Juventude conectada e comprometida com a assistência social

Por Eliane de Santos

Em 2019, o Estado do Rio Grande do Norte tinha 1.329.000 pessoas – o equivalente a 38% da sua população -, vivendo abaixo da linha de pobreza, segundo a Síntese dos Indicadores Sociais 2020, divulgada pelo IBGE em novembro do ano passado. A mesma pesquisa apurou que um em cada quatro potiguares, com idades entre 15 e 29 anos, não estudava e nem trabalhava em 2019.

Pois no final do ano passado ao lançar o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, na companhia da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, da Porticus América Latina e Imaginable Futures, o Fundo Baobá teve uma grata surpresa recebendo propostas de jovens do Rio Grande do Norte.

Eles não se conheciam, entretanto compartilhavam da mesma sensação de incômodo quando paravam, olhavam ao redor e viam a fome e o sofrimento de vizinhos. Antenados, se inscreveram no edital, buscaram parcerias e fizeram diferença para centenas de pessoas.

Aline Pedro de Moura, de 28 anos, nem precisou olhar para muito longe. Moradora da comunidade quilombola de Capoeiras, em Macaíba, ela sentiu na pele e com força o abandono do estado quando a pandemia chegou.

“O que me levou a me inscrever no Edital Primeira Infância foi a falta de apoio educacional para a garotada do quilombo. As crianças na fase da primeira infância e os demais alunos estiveram nesse período totalmente abandonados, educacionalmente falando. Isto preocupa, porque é durante a primeira infância que as crianças constroem a base, o alicerce para vida”.

A interrupção das aulas na região não era o único problema: os adultos do quilombo perderam emprego e renda; faltou comida na mesa de muitas famílias. Aline pensava no bem-estar de todos e agiu, colocando em prática parte dos conhecimentos adquiridos em uma faculdade de Pedagogia, em cursos técnicos de Agropecuária e Informática.

Primeiro ela reuniu os interessados presencialmente, explicou o projeto e como gostaria de ajudá-los. Depois criou um grupo, num aplicativo de mensagens, para facilitar a comunicação e evitar aglomerações. Outros encontros presenciais foram necessários para a construção de quintais produtivos no quilombo: hortas caseiras que em breve poderão aliviar a fome das famílias.

“Os maiores desafios do projeto, aliás, ocorreram após o plantio. Muitos beneficiados tiveram os quintais invadidos pelas galinhas e foi preciso criar proteções. Além disso, a escassez de água para a rega impediu que alguns moradores participasse dessa ação”, lamenta a jovem, que mesmo assim contribuiu para que 200 adultos e 60 crianças se sentissem mais acolhidos nos dois meses de projeto.

“O quintal produtivo é muito importante para melhorar a qualidade da alimentação da minha família e dos meus filhos. Estou agradecida pelo projeto estar nos proporcionando isso”, relatou a participante Liliane Barbosa de Moura, 24, ainda durante as atividades.

Confira o Instagram do projeto Educar em Tempo de Pandemia

A menos de 200 quilômetros dali, no bairro Auto São Francisco, município de Assu, a jovem Itamara Luiza da Silva, 26, tem a convicção de que os jovens negros das periferias podem ser referência na construção de um Brasil mais igualitário e justo. Ela não apenas acredita, como contribuiu para que isso aconteça.

“Tenho uma filha pequena e, como mãe, sei que as crianças são sem dúvidas as mais prejudicadas com os agravos da pandemia. Meu sentimento maternal, de educadora e principalmente mulher me fez me inscrever neste projeto, que está sendo realizado 90% on-line devido a pandemia”, conta Itamara, que é formada em História.

“Tenho um grupo de voluntários que chega a 40 pessoas. Junto de outro jovem de Assu, que também está no edital, nós realizamos muitas coisas em parceria. Formamos um grupo de 50 mães, oferecendo cuidados no WhatsApp, compartilhando atividades e conteúdos”.

Quando coragem e oportunidade geram mudanças e bem-estar para a sociedade

Por Eliane de Santos

Recém-formada no curso de Serviço Social e Tecnologia em Gestão Pública, Fernanda de Sá Sampaio​, de 32 anos, estreou na profissão com um desafio em tanto.

“A gestora da ONG onde eu trabalho, em Pirituba, São Paulo, me falou sobre o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19. Ela me apresentou o site do Fundo Baobá, perguntou se eu gostaria de me inscrever e se eu tinha alguma ideia para desenvolver”, recorda.

Com o conteúdo do curso ainda fresco na cabeça, Fernanda lembrou de alguns debates relacionados à concessão de benefícios eventuais, como cestas básicas. E considerando que a fome era uma realidade nas comunidades que assistia rotineiramente, além de um dos focos de atenção do edital, ela não teve dúvidas:

“Após o estabelecimento do isolamento social, as preocupações voltadas para alimentação eram aparentemente as maiores entre as famílias, por isso eu considerei pertinente tratar dessa temática. E havia um agravante: sem ir à escola as crianças perderam ao menos uma refeição saudável e acompanhamento nutricional diário”, conta.

Projeto de Fernanda de Sá Sampaio, Pirituba (SP)

Coube à Fernanda minimizar esses impactos e para isso ela mobilizou outros colegas profissionais na elaboração de reuniões socioeducativas presenciais, em espaços cedidos pelo projeto Amigos das Crianças, por igrejas e salões locais. Mais encontros ocorreram de forma remota para apresentar aos responsáveis informações sobre higienização, armazenamento e reaproveitamento de alimentos.

Encerrada a etapa de reuniões, cada participante recebeu em casa kit’s com frutas, legumes, uma apostila e pote de armazenamento. Aliás, um dos desafios enfrentados foi obter transporte para a logística de compra e a entrega desses alimentos, pois muitas comunidades ficavam distantes cerca de quatro quilômetros de Canta Galo, bairro onde Fernanda mora e trabalha. Sem um carro próprio, ela recorreu aos colegas da ONG e motoristas de aplicativo.

Projeto de Fernanda de Sá Sampaio, Pirituba (SP)

O projeto beneficiou 211 famílias das comunidades do Canta Galo, Vila Mirante, Jardim Paquetá e Vila Zatt, no distrito de Pirituba.

“Eu fiquei muito satisfeita. Uma das mães nos procurou ao final e agradeceu muito, alegando que antes do projeto achava que tinha que ter muito dinheiro para dar uma alimentação saudável ao filho. Desejo participar de outros editais, porém com atividades que incentivem o cultivo de hortas”, planeja a jovem.

O mesmo edital valorizou diferentes propostas focadas na redução de desigualdades sociais, violência urbana e/ou intrafamiliar, desemprego, fome e outras adversidades agravadas pela pandemia.  Contextos que a pedagoga Samily Maria Moreira da Silva e Silva, 29, de Belém do Pará, conhece bem.

“Quando me tornei gestante comecei a pesquisar novas formas de maternar, mais parecidas com formas ancestrais de cuidados voltados para a natureza. Percebi que dentro de um sistema capitalista a maternidade é romantizada comercialmente mas na prática, principalmente para as mulheres negras, acontecem muitas violências, inclusive psicológicas. Sou mãe de Violeta, de 7 anos, e ao longo de nossas vidas sofremos violência de várias formas”, desabafa.

O projeto abraçou 10 famílias do distrito de Icoaraci e do bairro de Terra Firme, distantes da capital.  Samily Maria trabalhou pelo fortalecimento de uma rede de mães negras, com filhos de 0 a 6 anos, ressaltando a importância dessas mulheres para a proteção das crias e para a própria comunidade; fornecendo palavras de apoio e resgatando saberes ancestrais como a cultura das puxadeiras, ou parteiras, e do uso das garrafadas (remédios feitos com ervas naturais) para a recuperação do útero e auxílio à amamentação. Culturas que já foram mais fortes na região.

