acesso desigual à saúde, pois uma parte da população consegue acessar direitos básicos e outra parte não. Portanto, sem acesso também a saneamento,  medidas e insumos de prevenção, pode-se esperar um genocídio. Segundo ela, a pandemia chegou às comunidades mas não alcançou o pico nem chegou perto do que efetivamente será visto em breve. “Temos um cenário bastante complicado, com áreas em que há grande concentração de pessoas por metro quadrado e falta de saneamento básico”, alerta. 

Aliás, estudo recente realizado pela Fundação Oswaldo Cruz detectou presença do novo coronavírus em esgotos sanitários. Ou seja: existe um alto potencial de transmissão e pouco ou nenhum acesso a medidas de contenção da doença. “Outra questão que a gente não conhece é como o vírus vai se comportar ao cruzar com a tuberculose, que é extremamente comum na favelas e periferias do Rio de Janeiro”, lembra.

Parando o ciclo 

O pesquisador Luís Eduardo Batista explica que é possível interromper esse quadro antes que realmente seja assustador e que se repita por aqui o que foi visto em outros países e, sobretudo nos Estados Unidos. Em Chicago, por exemplo, 68% das mortes pelo vírus foram de afro-americanos. Vale lembrar que, nessa cidade, a expectativa de vida dos negros é 8,8 menor que a de brancos por diferenças históricas estruturais. Percentuais próximos a esse se repetiram no Alabama (44%) e Louisiana (70).

Uma das medidas para interromper o ciclo, de acordo com ele, é olhar para as necessidades da população. “Os hospitais de campanha estão localizados em que regiões?”, indaga. “Um suporte importante poderia ser dado pelos agentes de saúde”: como conhecem as comunidades em que atuam, esses profissionais têm condições de mapear quem está mais exposto e faz parte dos grupos de risco, como idosos, hipertensos, diabéticos, portadores de doenças falciformes e com doenças pulmonares obstrutivas. “Os agentes comunitários têm condições de identificar e ter cuidado com essas pessoas, evitando que se transformem em doentes e, depois, em estatísticas”.

A médica Rita Borret vai além. Diz que é necessário radicalizar a quarentena, garantindo não apenas que as pessoas fiquem em casa, mas que, permanecendo em isolamento, tenham condições financeiras de se sustentar. “Obrigar as pessoas a escolher entre ficar em casa para se preservar ou sair para trabalhar e conseguir dinheiro para comer, é muito cruel”. É essencial exigir que os governantes cumpram o papel que cabe ao Estado em prover condições para o exercício dos direitos básicos. “Somente dessa forma vamos garantir que essa pandemia não vai se transformar em um genocídio, especialmente da população preta e periférica”, confirma ela. Para isso, Rita defende que sejam exigidas do Estado mais ações estratégicas que garantam a equidade da saúde, mais leitos de internação e de CTI, além de respiradores – a fim de que não se reproduzam aqui os números alarmantes da Itália, China e Espanha.

“Vou parafrasear a médica Jurema Werneck. Ela sempre diz que a vida vai ser melhor para a população brasileira quando for melhor para a população negra”, sintetiza. Na verdade, uma sociedade nunca será realmente igualitária se uma parcela tiver todos os direitos garantidos e a outra parte simplesmente morrer sem acesso a nada.

Iniciativas capricham na divulgação sobre a doença para combater avanço nas periferias

Para tentar frear a letalidade do vírus nas comunidades, várias campanhas de divulgação foram criadas para disseminar informações verdadeiras e orientar os moradores. Uma delas foi lançada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Rio) no início de abril: “Se liga no Corona!”.  A iniciativa contou com parceria da Redes da Maré e outras organizações de Manguinhos e tem o objetivo de prevenir a disseminação da Covid-19 nas favelas, falando de forma objetiva e bem direta com essas comunidades.  

