Por Vinícius Vieira
No mês de outubro de 2021, o Fundo Baobá para Equidade Racial celebra 10 anos de atuação. As primeiras sementes da organização foram plantadas no ano de 2006, pelo movimento negro nordestino, aliadas e aliados em diálogo com a Fundação Kellogg.
Mas foi em 2011 que o Fundo Baobá foi criado formalmente. Com um ambicioso modelo, que inclui um fundo patrimonial, demonstrando ser essencial desenvolver formas de funcionamento específicas para gestão e estratégias de autogestão.
Inicialmente o Fundo Baobá assumiu o compromisso de apoiar iniciativas de curta duração que tenham fins coletivos dentro da temática da promoção da equidade racial. Essa ação também é conhecida como apoio pontual. O primeiro apoio pontual realizado pela organização aconteceu no ano de 2012, por meio da 6ª edição do Prêmio “Educar para a Igualdade Racial”.
Após uma série de apoios pontuais, em 2014 o Fundo Baobá lançou o seu primeiro edital: 1ª Chamada para projetos de Organizações Afro-Brasileiras da Sociedade Civil teve como objetivo apoiar, por 12 meses, 22 organizações pequenas e médias da sociedade civil afro-brasileira de todo o país na implementação de projetos para a promoção da equidade racial.
Desde então, ao longo de uma década de história, os números confirmam a atuação da organização na promoção da equidade racial no país, através de eixos programáticos em áreas priorizadas para doação, como viver com dignidade, educação, desenvolvimento econômico, comunicação e memória.
Foram ao todo:
14 milhões investidos
21 parcerias conquistadas
16 editais realizados
553 iniciativas individuais apoiadas
279 organizações apoiadas
Como forma de celebrar os 10 anos de atuação do Fundo Baobá, vamos relembrar alguns editais e ouvir histórias de pessoas e organizações que receberam o apoio da entidade, no passado recente.
A Cidade que Queremos
Lançado no dia 9 de maio de 2018, o edital A Cidade que Queremos, teve a parceria da Fundação OAK e era voltado para grupos e organizações Pró Equidade Racial com projetos que visavam fomentar e desenvolver cidades mais inclusivas e justas para todes.
O edital foi exclusivo para as regiões metropolitanas do Nordeste brasileiro, incluindo os nove estados da região. Foram selecionadas 10 organizações que receberam um aporte financeiro, totalizando R$ 450 mil de investimento.
Entre os selecionados estava a “Associação Artística Nóis de Teatro”, de Fortaleza (CE), que foi apoiada com o projeto “Periferias Insurgentes”. O grupo realizou diversos eventos artísticos, entre eles noites culturais, saraus e seminários, que reuniram vozes que compõem as resistências das periferias de Fortaleza, construindo paralelo com o trabalho da associação. Desses encontros, surgiu a peça Ainda Vivas, com três horas de duração.
Para o ator, diretor, produtor e coordenador do Nóis de Teatro, Altemar Di Monteiro, o suporte do Fundo Baobá tem sido fundamental, até hoje, para as ações do grupo na periferia de Fortaleza, considerando que este apoio foi realizado em três oportunidades distintas: “Em uma delas fizemos a circulação do espetáculo Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro pelas periferias de Fortaleza, contribuindo para o debate sobre o extermínio da juventude negra e a militarização da nossa polícia e da nossa política”. Na sequência veio Ainda Vivas, segundo Altemar, inspirado nesse giro pela periferia da capital: “Circular pelas diversas favelas de Fortaleza foi importante para que pudéssemos compreender o grande número de jovens e práticas culturais que pulsam nas periferias e sua forte contribuição para desativar o pensamento militarizado que habita a cidade. São saraus, rolezinhos, movimentos do passinho, do reggae, do teatro que inventam outras cidades, outras periferias. A partir da grande força dessa juventude foi que o espetáculo ‘Ainda Vivas’ nasceu”.
Para Altemar, receber o apoio do Fundo Baobá para a realização do espetáculo foi muito importante porque contribuiu para a continuidade das ações do grupo e do fortalecimento de práticas antirracistas na cidade: “Num contexto de escassez de políticas públicas da cultura, além de contribuir para a manutenção de um grupo de teatro que resiste há 20 anos na periferia, o Baobá reafirma a cultura como um valor de desenvolvimento social e humano, a arte como direito de todos e todas”.