A primeira atividade aconteceu de forma remota, com uso de um aplicativo de mensagens para entrevistar mulheres e homens que integram a rede de apoio das mães. Depois as crianças foram convocadas para ajudar na produção de podcast’s com os temas: “Cuidados com primeira infância no contexto da Covid-19”, “A importância da amamentação” e “A importância da rede de apoio”, também compartilhados por aplicativo de mensagens.

“Além da minha filha, a produtora do projeto também é mãe de um menino, chamado Francisco, de 5 anos, e a nossa rede de comunicação e produção de mulheres negras também tem muitas mães trabalhamos em rede com várias mulheres da cidade que têm crianças. Então pensamos em criar este conteúdo de crianças negras para outras crianças negras, sobre amamentação e cuidados na pandemia”.

Dez famílias foram contempladas e no final do projeto receberam kit de cuidado e beleza mais cesta com hortaliças.

“A gente está terminando com sede de ter mais condição de firmar esse trabalho. É uma demanda grande e sempre bate uma angústia, porque esbarramos na negligência com a região Norte, com as mães pretas periféricas, na falta de acesso a vários serviços. Seguimos aos trancos e barrancos, mas fica essa sede de conseguir fazer trabalho um continuo, de envolvendo mais pessoas”.

Seja por motivação pessoal ou profissional colaborar para o bem-estar e a qualidade de vida de populações vulneráveis gera empatia, gratidão e mudanças que estão longe de ser superficiais.

Em São Paulo, a terapeuta ocupacional Lara de Paula Eduardo, 41, desejava fazer parte desta engrenagem e não hesitou em aderir ao edital.

“Tenho muito interesse em realizar trabalhos sociais que busquem transformação cultural e justiça social. Participar do Edital Primeira Infância foi uma forma de subsidiar parte do custo, e me possibilitou a parceria da psicóloga Adriana Haaz de Moura Gaunsze”, afirma.

A dupla tinha como público-alvo crianças de 1 a 3 anos, atendidas por uma creche, em Itatuba, Embu das Artes, São Paulo; seus familiares e cuidadores, incluindo homens. No entanto, chegou até eles indiretamente, incrementando a formação de 11 educadoras que já estavam acompanhando aproximadamente 100 famílias de alunos à distância.

“Sabemos que é um grande desafio auxiliar as crianças que mais precisam de apoio, estando os adultos também em grande tensão. Por isso desenvolvemos para as educadoras alguns encontros virtuais de acolhimento, reflexão e aprofundamento sobre o desenvolvimento infantil, educação, questões relativas a pandemia; importância das relações para a estruturação psíquica e o brincar”, descreve Lara.

“Aprendemos que há muito a ser feito pela educação infantil no Brasil, principalmente nas creches e berçários que trabalham com os bebês de 1 a 3 anos, em que a presença, disponibilidade e relação do adulto é fundamental para a constituição psíquica e desenvolvimento infantil.”

A força do coletivo: Reunindo recursos, saberes e criatividade. Edital Primeira Infância resgata a esperança

Por Eliane de Santos

“Se quiser ir rápido, vá sozinho. Se quiser ir longe, vá em grupo!” É fácil encontrar essa frase na internet, sempre citada como um provérbio africano. A mensagem que ela carrega faz todo sentido para a pedagoga Meire Pereira de Oliveira, de 31 anos – educadora popular e coordenadora artística e pedagógica na Universidade da Reconstrução Ancestral e Amorosa (UNIRAAM), no Pelourinho, em Salvador.

Esta segunda função, ela realiza de forma voluntária, desenvolvendo atividades pedagógicas de arte e educação com jovens e adultos, crianças e adolescentes. Sempre envolvendo parcerias com escolas públicas da comunidade do Centro Histórico da capital e adjacências; bibliotecas e praças públicas, por exemplo.

“Atuar na área de educação em comunidades periféricas, utilizando conteúdo antirracista e baseado na Lei 10.639/03 é uma das minhas maiores motivações. Soube do Edital Primeira Infância, do Fundo Baobá, por meio de duas amigas (Maria Claúdia Dias e Maria Belga Ofinger) e não pensei duas vezes. Logo nos reunimos para pensar em atividades lúdicas e didáticas com referencial identitário”, conta Meire.

Projeto de Meire Pereira de Oliveira, Projeto Em Cantos de São Lázaro, Salvador (BA)

O trio concentrou a atenção nas famílias com crianças de 0 a 6 anos e criou a campanha ‘Fortalecendo a identidade étnico-racial na primeira infância através do Em Cantos de São Lázaro em meio à pandemia 2020’. São Lázaro é uma localidade, no bairro Federação, um bairro cultural de Salvador, famoso pelas tradicionais festas ao santo padroeiro, São Roque e Omolu.

“Já estávamos presentes na comunidade, mas precisávamos nos adequar ao novo perfil de realização das atividades, em meio a pandemia. Para criar engajamento, envolvemos três representantes da comunidade na aplicação de um questionário para 30 famílias. A ideia era identificar as demandas em relação a nossa proposta”, explica.

Projeto de Meire Pereira de Oliveira, Projeto Em Cantos de São Lázaro, Salvador (BA)

“Contatamos os profissionais que já trabalhavam no Em Cantos e novas parcerias para escolher a melhor didática a ser aplicada. Preparamos 25 vídeo aulas de arte-educação e as compartilhamos por mensagens de texto. O início do primeiro vídeo foi explicativo para os pais. Cada monitor detalhou a sua atividade e maneira como ela seria conduzida. Essa ação possibilitou o engajamento dos responsáveis e estimulou a afetividade no ambiente familiar”.

Na pegada do coletivo, o grupo decidiu que artistas e brincantes negros gravariam três vezes mais vídeos, aumentando a representatividade negra nas telas. Os vídeos, que tratavam de história e cultura negra e indígena, foram publicados no Instagram,  Facebook e  YouTube.

Houve ainda oficina para a construção de instrumentos musicais com materiais reciclados (tambores de lata, ganzás de latas e garrafas pet), e doação de pandeiros infantis.

“Alcançamos 17 adultos com as assinaturas autorizando a participação dos filhos mais sete mães acompanhando as atividades presenciais, nas quais tomamos todas as medidas sanitárias contra a Covid. Chegamos a atender 34 crianças no total”, calcula Meire, feliz com o trabalho de equipe.

@projetoemcantosdesaolazaro

Veja mais vídeos no canal oficial do Projeto Em Cantos de São Lázaro no Youtube.

No Rio de Janeiro a pedagoga Débora Dias Gomes, 62, escolheu o ditado ‘Uma andorinha só não faz verão’ como lema do Instituto Pertencer, uma organização não governamental, voltada para inclusão de pessoas com deficiência, jovens e adultos em situação de risco social, que ela fundou em 2011.

Nove anos depois, Débora inscreveu o Pertencer no Edital Primeira Infância, pretendendo legitimar as ações sistemáticas e continuadas de apoio às famílias no cuidado integral de crianças de até 6 anos. E conseguiu: no dia 10 de dezembro 10 de dezembro, a equipe recebeu da Prefeitura do Rio o Selo Direitos Humanos, pelo reconhecimento ao trabalho realizado no contexto da COVID 19.

Projeto de Débora Dias Gomes, Instituto Pertencer, Rio de Janeiro (RJ)

Uma equipe interdisciplinar cuidou de 100 crianças, por meio de atendimentos pscicossociais e ações com as famílias, ambos de forma remota, utilizando grupo no Whatsapp e outras ferramentas de apoio.