A Fiocruz havia identificado que a maioria dos materiais de divulgação contra o doença era voltada para a classe média, sugerindo isolamento no quarto, uso de álcool em gel e evitar aglomerações – situações que fogem da realidade da maioria dos moradores das periferias. Por isso, foram criados spots para carros de som, rádionovelas, peças e vídeos para mídias sociais, além de cartazes para expor em locais como pontos de ônibus, táxi e áreas de grande circulação de pessoas – todos em linguagem didática e acessível.  Esses materiais estão disponíveis no portal da Fiocruz e no Maré online para serem baixados.

A campanha também tem o selo “Fiocruz tá junto”, criado para ser usado nos materiais enviados por organizações parceiras e validados pela fundação. O portal conta ainda com outros materiais sobre a doença e uma área com perguntas e respostas. A seção “fale conosco” responde  dúvidas da população sobre a doença. Para divulgar os materiais, a Fiocruz também promoveu uma coletiva para falar com especialistas em comunicação popular.

Para quem quer ajudar

O Fundo Baobá abriu edital para apoiar ações de prevenção em comunidades mais vulneráveis. Para saber mais, clique aqui. Para apoiar esta iniciativa, clique aqui.

População negra está, sim, entre as principais vítimas do novo coronavírus

Zélia Profeta, diretora da Fiocruz Minas, falou sobre a pandemia para o Boletim do Fundo Baobá. Formada em farmácia pela Universidade Federal de Minas Gerais, ela é mestre em Biologia Celular e Molecular pela Fundação Oswaldo Cruz e doutora em Parasitologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Nesta entrevista, Zélia explica a necessidade do Brasil investir em ciência, fala da situação dos negros no país e enumera as lições que a doença vai deixar. Acompanhe:

* Toda doença traz aprendizados. Na sua opinião, qual a grande lição que essa pandemia vai deixar como legado?
Acho que um dos aprendizados é ter mais fortalecido, por toda a sociedade, o entendimento da importância das políticas públicas para a população, especialmente para as pessoas que mais precisam, garantidas por um Estado forte. Além disso, espero que também saiamos dessa pandemia entendendo a importância de termos mais investimentos para a ciência, para a indústria nacional de medicamentos, insumos para vacinas, testes, diagnóstico, instrumentos hospitalares etc. Outro legado importante é o entendimento da importância de cidades com mais infraestrutura, saneamento; cidades melhor planejadas para que as pessoas possam ter vida digna. E entendermos que não se pode economizar na saúde. O  financiamento do SUS é fundamental para a sua consolidação e para fortalecimento do acesso. Fico pensando ainda que um dos legados que essa pandemia poderia nos deixar é o de nos organizarmos para lutar pela revogação da EC-95 ( Emenda Constitucional número 95, já aprovada pelo Congresso Nacional, que prevê congelamento de gastos. Com isso, os investimentos em saúde e educação podem ficar congelados por mais seis anos).

Zélia Profeta (Diretora da Fiocruz Minas)

* Dados do Ministério da Saúde mostram que 1 a cada 3 negros morrem por Covid-19. Por que o coronavírus é mais letal entre os negros? E o que efetivamente essa pandemia nos mostra com relação aos negros?
No Brasil, os negros são a maioria da população. São também a maioria dos que não têm emprego ou estão em situação de subocupação. A maior parte dos negros está entre as vítimas de homicídio no país e quando falamos de população carcerária os negros são a maior parte. Os negros também são os que mais sofrem com a informalidade, que vem crescendo no Brasil, nos últimos anos. Dizem que o vírus é democrático porque infecta qualquer pessoa. Mas o que estamos vendo é que as populações mais vulneráveis, que vivem em locais mais adensados, mais pobres e sem infraestrutura é que vão ficar mais doentes. Além disso, essas populações mais vulnerabilizadas possuem mais comorbidades que vão favorecer a maior letalidade.