Com a chegada da pandemia da Covid-19, o grupo recebeu o terceiro aporte financeiro e deu continuidade ao espetáculo Ainda Vivas, mas dessa vez no formato virtual. Para Altemar, esse processo contribuiu para o fortalecimento do elo com o movimento de saraus da periferia, além da valorização da cultura diante do contexto de isolamento social: “Destaco a importância da arte e da cultura na luta antirracista no momento que vivemos. Acredito fortemente que é pelo sensível, pela articulação de outros saberes e práticas que poderemos construir um outro mundo. E sobre isso, me parece que o Fundo Baobá tem entendido bem”, finaliza.
Editais voltados para o desenvolvimento e fortalecimento de mulheres negras
O fortalecimento das mulheres negras sempre foi uma pauta trabalhada no Fundo Baobá. Em duas oportunidades, a organização lançou editais voltados para o público feminino negro: Empodera, lançado em 2016 em parceria com o Instituto Lojas Renner e ONU Mulheres, apoiou 15 empreendimentos de mulheres negras cujos negócios estivessem vinculados à cadeia produtiva do setor têxtil e de moda. Enquanto o edital Negras Potências, lançado em 2018, em parceria com Instituto Coca-Cola Brasil, Movimento Coletivo e Benfeitoria, apoiou 16 iniciativas de impacto para o empoderamento de meninas e mulheres negras, focados na redução das desigualdades raciais e sociais.
Mas foi no dia 2 de setembro de 2019 que o Fundo Baobá lançou o seu edital mais ousado, o primeiro do Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, que contou com a parceria com a Fundação Kellogg, Ford Foundation, Instituto Ibirapitanga e Open Society Foundations. Concebido para acontecer ao longo de cinco anos, incluindo 2 editais de apoio individual e 2 editais de apoio a organizações, grupos e coletivos, a principal premissa do Programa é que as mulheres negras apoiadas tenham mais subsídios para acessar espaços de poder e tomada de decisão, atuar contra o racismo e em defesa da justiça, equidade social e racial e transformar o mundo a partir de suas experiências.
Em 53 dias de inscrições abertas foram recebidas 314 candidaturas individuais e 86 coletivas de mais de 20 estados do país e do Distrito Federal. No dia 10 de dezembro de 2019 foram anunciadas as 63 lideranças e 15 organizações selecionadas pelo edital. Entre elas estava a produtora musical, Andressa Ferreira, do Rio Grande do Sul, que foi selecionada com o projeto Mulheres Negras e Tecnologia – Produção Musical Enegrecida: “Este período em que tive o apoio do Fundo Baobá, através do Programa Marielle Franco, foi de muito crescimento e de muita colheita. Esse apoio me ajudou a passar pela pandemia, conseguindo enxergar novos horizontes e possibilidades”, afirma.
O projeto de Andressa foi fundamentado diante da baixa representação feminina (cis/trans), negra e indígena no campo da produção musical, sua principal área de atuação: “A possibilidade de acessar os conhecimentos em relação a áudio e tecnologia é algo que atualmente está mais acessível, porém ainda existem vários desafios que enfrentamos diariamente para poder ocupar esse espaço que é majoritariamente branco e masculino”, descreveu Andressa Ferreira no relatório final do Programa Marielle Franco.
Com o apoio fornecido pelo edital, Andressa Ferreira fez um curso de produção musical, iniciou os estudos de inglês, comprou equipamentos para produção de áudio, como computador, microfones, interface de áudio, cabos, entre outros, esteve à frente da “Oficina Online Mulheres Afro-amerindias: Áudio e Tecnologia”, voltada para mulheres negras e indígenas (cis/trans), além de ter trabalhado na produção musical do disco Força e Fé, do grupo Imani, formado por quatro mulheres negras de Florianópolis e ter feito também a mentoria musical no projeto AMPLIA+, no qual envolvia a produção de showcases de quatro artistas LGBTQIAP+ de Porto Alegre.
Com todas essas atividades realizadas, Andressa ressalta a importância de participar também das formações políticas junto com as outras lideranças apoiadas: “Esses encontros foram de extrema importância para que eu alcançasse meu objetivo e conseguisse realizar meu Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) com sucesso, além de fortalecer a minha caminhada profissional e pessoal”.