Ocorreram também alguns encontros presenciais na sede do projeto para entregas de cestas básicas, materiais de higiene e limpeza, além de outros proventos. Sempre a partir de um cronograma para não haver aglomeração. E na cozinha-escola do Pertencer, mães e avós das crianças assistidas participaram de um curso para formação de boleiras e salgadeiras, visando geração de renda.

Projeto de Débora Dias Gomes, Instituto Pertencer, Rio de Janeiro (RJ)

“O objetivo era oferecer opção de renda nesse tempo de crise. Aulas comportamentais complementares trataram temas como perfil da empreendedora, inteligência emocional e mundo do trabalho, por meio de vídeoaulas e textos entregues on-line. As alunas também usavam o aplicativo de mensagem para encaminhar fotos das suas produções, áudios com dúvidas ou texto escrito. Eu diria que o maior desafio para a realização das atividades no contexto da COVID foi nos reinventarmos, nos adaptarmos para não haver interrupção das atividades propostas”.

Visite o Facebook do Instituto Pertencer 

O ambiente virtual, que poderia atrapalhar o projeto da Débora, trouxe gratas surpresas para a pedagoga Christiane Teixeira Mendes, 36, de Coroadinho, São Luís do Maranhão. Ela usou a ferramenta TikTok – febre nas redes sociais durante a quarentena – para gravar e compartilhar vídeos curtos, sensibilizando pais e responsáveis sobre questões como hiperatividade e a importância de ouvir os pequenos.

Com o incentivo do edital, ela realizou atividades (na maioria das vezes virtuais) com foco em ações de apoio a famílias (20 crianças e 60 adultos) para a melhoria do cuidado integral na primeira infância.

Projeto de Christiane Texeira Mendes, Coroadinho (MA)

“Houve uma reunião presencial, na sede da associação comunitária de Coroadinho, quando apresentamos o projeto para os pais e responsáveis. No mais, a equipe se comunicou basicamente por chamadas de vídeo no WhatsApp. Também usamos a internet para organizar um quis virtual, com perguntas em um formulário do Google Docs para os pais e responsáveis. As respostas foram analisadas por mim e por três professoras que convidei para ajudar”.

A análise do quiz gerou outra ação: a análise de relacionamento familiar. A partir das respostas elas sugeriram dicas de relacionamento personalizadas e dicas de atividades que estimulassem o desenvolvimento infantil. Tudo foi incluído em uma caixa surpresa, entregue aos participantes. Dentro também havia livros, jogos e cinco sugestões de atividades, entre elas, uma receita de picolé para pais e filhos fazerem juntos; um brinquedo para construírem e testarem juntos.

Projeto de Christiane Texeira Mendes, Coroadinho (MA)

“Fiz essa escolha porque na minha opinião essa é a fase em que nós seres humanos mais aprendemos e também é a fase em que menos recebemos investimentos. As crianças costumam ser as mais prejudicadas com a falta de vagas na rede pública, por exemplo. E agora, na pandemia, as escolas fecharam ou faliram. Muito triste”, lamenta.

 

 

Edital Primeira Infância: Ponto de partida para a empatia e o resgate da autoestima

Por Eliane de Santos

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a taxa de desemprego no Brasil chegou a 14,6% no terceiro trimestre de 2020, a maior da série histórica iniciada em 2012. O percentual correspondia na época a 14,1 milhões de pessoas.

A falta de uma renda formal contribuiu para outro dado alarmante, neste caso apurado por pesquisadores do Laboratório de Psiquiatria Molecular da UFRGS e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, divulgado em outubro do ano passado: 80% da população tornou-se mais ansiosa e 68% desenvolveu sintomas depressivos durante a pandemia.

Desemprego e estado de ansiedade eram justamente uma realidade para Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, de 34, quando ela decidiu se inscrever no Edital Primeira Infância do Fundo Baobá. Encontrou ali a motivação que precisava, além de um caminho para estimular outros brasileiros a manterem seus corpos e mentes saudáveis.

“Notei que as crianças, os responsáveis, as mulheres grávidas e puérperas sofriam muito com o distanciamento social. Percebi também que o poder público não desenvolveu ações para auxiliá-los nesse período. A instabilidade estava aumentando a ansiedade entre os pequenos e expondo os adultos à depressão, síndrome do pânico e outras doenças emocionais/psicológicas”, explica.

Projeto de Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, São Paulo (SP)

Jaqueline tem formação livre em vários estilos de dança (contemporânea, afro-brasileira, urbanas, jazz, sapateado e ballet clássico) e há 12 anos dá aulas em projetos sociais próximos na cidade de Pompeia, onde mora, e em outras duas cidades vizinhas: Queiroz e Oriente, no Centro-Oeste da capital paulista. Ela arregaçou as mangas e só precisou de um pouco de criatividade para mudar a forma de ensinar. Na verdade, a partir das medidas de distanciamento, muitas escolas e projetos fecharam e ela já vinha realizando aulas on-line, no Instagram.

Projeto de Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, São Paulo (SP)

Ao todos 30 pessoas se beneficiaram com as oficinas virtuais de ballet infantil (02 a 06 anos), alongamento para gestantes e puérperas, ballet e jazz para adultos que ela organizou. Gostaram tanto que indicaram para pessoas em outras cidades, que desejam saber se Jaqueline formará mais turmas remotas. Mesmo depois da pandemia.

“Algumas mães comentaram que as filhas ficaram menos ansiosas com as aulas de ballet infantil, e que perceberam melhora também na coordenação motora e na postura das meninas. Já algumas gestantes enviaram mensagens, reportando que as aulas de alongamento as ajudaram a dormir melhor”, comemora Jaqueline, hoje mais animada e certa da missão que tem com a dança.

Projeto de Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, São Paulo (SP)

‘Se a vida te der um limão, faça dele uma limonada’ é um ditado que vale para outros brasileiros que abraçaram o desafio do Fundo Baobá. A pedagoga Heloisa Ferreira da Silva, 42, já estava desempregada quando a Organização Mundial da Saúde anunciou a disseminação mundial do novo coronavírus, em março do ano passado. Com a notícia, ela perdeu duas chances profissionais:

“Eu havia sido aprovada em uma seleção pública e em uma instituição privada, para trabalhar como professora e coordenadora escolar. Mas veio a pandemia e não fui convocada por nenhuma das duas”, lembra.

Estava aberta no país mais uma temporada de demissões, porém outra de oportunidades. Atenta, Heloisa se candidatou ao edital do Baobá, desejando doar o seu tempo e os seus conhecimentos para o bem-estar de moradores do bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador, Bahia.

Projeto de Heloisa Ferreira da Silva, Salvador (BA)

Mas a limonada ainda não estava pronta. Surgiram dificuldades logo na etapa inicial, quando ela tentou obter autorização para trabalhar com famílias cadastradas no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) da região.

“Fui ao CRAS, expliquei as minhas intenções de prestar orientações pedagógicas para crianças de 0 a 6 anos e apoiar as mães que, como eu, estavam sem trabalhar, preocupadas com a educação dos filhos em casa. Fui orientada a não fazer o projeto”.

A saída foi percorrer a comunidade apresentando as propostas, colando cartazes e cadastrando os interessados.

Projeto de Heloisa Ferreira da Silva, Salvador (BA)

“Mudei a estratégia de divulgação. Busquei parceiros no bairro e adjacências, como o Mídia informativa Nosso Engenho, o bloco afro Os Negões, a Associação Santa Luzia, o Terreiro Ilê Axé Aji Ati Oya e o portal A gente educa”.