* Muitos profissionais e pesquisadores da saúde defendem a atuação do agente de saúde, alegando que, por conhecer a comunidade e estar na linha de frente, pode identificar potenciais vítimas do vírus para evitar que aumentem as estatísticas. A senhora concorda com essa visão? 
Sim, concordo. Os agentes de saúde fazem parte da atenção básica. Conhecem a população, acompanham os pacientes. São fundamentais no território. Estão em contato permanente com as famílias, desenvolvem ações educativas para promoção da saúde e prevenção das doenças. Mantém informada a equipe de saúde, principalmente a respeito das situações de risco.  Portanto, podem ajudar muito!  Mas, claro, numa situação como a que estamos vivendo (na verdade, em qualquer situação) é fundamental que os agentes trabalhem com todos os cuidados de proteção para também não adoecerem.

*  A campanha “Se liga no corona” nasceu da necessidade de informar e, assim, tentar reduzir a velocidade de avanço do vírus nas comunidades e periferias?
A Fiocruz está fazendo uma série de ações para enfrentar essa pandemia, como, por exemplo, produção de kits para o diagnóstico, assistência, pesquisas e muito material informativo que é fundamental para esclarecer toda a sociedade. O Se liga no Corona é, sim, voltado para as comunidades e periferias para ajudar no enfrentamento da Covid-19 e tentar reduzir a velocidade de transmissão do vírus.

* Pela sua experiência,  a senhora acredita que ações coordenadas de comunicar e informar, em que conseguimos unir conhecimento (corpo técnico) e disposição (comunidade), são a alternativa para tentar reduzir o avanço da doença?
Acho que essa é uma importante ação e que as ações neste enfrentamento do vírus devem ser coordenadas na perspectiva de unir informação e disposição para tentar reduzir o avanço da doença. Acho, sim, que esta campanha vai propiciar uma boa interação entre nós, que somos profissionais da Fiocruz, com as comunidades nos diferentes estados. É fundamental estar atento e fazer chegar a informação correta nos diferentes territórios. O Brasil é um país muito grande, com muitas diferenças nos seus territórios e é um país muito desigual. Como diz a nossa presidente Nísia Trindade Lima, com todos os esforços que a Fiocruz vem fazendo nós esperamos cumprir o papel da instituição que vem sendo desempenhado há 120 anos: o de promover a saúde pública para toda população.

EDITAL PARA APOIAR PESSOAS E COMUNIDADES NO COMBATE AO CORONAVÍRUS

A pandemia do coronavírus ameaça principalmente os negros.  Dados demográficos do Brasil comprovam que a maioria das pessoas mais expostas e com maior risco de contaminação é negra. Índices de doenças que favorecem uma evolução mais grave da COVID-19, como hipertensão e diabetes, são mais elevados entre os negros. Nem mesmo a informação chega da mesma forma igual à população negra. Juntos, estes fatores colocam os negros entre os que estão em maior risco de contaminação pelo coronavírus.

É por isso que o Fundo Baobá para Equidade Racial – primeiro e único fundo filantrópico que mobiliza pessoas e recursos, no Brasil e no exterior, para o apoio exclusivo a projetos e ações de promoção da equidade racial para a população negra no Brasil – lançou um edital para apoiar projetos de pessoas e organizações comprometidas com a equidade racial e que estejam ajudando comunidades no combate ao coronavírus.  

A transferência de recursos para quem está na ponta lutando contra a disseminação do vírus é também uma ação de fortalecimento da resiliência das comunidades, dessas lideranças e organizações.

O edital visa selecionar propostas de ações de prevenção ao coronavírus realizadas junto às comunidades periféricas e outros territórios de vulnerabilidade, às populações em situação de rua, populações privadas de liberdade, jovens que cumprem medidas socioeducativas e idosos, residentes em áreas remotas de todas as regiões do país, como comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas, ciganos, migrantes, refugiados e outras comunidades tradicionais, nas florestas e ilhas onde haja casos notificados, em fase de análise, ou casos confirmados de contaminação pelo coronavírus. 

As organizações sem fins lucrativos ou as pessoas físicas beneficiadas devem ser comprometidas com a equidade racial e engajadas na promoção de ações  nas periferias das grandes cidades, favelas, áreas remotas e outros territórios de vulnerabilidade socioeconômica. Os interessados devem detalhar a comunidade a ser beneficiada, a necessidade que motiva o pedido, os resultados esperados, as ações a serem realizadas e uma estimativa de orçamento.  