Andressa Ferreira afirma que o Programa Marielle Franco cumpre o seu papel de fortalecer lideranças femininas negras em espaços de tomadas de decisões: “Termino esse ciclo estando cada vez mais atenta às questões raciais e de gênero. Mais conectada e consciente do legado que carrego, muito agradecida a todas as mulheres negras que abriram os caminhos para que hoje, eu e todas as mulheres contempladas por esse edital, pudéssemos estar aqui construindo o nosso futuro e potencializando não só a nossa trajetória como as das próximas gerações”.
Hoje, Andressa integra uma equipe preta de uma agência de publicidade de São Paulo, sendo contratada como freelancer para realizar a produção musical de vídeos publicitários. Sendo assim, ela demonstra gratidão ao trabalho do Fundo Baobá na promoção da Equidade Racial: “Agradeço imensamente a organização e friso a importância das ações realizadas por esse Fundo, que realiza mudanças efetivas na nossa sociedade, conseguindo fomentar projetos que contribuem de fato na construção de uma sociedade mais equânime”.
Já É: Educação e Equidade Racial
A educação é uma das áreas priorizadas para receber investimentos do Fundo Baobá.
No ano de 2014, a organização, em parceria com o Instituto Unibanco, com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e com a colaboração técnica do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), lançou o edital Gestão Escolar para a Equidade – Juventude Negra, com o objetivo de promover a implementação de práticas de gestão escolar voltadas para a elevação de indicadores como acesso, conclusão, frequência e rendimento escolar. O edital, voltado para escolas públicas de Ensino Médio, recebeu a inscrição de 124 projetos de todas as regiões do Brasil. Destes, foram selecionadas 10 iniciativas. No ano de 2016, houve a segunda edição do edital, que recebeu 184 propostas e no final contemplou mais 10 projetos de sete estados do país.
Porém, foi com a premissa de apoiar a entrada de jovens negros no ensino superior que, no dia 10 de julho de 2020, o Fundo Baobá lançou o Programa Já É: Educação e Equidade Racial. Ele conta com apoio do Citi Foundation, Demarest Advogados e Amadi Technology. Além de custear um curso pré-vestibular, as despesas comtransporte e alimentação para jovens negros da cidade de São Paulo e Região Metropolitana, o edital prevê também atividades voltadas para o enfrentamento dos efeitos psicossociais do racismo e para a ampliação das habilidades socioemocionais e vocacionais, bem como mentoria com profissionais de diferentes formações acadêmicas e vivências.
Em um mês, o programa recebeu 245 inscrições, desse número foram selecionados 84 jovens de 12 municípios da região metropolitana. Entre eles, estava Isaque Rodrigues, de São Paulo, que soube da sua aprovação no programa faltando dois dias para seu aniversário de 22 anos: “Quando recebi o e-mail de aprovação para participar do Programa Já É, eu percebi que uma grande oportunidade tinha surgido para mim, oportunidade essa de escrever uma nova história e ter um novo começo”.
Hoje, aluno do curso pré-vestibular, Isaque afirma que a bolsa de estudos tem sido de grande valia, considerando que a cada dia se aprende algo diferente: “São conteúdos que de fato irão me auxiliar a tirar boas notas em provas e nas atividades que eu irei fazer um dia”. Porém, ele faz questão de dizer que o que mais tem agregado valor são as interações com a equipe do próprio Fundo Baobá: “A Tainá Medeiros [assistente de projetos] é muito proativa e sempre se prontificou a nos auxiliar em qualquer coisa, e a Fernanda Lopes [diretora de programa] me proporcionou uma nova visão, que me fez entender que o nosso lugar de protagonistas neste mundo existe e precisamos ocupá-lo”.
Isaque reforça também a importância das mentorias realizadas e o quanto isso é inspirador em sua vida: “Hoje me sinto inspirado, motivado a fazer a diferença, a ajudar os meus e todos os que estão ao meu redor. Meus olhos brilham cada vez que lembro que olharam para mim e perceberam um potencial de ir além do que eu imaginava ir. Posso dizer que encontrei a minha identidade e hoje tenho orgulho de contar a minha história de vida e de superação”.
Com planos de cursar Publicidade e Propaganda, Isaque Rodrigues é muito grato ao Programa Já É: “Eu vejo que esse edital tem em sua essência transformar a vida de pessoas, que como eu sofrem pela desigualdade, sofrem por serem julgadas pela sua cor, não enxergando a nossa grandeza. É justamente isso que nossa juventude precisa entender: somos grandiosos e só conseguimos derrubar as barreiras juntos”, finaliza.