Cinquenta famílias decidiram participar. Como nem todas tinham acesso às redes sociais, também foi preciso usar o boca a boca para se comunicar com elas e, por exemplo, anunciar a entrega de kits pedagógicos com caixa de lápis de cor, borracha, massinha de modelar e jogos de coordenação motora, entre outros itens que variavam de acordo com a faixa etária.

Heloisa abraçou aproximadamente 150 crianças com o projeto e foi estimulada pelos pais a repeti-lo. Enfim, o refresco esperado.

Eu sempre senti a necessidade de apresentar para a sociedade uma educação que respeita as diversidades e atende com equidade. O Fundo Baobá abriu caminhos para eu iniciar a prática deste apoio comunitário e não vou parar!”

Projeto de Heloisa Ferreira da Silva, Salvador (BA)

Pobreza, desemprego, solidão, ansiedade e violência. Todos esses fatores estressores se apresentaram na pesquisa que Priscila Costa, 36, realizou ainda no início da pandemia com 153 pais e mães de crianças com menos de 3 anos de idade, matriculadas em uma creche próxima à favela Alba, no bairro de Jabaquara, na Grande São Paulo.

Como docente da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, há cinco anos ela desenvolve ali atividades de extensão voltadas à promoção do desenvolvimento infantil e de apoio à parentalidade. Priscila portanto, já conhecia a realidade dura daquelas famílias mas precisava saber como elas estavam vivendo no contexto da Covid-19.

“Pouco tempo depois eu tive conhecimento do edital e achei que ele se encaixava com o meu trabalho. Para me inscrever, eu também considerei a minha experiência como mãe de uma criança de 1 ano e cinco meses nessa pandemia. Ser mãe impulsiona o nosso olhar para ver diferente a situação de outros pais. Eu me senti sobrecarregada na fase de isolamento social. Tive momentos difíceis, sem uma rede de apoio. Imaginei como não estariam as famílias da creche, que além de tudo lidam com o desemprego, a fome e a falta de infraestrutura”, relata Priscila que também é mestre e doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de São Paulo.

Projeto de Priscila Costa, São Paulo (SP)

Ela desejava fortalecer as famílias, promovendo o desenvolvimento infantil em casa e gerenciando o estresse dos pais durante o surto de coronavírus. Para isso aplicou um programa da Universidade de Havard (EUA) que já pesquisava há um ano.

“O nome é ‘Cinco Básicos no dia-a-dia’ e tem origem no programa “The Basics”, desenvolvido no The Achievement Gap Initiative da Universidade de Harvard, sob coordenação do professor Ronald Ferguson. É uma intervenção de saúde pública. Consiste em cinco formas simples e divertidas de apoiar a parentalidade no crescimento dos filhos: dar muito amor e controlar o estresse; falar, cantar e apontar; contar, agrupar e comparar; explorar através do movimento e da brincadeira; ler e discutir histórias”, define.

“O professor Ferguson conferiu apoio irrestrito para disseminarmos o conteúdo em português”.

Na fase de planejamento Priscila convocou 33 educadores da creche de Jabaquara para uma reunião virtual, na qual foram apresentados os cinco princípios do ‘Cinco Básicos’ e discutidas maneiras de facilitar a comunicação com as famílias por meio do WhatsApp. Dali saíram algumas ideias iniciais: oferta de um brinde que as famílias poderiam retirar na creche, composto por um livro infantil, um batom gloss e um folheto dos Cinco Básicos; envio de mensagens de texto, áudio e vídeo para o engajamento das 153 famílias.

Projeto de Priscila Costa, São Paulo (SP)

Foi preciso ainda traduzir 125 mensagens de texto sobre os Cinco Básicos, elaborar uma identidade visual do programa para as mensagens de texto, produzir uma logomarca em português, legendar e dublar um vídeo sobre o ‘Cinco Básicos’ e, finalmente, engajar as famílias via WhatsApp. Ao todo 35 participaram.

“Os principais desafios foram o curto período para execução das atividades, a complexidade de traduzir as mensagens de texto, do Inglês para o Português, fazendo uma adaptação cultural de seu conteúdo, e o engajamento das famílias utilizando apenas o WhatsApp como canal de comunicação. Aprendemos muito com isso e ossos planos para o futuro incluem ampliar a disseminação do Cinco Básicos, inclusive com ações presenciais, sites e redes sociais. Vamos seguir com o projeto.”

Edital Primeira Infância facilitou ações para o acesso a direitos sociais

Acreditando que o ambiente doméstico mais do que nunca deve estar livre de qualquer tipo de violência ou negligência, a psicóloga Anny Waleska Saldanha Torres, de 48 anos, investiu tempo, amor e recursos -captados junto ao Edital Primeira Infância do Fundo Baobá -, para levar informação aos lares de 15 famílias do Distrito Maria Quitéria, na Zona Rural de Feira de Santana, na Bahia.

“Trabalho há sete anos e sete meses no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) São José, com uma comunidade negra e quilombola, então me sensibilizo por suas causas. Eu quis apresentar às famílias conteúdos pertinentes ao bom desenvolvimento na primeira infância: as consequências da violência; os benefícios do afeto, do cuidado e dos estímulos diversos para a construção da identidade e para o desenvolvimento cognitivo em aspectos como linguagem, atenção e memória”, descreve Anny Waleska que também é especialista em Neuropsicologia.

A psicóloga Anny Waleska Saldanha Torres de Feira de Santana (BA)

“A busca ativa das famílias para o projeto foi presencial, através de contatos pessoais com famílias que procuravam espontaneamente o CRAS, e via WhatsApp, através dos cadastros do CRAS e outros repassados por uma visitadora do Programa Criança Feliz. Na etapa de cadastramento, recolhemos dados referentes à composição familiar, endereço, raça, escolaridade, situação financeira/ocupacional, gestação e parto, desenvolvimento da criança etc”.

As atividades giraram em torno da produção e do envio de vídeos pelo mesmo aplicativo de mensagens. Os assuntos variavam de legislações (Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Igualdade Racial, Estatuto da Pessoa Idosa, Lei Maria da Penha e direitos socioassistenciais) a desenvolvimento infantil (aspectos psicológicos e neuropsicológicos), passando por cuidados com o excesso de mimos, a importância da afetividade e do brincar. Com base nos ensinamentos repassados, os pais foram estimulados a contar histórias para os filhos, praticar brincadeiras no quintal e jogos que estimulassem a memória e a criatividade. No final, eles compartilharam vídeos dessas atividades, bem como as impressões gerais do projeto.

Projeto de Anny Waleska Saldanha Torres, Feira de Santana (BA)

“As famílias precisavam conhecer os seus direitos e saber a quem recorrer em casos de violação ou da garantia deles. Quanto à afetividade, nós buscamos sensibilizar os familiares da importância de uma comunicação com afeto, onde a criança de 0 a 6 anos possa construir suas relações com uma base emocional sólida, longe de relações de abuso, violência e medo.”

** @ocordel site

Vídeo 1

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A garantia dos direitos da primeira infância também é uma das causas que Fernanda Flávia Cockell da Silva, 42, tem abraçado ao longo da sua trajetória de pesquisas e trabalhos de extensão pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“A pandemia tirou de mim o que sempre me moveu, o abraço! No dia 22 de março de 2020, por decreto publicado no Diário Oficial do município de Santos, todas as atividades comunitárias em grupo foram interrompidas por causa da pandemia, e as ações universitárias canceladas”, lembra Fernanda, que é fisioterapeuta, mestre e doutora em engenharia de produção e pós-doutora em Sociologia.