As solicitações são avaliadas em até 7 (sete) dias úteis e os recursos são creditados em até 5 (cinco) dias úteis quando disponíveis.  O limite para a transferência de recursos é de R$ 2,5 mil por projeto. 

Clique aqui preencher o formulário para organizações e conferir o edital.

Clique aqui para preencher o formulário para indivíduos e conferir o edital.

Em caso de dúvida, consulte aqui as perguntas mais frequentes. Para doar para fortalecer esta iniciativa, clique aqui.

Calendário do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco

Investir na promoção da equidade racial, por meio de aportes financeiros em iniciativas individuais ou coletivas direcionadas exclusivamente para a população negra é a missão do Fundo Baobá e dialoga com os esforços na luta contra o racismo e pela eliminação da discriminação racial.

O Fundo Baobá acredita que, com mais estrutura, investimentos e oportunidades, as mulheres negras líderes que atuam em diversos campos poderão:

  • acessar espaços de poder (simbólico e material);
  • mobilizar mais pessoas para a luta contra o racismo, por equidade racial e justiça social; e
  • transformar o mundo a partir de suas experiências.

Juntando esforços para investir nessas potências, o Instituto Ibirapitanga, Ford Foundation e Open Society Foundation, doaram juntos U$ 3 milhões ao Fundo Baobá, que lançará o Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. A maior parte do recurso, cerca de R$10 milhões, será aplicada no apoio direto às organizações, grupos, coletivos e lideranças femininas negras.

Editais

Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Liderança Femininas Negras: Marielle Franco, com vigência de 2019 a 2024, tem como foco ampliar e consolidar a participação de lideranças femininas negras em posições de poder e influência por meio do investimento em formação política e técnica, fortalecer organizações, grupos e coletivos de mulheres negras e, ao mesmo tempo, fazer um tributo à trajetória e à vida de Marielle Franco, brutalmente assassinada aos 14 dias de março de 2018.

O programa começa com o lançamento de dois editais. No primeiro, “Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras”, aproximadamente 60 mulheres negras terão seu desenvolvimento acelerado, por meio da oferta das ferramentas essenciais para que elas, que já são lideranças em diversos campos de atuação, possam acessar espaços de poder – simbólico e material, transformando o mundo a partir de suas experiências, por justiça e equidade social e racial.
Já no edital “Fortalecimento de capacidades de organizações, grupos e coletivos de mulheres negras”. cerca de 10 organizações da sociedade civil, grupos e coletivos de mulheres negras também poderão ser apoiadas.

Lançamento

Os editais serão lançados em 03 de setembro de 2019. A seleção e divulgação das propostas escolhidas acontecerá até novembro de 2019. Veja o novo cronograma abaixo e assine nossa newsletter para ver todas as novidades! 

Para saber mais

O Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em memória ao Massacre de Shaperville, que ocorreu na mesma data em 1960, na África do Sul.

Lutas Negras – Passado, presente e perspectiva de futuro.

Origem

O 21 de março foi instituído pelas Nações Unidas como o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, pois foi nesse mesmo dia,  58 anos atrás que ocorreu um dos maiores genocídios negros da história: o Massacre de Sharpeville, na província de Gauteng na África do Sul. Nesse mesmo dia em 1960, o Congresso Pan-Africanista organizou um protesto contra a Lei do Passe, um documento que continha foto, dados pessoais, números e registros profissionais, além de anotações sobre imposto de renda e ficha criminal, que todas as pessoas negras tinham que carregar sempre e apresentar às autoridades quando solicitadas, sendo sumariamente detidas se estivessem sem ele.