Era preciso se adequar à realidade, optar pelos abraços e cuidados virtuais. Com apoio do Fundo Baobá ela manteve uma das suas principais ações: a ‘Abrace seu Mundo: estreitando laços parentais’, que há cerca de quatro anos incentiva atenção às puérperas nas redes de saúde da cidade de Santos, a partir de visitas domiciliares e da prática de técnicas de vínculo parental (sling, ofurô e shantala), promovendo apoio às famílias que vivem em contextos de desigualdade social.

Projeto de Fernanda Flávia Cockell da Silva do Abrace Seu Mundo: Estreitando Laços Parentais, Santos (SP)

“Eu sabia que os filhos das alunas universitárias estavam sendo afetados pelas aulas virtuais e pela falta de creches. Os meus conhecimentos fariam diferença em tempos pandêmicos. Com o projeto eu ainda pude estender a mesma estratégia de acolhimento, escuta e o apoio à amamentação para as mães dos Morros de Santos”, comemora.

“Vivenciar o puerpério, longe de sua família é o que acontecia para muitas de nós antes da pandemia, mas com isolamento social e os riscos reais de contaminação, muitos adultos perderam o apoio dos avós ainda presentes nas comunidades. Ou a família se afastava dos mais velhos com a chegada do recém-nascido, ou assumia os riscos de contaminá-los. As crianças que estão nascendo em 2020/2021 vivenciam a primeira infância em um ambiente ainda mais vulnerável do ponto de vista social e econômico e com a fragilidade dos vínculos parentais”.

Mesmo de longe foi possível fazer muito. Fernanda e sua equipe de apoio organizaram rodas de conversa sobre questões relativas à parentalidade e maternidade no meio acadêmico, usando para isso um serviço de comunicação por vídeo (o Google Meet). Depois promoveram atividades presenciais e remotas focadas no fortalecimento dos vínculos parentais.

Projeto de Fernanda Flávia Cockell da Silva do Abrace Seu Mundo: Estreitando Laços Parentais, Santos (SP)

“A segunda ação envolveu 20 mulheres no último trimestre de gestação. Todas moradoras do Morro Nova Cintra, em Santos, com data de parto provável entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021. Elas foram acompanhadas pelas equipes de Estratégias da Saúde da Família. Acolhemos as mães presencialmente e agendamos uma conversa individual, em ambiente virtual (whatsapp) ou via chamada telefônica, com a equipe de extensionistas do projeto. A proposta era estruturar vínculos interrompidos pela pandemia “, conta.

Com este grupo foram organizados ainda encontros semanais e até um chá comunitário, remotos, respeitando ao máximo as regras de isolamento.

“O chá ocorreu pelo Facebook no dia 12 de dezembro, com tema aleitamento materno. Na ocasião dez mães foram contempladas com sorteios de enxoval (roupas novas, fraldas e lenços umedecidos). Apesar de a interação ser apenas por chat, foi possível compartilhar nossas vivências e narrativas. Além das mães presentes, havia profissionais da rede, multiplicadores e alunos, permitindo que a interação ocorresse”.

Projeto de Fernanda Flávia Cockell da Silva do Abrace Seu Mundo: Estreitando Laços Parentais, Santos (SP)

É preciso determinação e empatia para ultrapassar as barreiras sociais impostas por uma pandemia, em prol de quem mais precisa. Na cidade do Rio de Janeiro, a socióloga Ester Oliveira Bayerl, 40, fez diferença nos lares de 30 crianças com Transtorno de Espectro Autista moradoras da Cidade de Deus, uma comunidade na Zona Oeste carioca.

Ester é mãe do Samuel, 5, uma criança diagnostica com autismo leve, mas que chegou a apresentar sinais de ansiedade e convulsões nos últimos meses.

“O meu filho ia para a escola diariamente, fazia terapia ocupacional duas vezes por semana, em locais diferentes, e natação em outros dois dias. De repente foi preciso parar com tudo. Ele estranhou e passamos por momentos difíceis. Precisei me reinventar como mãe, professora, terapeuta, e improvisar atividades para ele em casa”, conta.

Projeto de Ester Oliveira Bayerl, Cidade de Deus (RJ)

“A quantidade de mães de autistas deprimidas nesse período da pandemia é muito grande, porque são elas que normalmente ficam com os filhos mais tempo. Tem autista que nem dorme. Sem poder ir para a escola ou para a terapia, eles ficaram extremamente nervosos e as mães pressionadas”.

Dar suporte a essas famílias tornou-se meta para Ester. O Edital Primeira Infância se apresentou como a ferramenta necessária para colocar uma ideia em prática: o projeto Caixa Box, que previa a montagem e a distribuição de caixas de madeira abastecidas com itens como lápis de cor, tintas e baldes de massinha, próprios para o brincar e o desenvolvimento de habilidades de crianças com TEA.

Projeto de Ester Oliveira Bayerl, Cidade de Deus (RJ)

“Na ONG que o meu filho frequenta eu vejo outras mães muito humildes, que não podem se dar ao luxo de investir em um brinquedo neste momento, e que não sabem como podem cuidar dos filhos sozinhas. Por isso, junto com as caixas foram entregues dicas de atividades que as famílias poderiam desenvolver com as crianças a partir do material doado. Entregamos também o nosso contato e criamos uma rede de diálogos com as mães”.

Uma moradora da Cidade de Deus fez a ponte entre Ester, lideranças locais, uma ONG e o Conselho Tutelar. A rede indicou as mães de autistas da comunidade e Ester descobriu que elas são muitas, mais do que conseguiria atender num primeiro momento.

“Por enquanto a ideia é continuar com esse suporte, reabastecendo as caixas após o edital, e quem sabe ampliar o alcance do projeto. Precisaremos de mais de financiamento, mas eu faria tudo novamente”.

Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, aprovou propostas que zelavam pela educação infantil em vários aspectos

Dados da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, indicam que o Brasil avançou nos últimos anos em relação à educação infantil. O atendimento de crianças de 0 a 3 anos nas creches do país subiu de 16%, em 2005, para 30,4% atualmente. Já na Pré-escola, o número de matrículas passou de 72% para 90%, no mesmo período. Mas o acesso e a qualidade ainda são desiguais e isso precisa mudar, se desejamos um país mais próspero e justo.

Com esse mesmo pensamento, e desejando contribuir justamente no momento em que algumas atividades essenciais – como a Educação – foram impactadas pela pandemia de Covid-19, a pedagoga Maria Lúcia dos Santos Rodrigues, de 58 anos, se inscreveu no Edital Primeira Infância.

“O tema me interessou, pois há 18 anos trabalho com crianças na fase de educação infantil, fundamentada no Neo Humanismo, uma filosofia que proporciona o desenvolvimento integral através da prática de Yoga (meditação, exercícios respiratório, princípios universais), da alimentação saudável (vegetarianismo), da extensão do sentimento do amor a todos os seres universais e da valorização da cultura local”, ela descreve.

Projeto de Maria Lúcia dos Santos Rodrigues, Comunidade Moara, Ananindeua (PA) – Foto: Lucia Rodrigues

Então, com a ajuda de uma psicóloga experiente, Maria Lúcia levou o projeto até 50 famílias da comunidade Moara e adjacências, no bairro de Águas Lindas, Ananindeua, região metropolitana de Belém do Pará.

“Primeiro realizamos a formação contínua de seis educadoras em temas como: Família, Ser Criança, Emoções e o Sentimento da Esperança. Depois elas foram desenvolvendo os temas com as famílias por meio de vídeos, áudios ou textos compartilhados via aplicativo de mensagens. As famílias, por sua vez, deveriam desenvolver os assuntos com os pequenos em casa. Aquelas que não tinham aparelho de telefone celular, ou cuja internet era insuficiente (em torno de 15 das 50 famílias) realizavam as atividades na sede de um Projeto CENHAMAR, na região”, lembra.

Projeto de Maria Lúcia dos Santos Rodrigues, Comunidade Moara, Ananindeua (PA) – Foto: Dayana Brito

No final do Projeto Baobá, como ficou conhecida iniciativa, houve uma surpresa a mais para os envolvidos: parceiros contribuíram para a entrega de cestas básicas e brinquedos, na semana de Natal.

“Dar um apoio às famílias que tenham crianças na faixa etária da primeira infância, fortalecendo os vínculos afetivos com o cuidador e o educador, é fundamental para o desenvolvimento integral e a saudável delas. Essa relação traz também benefícios no momento e no futuro para a família e para a sociedade.”

Projeto de Maria Lúcia dos Santos Rodrigues, Comunidade Moara, Ananindeua (PA) – Foto: Estela Gonçalves

E não importa de que forma vem esse afeto. Ele pode vir a cavalo, como propôs a psicóloga Kelly de Souza Prado, 41. Através do edital ela conseguiu financiamento para aplicar a técnica do volteio gratuitamente, para crianças e adolescentes do município de Francisco Morato, em São Paulo.

“Acredito que agora essas crianças e adolescentes podem ter uma visão diferente do caos emocional que criou-se com a pandemia. Essa era a oportunidade de darmos ferramentas emocionais e físicas para eles lidarem com o dia a dia e as dificuldades.”

Projeto de Kelly de Souza Prado, Francisco Morato (SP)

Kelly pôde contar com uma equoterapeuta e uma professora de educação física voluntária, ambas para as atividades de volteio. Outros dois voluntários auxiliaram as mães no plantio e cuidado de uma horta. Aliás, essa era uma condição para as crianças serem acolhidas pelo projeto.

Os atendimentos ocorreram no Rancho São Joaquim, em encontros presenciais, já que na ocasião o município estava na fase verde de prevenção contra a Covid-19. Os cuidados com a higiene foram reforçados.

Cartaz de divulgação do projeto de Kelly de Souza Prado, Francisco Morato (SP)

“A escolha em trabalhar na natureza veio de um projeto que eu e a proprietária do rancho, Luciana Simões, já tínhamos planejado. O financiamento veio para conseguirmos colocar tudo em prática. Entendemos que a psicologia e o volteio se complementam, pois trabalham o emocional e a consciência corporal”, explica Kelly.

“Paralelamente realizamos uma horta, como forma de os pais retribuírem o atendimento gratuito que os filhos tiveram. Quando estiver pronta para colheita, ela servirá para o consumo das próprias famílias, ou terá a renda revertida para elas e o projeto”.

Cinco crianças, um adolescente, uma avó, uma tia e quatro mães participaram ativamente. Outros 21 familiares foram impactados indiretamente. As mães relataram os filhos ficaram mais autoconfiantes, calmos, compreensivos e cooperativos em casa. Elas por sua vez acharam o trabalho na horta gratificante. Algumas inclusive, agradeceram pela oportunidade de fugir um pouco da rotina de casa, fazendo algo diferente ou que já haviam experimentado em outro momento da vida.

“Essa oportunidade que o Fundo Baobá nos ofereceu permitiu ao projeto ter continuidade. Hoje temos uma fila de espera com pelo menos cinco crianças para a próxima turma”.

Veja o vídeo da iniciativa aqui

Empatia gera empatia. E essa corrente chegou à Vila Santa Inês e comunidades próximas, no município de Ermelino Matarazzo, São Paulo, com o Brincando na Kebrada – um coletivo de mulheres pretas, mães solos, educadoras sociais e ludo educadoras, que promove a cultura da infância por meio de brincadeiras lúdicas, prazerosas, afetivas e respeitosas. Para isso, inclusive, vale o uso de muitas cores, sons, cheiros e sabores.

“Defendemos os brincares em suas diversidades, auxiliando na construção positiva do imaginário infantil! O Brincando na Kebrada visa estimular a participação e o protagonismo infantil, por meio da ocupação de ruas, praças, becos, calçadas e vielas; a construção dos brinquedos e do resgate de brincadeiras tradicionais”, conta a pedagoga e arte-educadora Minéia Miranda Santos de Oliveira, 46.

“Observamos que as necessidades físicas, como acesso aos alimentos e itens de higiene pessoal, não estava sendo contempladas e que também faltava o alimento lúdico, assegurando o direito infantil de brincar”.

Projeto de Minéia Miranda Santos de Oliveira, Brincando na Kebrada, Ermelino Matarazzo (SP)

O projeto desenvolvido com a doação do Fundo Baobá funcionou da seguinte maneira: os pais e mães cadastrados receberam sacolas com materiais pouco comuns, como bolinhas de gel, massinha ou sabão, por exemplo. Depois, por meio de vídeos compartilhados num grupo do WhatsApp, eles foram orientados a utilizarem tudo em atividades de exploração sensorial com os filhos. Houve também uma reunião presencial para orientações sobre prevenção da Covid-19, além da distribuição de alimentos e de produtos de higiene pessoal, selecionados de acordo com a faixa etária dos pequenos.

Projeto de Minéia Miranda Santos de Oliveira, Brincando na Kebrada, Ermelino Matarazzo (SP)

“Nosso maior desafio era não sobrecarregar as famílias com uma atividade a mais, porém proporcionar-lhes um momento de troca e fortalecimento de vínculos, reforçando a brincadeira como ferramenta de aprendizagem e desenvolvimento infantil”, esclarece Minéia.

“Nós aprendemos a não julgar o outro, seja pelas suas atitudes ou posturas diante de determinadas situações (econômica, política, familiar, social, entre outros). O projeto nos fez repensar, refletir e elaborar estratégias educativas de apoio humanizado. gostaríamos de continuar com o mesmo projeto agregando o acolhimento às mulheres (autocuidado, escuta, empoderamento, rede de apoio), até porque acreditamos que esse suporte é muito importante. Quem educa uma mulher, educa uma geração inteira”.

 

Literatura e afeto como alimento na pandemia

Especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça, bacharel em Ciência Política e também em Comunicação, Leandro Vilas Verde Cunha, tem 39 anos, e há 20 dedica-se ao trabalho voluntário.  Com o anúncio da pandemia, pela Organização Mundial da Saúde, ele sentiu-se intimado a doar seu tempo e seus conhecimentos a quem precisa.

“Neste tempo todo de atuação social tenho me inquietado em identificar como as desigualdades raciais são perpetuadas. Sabemos que a educação é um eixo importante dessa estrutura. Nesse quesito, um dos pontos importantes de reprodução das distâncias entre negros e não-negros é a idade em que as crianças têm acesso às primeiras ações pedagógicas, a exemplo da leitura. Na pandemia, essa desigualdade ficou mais acentuada, quando as escolas de crianças brancas implementaram rapidamente metodologias de ensino à distância, inclusive para as séries iniciais, enquanto as escolas públicas, acessadas por maioria negra, não conseguiu até então dar conta de forma razoável desse desafio”, pondera.

Projeto de Leandro Vilas Verde Cunha, Coletivo Ibomin – Salvador, Lauro de Freitas e São Francisco do Conde (BA)

“Eu participo de um coletivo que mantém uma biblioteca especializada em literatura afrocentrada. Fiquei me perguntando sobre o impacto da falta de acesso das crianças a esses livros com o espaço fechado, em decorrência das medidas de distanciamento social. Daí surgiu a ideia de levar a biblioteca, de forma qualificada, até as crianças, envolvendo as famílias e suas relações comunitárias no processo de responsabilização pelo incentivo à leitura”.