No fim de 1959, o Congresso Nacional AfricanoCNA, em sua conferência anual anunciou que o ano seguinte seria o ano da luta contra o passe, marcando para 31 de março a manifestação, o Congresso Pan-Africanista, que era uma dissidência do CNA, resolveu se antecipar e marcou um protesto pacífico para o dia 21. O líder do CNA, Robert Subukwe, ordenou uma manifestação não-violenta para provocar um pane no sistema político e econômico do país, já que os negros deixariam seus passes em casa, compareceriam a delegacia para serem presos e assim superlotariam as prisões e causariam uma grande falta de mão de obra ocasionando o caos. No entanto a força policial sem aviso ou qualquer organização, abriu fogo contra a manifestação e no final de minutos de disparos, o massacre estava concluído: 69 mortos e mais de 180 pessoas negras feridas.

massacre de Sharpeville

O massacre de Sharpeville foi um divisor na história do apartheid na África do Sul e foi também o acontecimento que fez com que Nelson Mandela abandonasse a política de não violência, sendo preso em junho de 1964.   

Passado

Durante o regime escravocrata no Brasil, os espaços de socialização dos negros escravizados eram restritos aos limites das fazendas e dos engenhos, quando não muito somente dentro das senzalas e nos espaços de trabalho forçados. O que se tentava evitar eram as reuniões entre os negros e assim evitava-se também o planejamento de rebeliões e fugas. Ainda hoje é propagada uma ideia bem errônea de que os africanos que foram sequestrados para fins de escravização, ficaram a espera de alguém que os tirasse dessa situação, quando houve muitos levantes e situações de revoltas e debandadas. Uma das formas de se reunir sem levantar suspeitas, pois o motivo aparente era a comemoração de feriados católicos, eram através das Irmandades Negras que foram uma estratégia encontrada para fortalecer suas identidades e diversidades étnicas em tempos de escravidão, servindo como um espaço para resistir a opressão, praticar a fé, estimular a solidariedade e manter práticas e costumes ancestrais frente a uma sociedade hostil em pleno escravismo colonial.

As irmandades desempenhavam um papel estratégico na sociedade da época pois possibilitava aos negros ocuparem e definirem formas de atuação social e de resistência. Notava-se que nestes grupos a equidade de gênero era um valor importante, pois os relatos históricos apontam o equilíbrio da composição dos poderes, especialmente acerca do modelo de governança para as irmandades com a participação das mulheres negras em cargos estratégicos. Os associados contribuíam com jóias e taxas anuais e em troca recebiam assistência quando doentes, quando presos, quando famintos, mortos e também se cotizavam para comprar a alforria de pessoas escravizadas.

A Irmandade representava um espaço de relativa autonomia negra, na qual seus membros – em torno das festas, assembleias, eleições, funerais, missas e da própria assistência mútua – construíam identidades sociais significativas, no interior de um mundo sufocante e sempre incerto. A Irmandade era uma espécie de família ritual, em que africanos desenraizados de suas terras viviam e morriam solidariamente. Idealizada pelos brancos escravocratas como um mecanismo de domesticação do espírito africano, através da africanização da religião dos senhores, elas vieram a constituir um instrumento de identidade e solidariedade coletivas.  

Festa da Boa morte foto União dos municípios da Bahia

Essas duas manifestações, a primeira na África do Sul de 1960 e a outra no Brasil do século XIX, foram duas das várias lutas negras por emancipação que são pouco difundidas, que não constam nos livros e muitas vezes são sequer mencionadas e lembradas, porém elas aconteceram, foram documentadas e serviram como estímulo e inspiração para as manifestações e lutas do século XXI, como por exemplo, a Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver, que aconteceu pela primeira vez em 2015 em Brasília.

A marcha teve como propósito maior marcar a luta contra o racismo, a luta pela igualdade de direitos, por um país mais justo e democrático e pela defesa de um novo modelo de desenvolvimento baseado na valorização dos saberes e da cultura afro-brasileira. No final da marcha foi a entregue a presidente em exercício, Dilma Rousseff, um manifesto em que foi cobrado do estado brasileiro, entre outras pautas, medidas emergenciais para reduzir a mortalidade de mulheres em especial, de mulheres negras, pois na pesquisa feita pelo Mapa da Violência de 2015, foi percebido um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras. Além disso, a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka reconhecida internacionalmente por ter atuado na luta contra o apartheid e pelo fim do racismo na África do Sul, participou de uma reunião com as organizadoras da marcha.  