Depois veio o que faltava: recursos para colocar o pensamento em prática, através do edital Primeira Infância –iniciativa do Fundo Baobá, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Porticus América Latina e Imaginable Futures. A proposta de Leandro era mobilizar uma rede de cuidados para crianças de até 6 anos, durante a epidemia de Covid-19, usando o universo da leitura como estratégia.

Projeto de Leandro Vilas Verde Cunha, Coletivo Ibomin – Salvador, Lauro de Freitas e São Francisco do Conde (BA)

Para isso elaborou três práticas: entrega de livros, jogos da memória e outros materiais educativos aos participantes; criação de um grupo no WhatsAppp para trocas de experiências entre as famílias e o envio de vídeos já disponíveis na internet, com leituras de livros infantis afrocentrados, e, por fim, mobilização de outros adultos para atuarem como padrinhos ou madrinhas de leitura.

“As ações são realizadas junto a famílias frequentadoras do Ilê Axé Odé YeyÊ Ibomin, e que residem em três municípios da região metropolitana: Salvador, Lauro de Freitas e São Francisco do Conde. Algumas famílias aproveitam visitas ao Ilê para pegar os itens, mas a maioria recebe em casa. Para isso, contratamos um serviço de entrega de um membro do terreiro. As demais ações são feitas remotamente, por telefone, whatsapp e outras redes sociais. Dessa forma, vamos fortalecendo uma rede de cuidado à primeira infância de famílias negras frequentadoras de nosso Ilê”.  Leandro alcançou 13 crianças e 24 adultos com o projeto:

“Ouvimos muito elogios, pessoas dizendo que nunca viram ação tão linda quanto essa, que as crianças adoraram as atividades com os livros, que mesmo as mais novinhas se divertiram com as figuras e com as contações de história. A principal lição que fica é a de que nossa salvação vem de nós mesmos. A ideia do nós por nós, do Ubuntu, é realmente o caminho e podemos promover ainda mais espaços de cuidado para nossas crianças negras.”

Projeto de Leandro Vilas Verde Cunha, Coletivo Ibomin – Salvador, Lauro de Freitas e São Francisco do Conde (BA)

Confira o Instagram do Coletivo Ibomin

A busca pela equidade racial move Jonatas Aparecido Silva, 38, outro brasileiro comprometido com a literatura e militância negras.

“Sou bacharel em Comunicação Social pela Metrocamp, educador social e agente afro cultural. Tenho experiência com trabalho social pela rede socioassistencial de Campinas, dialogando com juventudes periféricas afrodiaspóricas. Amigos me indicaram o edital do Fundo Baobá, justamente por saberem do meu ativismo antirracista e da minha participação no Coletivo Mil Tambores, que realizou uma revista chamada Tamborim.”

Coletivo Mil Tambores – Projeto de Jonatas Aparecido Silva, Campinas (SP)

A ideia da publicação surgiu a partir de uma ação social da Central Única das Favelas, na periferia de Campinas, em São Paulo:

“A CUFA estava distribuindo livros junto das cestas de alimentos, no entanto eram livros e histórias euro referenciadas. Pensamos então em produzir conteúdos afro referenciados que contemplassem a nossa diversidade e gerassem a identificação das famílias. Na mesma época eu fui informado do chamado do Fundo Baobá”.

A revista Tamborim é o ponto central das atividades propostas ao Edital Primeira Infância. O plano inicial de trabalhar com uma garotada de 7 a 12 anos, mais vulnerável à evasão escolar, precisou mudar: o coletivo abriu o público-alvo para crianças a partir de 5 anos, buscando maior interação dos pais com os filhos na idade da primeira infância, a partir da leitura e das práticas indicadas na revista.

Nas 20 páginas ilustradas os leitores acompanham as aventuras dos irmãos Inza e Akin, durante um final de semana ensolarado na casa dos avós, na Região Metropolitana de Campinas. Sem sair de lá, a dupla viaja no tempo, aprende um pouco sobre as histórias do rádio e do Samba, e referências. Os leitores vão junto e são desafiados com jogos educativos e brincadeiras como a das 5 Marias, trazida ao Brasil por escravos moçambicanos.

Revista Tamborim – Projeto de Jonatas Aparecido Silva, Campinas (SP)

Com a revista foram entregues retalhos de pano e um tutorial para a montagem de bonecas Abayomi, símbolos de alegria e felicidade.

Ocorreram alguns contratempos na reta final do projeto, que foram contornados com um rede de apoio:

“Nós fechamos parceria com a CUFA para incluir a Tamborim nas cestas deles, e com o Quilombo Urbano OMG, para utilizar o espaço da sede durante a nossa distribuição. Porém, quando os 100 exemplares da revista ficaram prontos a CUFA já havia encerrado a entrega de cestas básicas e a sede do Quilombo Urbano entrou em reforma. Foi preciso reunir outros parceiros, batemos de porta em porta, usamos os Correios. Chegamos a doar 30 exemplares como material pedagógico para a EMEF Oziel Alves Pereira, que tem um projeto chamado Africanidades”, conta.

Projeto de Jonatas Aparecido Silva, Coletivo Mil Tambores, Campinas (SP)

“Enquanto educadores, pesquisadores, agentes culturais e ativistas a gente viu que a revista deu certo e queremos continuar. Essa é nossa luta, o sentido da nossa existência e nossa contribuição para um mundo melhor. Queremos continuar, ouvir os leitores e chegar a mil leitores. A segunda edição já está no forno”.

Confira o Instagram do Coletivo Mil Tambores

Na cidade de Assu, no Rio Grande do Norte, o jovem Paulo Henrique do Nascimento, 27, escolheu aplicar os seus conhecimentos em Nutrição para abrandar o sofrimento de 50 conterrâneos (mães e cuidadores de crianças de 0 a 6 anos) praticamente desassistidos pelo poder público durante a pandemia.

“O edital oportunizou pessoas vulneráveis a acessarem, mesmo que de forma remota, ações que salvaram suas vidas”.

Projeto do Paulo Henrique do Nascimento, Assu (RN)

Paulo reuniu 20 voluntários, entre professores, pedagogos, educadores físicos e artistas locais, na produção e compartilhamento (via redes sociais e aplicativos de mensagem) de peças informativas e vídeos com dicas de higiene pessoal e alimentação. Uma ação social encerrou o projeto com a distribuição de itens de limpeza e proteção pessoal contra o novo coronavirus e atividades para crianças nas comunidades.

“Como nutricionista poder promover a alimentação saudável para as crianças é algo fantástico. Sinto a missão cumprida”.

https://www.instagram.com/p/CKMmATrhElp/?igshid=1c0crewr5a2gh

https://www.instagram.com/tv/CKWUiisBRuY/?igshid=1mfs1mmfobfyr

Educar e Capacitar gera benefícios práticos

Tobias Pereira Soares Filho, 29 anos, é professor da Educação Básica e trabalha com projetos sociais dede 2009, sempre voltados para reforço escolar e educação ambiental. Neste período de pandemia ela viu a necessidade de somar novas demandas:

“Pensei nos pais e responsáveis, principalmente as mães e mulheres que estão diretamente ligadas aos cuidados com a crianças e também com a comunidade em geral, como com cursos de alfabetização de jovens, adultos e idosos. Assim, focamos o projeto em iniciativas que tinham duas intencionalidades, contribuir nos cuidados e também gerar potencialidades financeiras para essas mulheres.”

A ajuda deveria gerar ajuda prática e esperança. Tobias direcionou o projeto para a localidade de Sol Nascente, região administrativa do Distrito Federal considerada uma das maiores favelas do Brasil, ao lado da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Projeto do Tobias Pereira Soares Filho, Sol Nascente (DF)

“Atuamos em uma parte deste território projeto é focado no Trecho II do Sol Nascente, mais especificamente na Chácara 97 (lá ainda as quadras são chamadas de chácaras, mesmo sendo urbanas), onde ainda há debilidades nas áreas de saúde, educação, segurança pública e transporte”, explica.