A Marcha foi uma iniciativa de diversas organizações e coletivos do Movimento de Mulheres Negras e do Movimento Negro, contando com o apoio de importantes intelectuais, artistas, ativista, gestores e gestoras que são referência das mais diversas áreas no Brasil, América Latina e do Continente Africano.

Marcha das Mulheres Negras

A Marcha criou a partir de sua mobilização, a oportunidade de diálogo real entre mulheres negras de diferentes vertentes políticas, ideológicas, religiosas, com o fortalecimento mútuo das pautas, permitindo assim a construção a partir dos que as une e não do que as separa. Segundo Juliana Gonçalves em matéria para a revista Carta Capital: “Ao localizar historicamente o que significa ter uma marcha nacional de mulheres negras na trajetória percorrida pelas nossas ancestrais, pelas nossas mais velhas em solo brasileiro, encontramos outro ponto que dá sentido à marcha que está inserida neste contexto histórico de resistência feminina negra que rememora Aqualtune, Acotirene, Luisa Mahin, Dandara, Maria Firmino dos Reis, Carolina de Jesus, Maria Brandão dos Reis, Antonieta de Barros, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Laudelina Campos, Theresa Santos, e tantas outras que aqui chegaram e nasceram. Dar visibilidade a essa luta histórica é fundamental para munir as novas gerações de ferramentas para o combate ao privilégio branco que estrutura a sociedade racista que vivemos”.

O Bem Viver – Futuro

De acordo com Juliana Gonçalves, o conceito de Bem Viver foi reivindicado pelo Movimento de Mulheres Negras, esse conceito não tem nada a ver com prosperidade financeira e sim é uma crítica forte ao modelo desenvolvimentista de sociedade que vivemos. A apropriação do conceito foi feito pelo Movimento de Mulheres Negras em diálogo com político e economista equatoriano Alberto Acosta no seu livro “O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos”.

A teoria do Bem Viver nasceu da prática histórica e da resistência dos povos indígenas da América Latina. Ela apresenta uma forma diferente de relacionamento entre os seres humanos, as sociedades e a natureza. Acosta afirma que “o Bem Viver é uma filosofia em construção, e universal, que parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio, mas que está presente nas mais diversas culturas”. E cita a ética e a filosofia africana do Ubuntu – “eu sou porque nós somos”.

A noção do Bem Viver propõe também abandonar a ideia de progresso, porque considera que essa noção é discriminatória e violenta. Seus princípios são relacionalidade, complementaridade, reciprocidade e correspondência. O Bem Viver surge para descolonizar a democracia e devolver-lhe seu sentido original, de governo do povo e para o povo. O autor propõe o Bem Viver para evitar a destruição provocada pelos mercados, o capitalismo e a modernidade, ele apresenta o bem Viver não como uma alternativa, mas como a única via que de fato pode se contrapor ao capitalismo. Diferentemente do socialismo, que apresenta a diversidade enquanto recorte dentro da luta contra o capitalismo, O Bem Viver traz a diversidade como fundamento.

Fontes: Artigo Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão de João José Reis, Portal Por dentro da África, Carta Capital, Revista Calle.

Abordando a Mortalidade Materna entre Comunidades Quilombolas do Estado do Amapá.

O que é morte materna?

Segundo a Classificação Internacional de Doenças – CID – (9ª Revisão, 1975), é “a morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término da gestação, independentemente da duração ou localização da gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela, porém não devida a causas acidentais ou incidentais”.  

A Organização Mundial de Saúde (OMS) revelou que cerca de 830 mulheres morrem diariamente no planeta devido a causas evitáveis relacionadas à gravidez, ressaltando que 99% dos óbitos ocorrem em países em desenvolvimento, como o Brasil. A investigação se estende e a OMS afirma que 85% das mortes maternas foram por causas evitáveis, como a doença hipertensiva específica da gestação e as hemorragias. E mais, 71% dos óbitos estavam relacionados à atenção de saúde dada no pré-natal, parto e pós-parto.

O Fundo Baobá articulou junto com a Johnson & Johnson, a Associação Cultural de Mulheres Negras/ACMUN que co-elaborou e o Instituto de Mulheres Negras do Amapá/IMENA que desenvolveu, o projeto Abordando a Mortalidade Materna entre Comunidades Quilombolas do Estado do Amapá.

O Projeto foi realizado durante o ano de 2017 ampliando o olhar de cuidado para além do eixo sudeste e chegando a territórios esquecidos pelos serviços públicos de saúde, com ações que beneficiaram três Comunidades Quilombolas: Curiaú, Tessalônica e Carmo do Maruanum, focando na saúde das gestantes negras dessas comunidades e destacando três eixos: Serviço de saúde, capacitação profissional e desenvolvimento comunitário.

Para a elaboração da proposta, o Fundo Baobá realizou uma pesquisa de mapeamento sobre mortalidade infantil e saúde da mulher entre os grupos de mulheres destas comunidades. A construção coletiva da proposta e sua execução permitiu o intercâmbio de experiências, vivências e capacitação de trabalhadores da área de saúde e de ativistas do movimento social sobre a temática da saúde da população negra, em especial no que se refere à mortalidade materna e infantil e sua articulação com o racismo institucional praticado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

O projeto realizou atividades focadas para as mulheres ativistas e profissionais de saúde que foram capacitadas para a multiplicação de informações específicas sobre o tema; garantiu a qualificação de profissionais de saúde para um melhor atendimento, com um olhar diferenciado para as questões de desigualdade racial e levou informações e orientações para pais e responsáveis sobre a melhoria da qualidade de vida das crianças, que envolve incentivo à higiene e saúde infantil, aleitamento materno, vacinação e nutrição, lembrando sempre da importância do pré-natal, do atendimento livre de preconceito e da eliminação da violência obstétrica.

Além das organizações citadas, as demais organizações envolvidas no projeto foram: Associação Mãe Venina do Quilombo do Curiaú, Rede Fulanas – NAB/Negras da Amazônia Brasileira, Organização dos Advogados do Brasil/OAB Amapá, Instituto AMMA PSIQUE e Negritude.

De acordo com Simone Cruz – ACMUN/Associação Cultural de Mulheres Negras, existe uma relação intrínseca entre racismo institucional e mortalidade materna de mulheres negras:

“O  racismo institucional é definido como a incapacidade de uma instituição em prover um serviço apropriado às pessoas em razão de sua cor, cultura, ou origem étnica, ou seja, qualquer sistema de desigualdade que se baseia em raça e ocorra em instituições, sejam elas públicas ou privadas pode-se afirmar ser racismo institucional. No que se refere ao campo da saúde não é diferente, muitos são os estudos em relação a saúde da população negra que apontam que a população negra tem maior predisposição a doenças como hipertensão, por exemplo. Esta é uma das razões que coloca as mulheres negras no topo das causas por mortalidade materna, justamente por não ter acesso a um tratamento adequado que reconheça e dê conta dessa especificidade, evitando a morte materna. Por outro lado o racismo institucional se apresenta através do tratamento oferecido às mulheres negras no SUS, que também é apontado em estudos que as mulheres negras são menos tocadas em consultas ginecológicas assim como a ideia de também as mesmas suportam mais a dor por serem mulheres “mais fortes’, o que ocorre em quaisquer circunstâncias, inclusive na hora do parto. Situações como essa que podemos afirmar como tratamento inadequado, desigual e racista, uma vez que tais condições, de serem fortes e suportarem a dor, são atribuídos somente às mulheres negras”.

Simone Cruz segue ressaltando a importância do projeto para às Comunidades Quilombolas e as mudanças advindas:   
“A realização deste projeto em comunidades quilombolas justifica-se pela necessidade recorrente no Brasil de se debater as condições desiguais a que são submetidas as mulheres negras em nosso país. Isso significa que o fato de fazer parte de uma comunidade quilombola soma-se a uma condição de subordinação a que as mulheres negras são submetidas, as colocando em uma condição de vulnerabilidade social. Atuar em Comunidades Quilombolas no estado do Amapá  nos permitiu ter uma  dimensão das desigualdades raciais relacionadas à saúde vivenciadas por mulheres negras quilombolas. O Estado do Amapá, localizado no Norte do Brasil, tem uma alta taxa de mortalidade materna, cerca de 20 mortes por mês, e a relevância dos números desta fatalidade ocorre entre as comunidades quilombolas. O resultado evidente deste projeto é o conhecimento obtido por parte das mulheres que foram obtidos a partir de vivências da realidade das suas próprias comunidades e do trabalho que lá já desenvolviam, como no caso das profissionais de saúde. As mudanças no atendimento a outras mulheres e a proposição de ações com abordagem de gênero e raça na comunidade é algo que incluíram em seu cotidiano. Com isso, nossa perspectiva é a melhoria do acesso e a melhor qualificação dos serviços para as mulheres que vivem nas comunidades quilombolas”.

Simone Cruz também pontuou algumas ações que em continuidade ao projeto desenvolvido pela parceria Fundo Baobá + Johnson & Johnson + IMENA + ACMUN podem ajudar a diminuir os índices de mortalidade materna de mulheres negras, como:

– A capacitação dos profissionais de saúde, todos, inclusive e, principalmente, xs médicxs;
– A informação porta a porta, trabalho comunitário;
– As campanhas publicitárias;
– A produção e divulgação dos dados.

A enfermeira e integrante do IMENA, Suzana Cristina Pontes deu seu depoimento sobre a importância do Fundo Baobá na implementação do projeto:

“Quando veio a proposta do projeto, eu achei de extrema importância, porque o estado do Amapá está entre os cinco estados em que a mortalidade materna tem sido crescente, e a gente viu isso. Também foi importante o debate sobre a coleta do quesito raça/cor que foi um ganho muito grande, porque existe uma grande dificuldade da população se autodeclarar a partir dos critérios oficiais do IBGE. A troca de experiência foi muito importante no que se refere ao poder da fala. Então o ganho foi muito grande. Geralmente os projetos têm início, meio e fim e este não tem fim, tem reticências, por que ficou para uma continuidade”.

Além do investimento na atenção primária, nas instalações de saúde e na capacitação profissional, uma das formas de auxiliar na redução dos números quando falasse de mortalidade materna é a estratificação das gestantes e crianças. Essa estratificação consiste na classificação das mulheres grávidas em risco habitual (quando não apresentam fatores de risco individual, sociodemográfico, de história reprodutiva anterior ou doença), risco intermediário (fatores relacionados à raça, etnia, idade, baixa escolaridade e história reprodutiva) ou risco alto (condições pré-existentes como trombose ou doenças específicas da gestação, como infecção urinária de repetição).

Após a estratificação, a atenção a gestante é dada conforme a classificação com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar que inclui enfermeiros, obstetras, psicólogos, assistentes sociais, farmacêuticos e outras especialidades e também a gestante sabe antecipadamente onde terá seu bebê, gerado assim muito mais tranquilidade durante a gestação.

Onde isso acontece? No Paraná, que em seis anos reduziu em 30% a mortalidade materna e agora serve de modelo para a América Latina.
fonte.


Enquanto alguns Estados brasileiros são modelos para outros países, outros estados e mesmo as Comunidades Quilombolas seguem sendo esquecidos pelos serviços públicos de saúde e pelas políticas públicas de assistência, fazendo com que seja cada vez mais importante a participação da sociedade civil e de outras instituições – como o Fundo Baobá e a Johnson & Johnson – na capacitação de profissionais e na ampliação ao acesso às informações sobre saúde e bem viver e fica assim cada vez mais visível perceber como são tomadas as decisões dos gestores de saúde pública sobre quem tem acesso aos direitos básicos, incluindo o primário: O de viver.