“Realizamos, a partir do Fundo Baobá, duas oficinas com 17 mulheres do território. Uma primeira com um mestre de cultura popular da cidade, Mestre Madioca Frita, também um periférico, que ensinou a construir quatro brinquedos populares (traca-traca, mané-gostoso, rói-rói e a galinha) para um grupo de 10 mulheres do território, mais algumas crianças que preferiram ficar na oficina do que na ciranda (lugar de cuidado para os filhos e filhas destas trabalhadoras, dando melhores condições para que elas possam participar das atividades). A segunda oficina foi com a pedagoga Lídia Pereira, que ensinou a fazer uma boneca de tecido.”

Projeto do Tobias Pereira Soares Filho, Sol Nascente (DF)

Ele explica que o propósito era produzir brinquedos que ficassem com as mães ou mulheres responsáveis após as oficinas, já pensando no Natal, e principalmente que elas pudessem dominar as técnicas para futuramente produzirem novas peças, vendê-las e gerarem renda.

“Também durante todas as oficinas o grupo se preocupou que o máximo possível do recurso ficasse no próprio território, assim as mulheres que produziram a alimentação das oficinas e as cuidadoras do espaço de ciranda, foram mulheres do próprio território e ligadas ao processo de pensar as atividades, acompanhar a execução e depois avaliarem”.

Os desafios não foram muitos, começando pelos vários casos de violência contra crianças e mulheres que ocorreram durante o processo, gerando o afastamento de uma das mulheres envolvidas. Abstenções também ocorriam quando as participantes desempregadas conseguiam trabalhos de faxina nos dias de atividade.

Projeto do Tobias Pereira Soares Filho, Sol Nascente (DF)

“Não conseguimos bom engajamento na internet então as ações ocorreram basicamente e forma presencial, porém seguindo os protocolos de segurança sanitária. Como nosso espaço tinha uma pequena área coberta, também contamos com a sorte meteorológica para não chover nos dias de atividade, evitando aglomerações”, cita mis alguns.

“Escutamos das participantes inúmeras vezes expressões sobre como era novamente bom brincar ou como fazia tempo que não brincavam daquela forma, foi bonito! Também escutamos inúmeras histórias das brincadeiras de cada uma das mulheres em seus tempos de infância, foram momentos muito importantes de troca. Acho que o maior aprendizado foi o da importância de manter a cabeça sempre aberta às brincadeiras e nos permitirmos esses tempos, mesmo dentro de todas as dificuldades.”

Também em Ceilância, no Distrito Federal, a assistente social Ágata Parentes Ferreira 32, também decidiu colaborar com a população de Sol Nascente, estimulando a cooperação comunitária e a geração de trabalho e renda.

“A realidade de Sol Nascente-DF é de grande vulnerabilidade social, especialmente no Trecho III – o qual ainda está em processo de ocupação e sem infraestrutura organizada pelo Estado. As oportunidades de trabalho e de desenvolvimento pessoal são escassas, estando jovens e adultos à mercê da irregularidade empregatícia, sem certezas de quando terão chance de ganhar dinheiro para sobrevivência diária. Ao mesmo tempo, numa comunidade recente, há poucos equipamentos sociais – como feiras, mercadinhos, padarias, bares, restaurantes – o que diminui ainda mais as oportunidades de trabalho e desenvolvimento local e, principalmente, dificulta o acesso a alimentos saudáveis para consumo diário dos cidadãos e cidadãs”, descreve Ágata.

“Essa dificuldade de acesso interfere na segurança alimentar e nutricional dos moradores e moradoras da comunidade, ou seja, no “acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais” (Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006), e, consequentemente, na qualidade de vida dessas pessoas”.

A população precisava ser fortalecida, vislumbrar oportunidades de trabalho e se crescimento pessoal e cooperativo, o que na opinião de Ágata iria  interferir diretamente na vida das crianças. Ela então pensou em muitas atividades virtuais, com o intuito de diminuir o contato físico e a transmissão da Covid-19, mas esbarrou em limitações de conexão de internet e na falta de equipamentos eletrônicos. Foi preciso adaptar a abordagem para o modo presencial, seguindo as orientações da OMS e da FIOCRUZ para mitigar o risco de contaminação.

“Todo o processo foi realizado coletivamente. Houve semanalmente reuniões de planejamento e alinhamento do processo de construção da cozinha comunitária, que foi transformada em padaria comunitária devido às necessidades da própria população. Enquanto os equipamentos e utensílios estavam sendo comprados, conseguimos também implementar dois espaços de formação para melhor gestão da padaria. Os temas abordados foram Introdução à Administração Colaborativa e Introdução sobre Manipulação de Alimentos, enfatizando os cuidados operacionais da cozinha e a higiene dos manipuladores”, conta.

O grupo ainda desenvolveu cardápios com pouco uso de alimentos ultra processados e tratou divulgação da padaria comunitária com faixas, grafites e uma bicicleta de som, para atrair a clientela e aumentar o capital de giro.

“As avaliações foram bastante positivas, pois há bastante força de vontade para fazer acontecer esse empreendimento coletivo. Desde o início, todas ficaram bastante ansiosas para que a padaria iniciasse, e este passou a ser uma meta principal dessas pessoas para poder ajudar no processo de garantia de renda. A nossa equipe aprendeu a potência que essas mulheres têm e que a oportunidade de trabalho é o que falta para que essas pessoas se desenvolvam pessoal e profissionalmente.”

Em São Paulo, a psicóloga e gestora ambiental Camila Britto da Silva, 30, está convicta de que psicologia a preparou para trabalhar a autoestima, o autocuidado e autonomia dos indivíduos, e por isso não desperdiça a chance de desenvolver projetos que permitam cumprir esse objetivo.

“Em meu trabalho como supervisora do programa Criança Feliz, via junto com as estagiárias as principais necessidades vivenciadas pelas famílias e principalmente pelas mães, e como tudo isso impactava no desenvolvimento das crianças. Sendo assim, enxerguei o edital como uma maneira de trazer uma nova perspectiva para essas mulheres, o que iria impactar também em seus filhos e famílias”, justifica.

Projeto da Camila Britto da Silva do Programa Criança Feliz, São Paulo (SP)

Era preciso estimular a autonomia financeira das famílias, então ela planejou o projeto Inclui e Conect@ com o propósito de proporcionar acesso a cursos profissionalizantes e de capacitação para famílias em situação de vulnerabilidade, no município de Arujá, na Região Metropolitna de São Paulo e Alto Tietê, e que tiveram essa condição acentuada no período da pandemia.

Projeto da Camila Britto da Silva do Programa Criança Feliz, São Paulo (SP)

“Inicialmente, foi realizada uma triagem por meio de formulários para selecionar as famílias que tinham interesse e disponibilidade de realizar os cursos. A partir desse resultado, foram feitas as matrículas e as participantes que não dispunham de internet e dos materiais necessários em casa, puderam realizar as aulas no Centro de Convivência da Criança e do Adolescente no Centro. No total, foram 12 cursos com carga horária de 20h a 30h oferecidos por meio das plataformas online dos sites do SENAC, SEBRAE E SENAI, de finanças pessoais, empreendedorismo, legislação trabalhista, confeitaria, entre outros. A maior parte do projeto foi realizada de maneira virtual, salvo a entrega dos certificados e os períodos de aula de algumas mães que não dispunham de internet em casa.”

O projeto teve o engajamento total de 22 mulheres que receberam certificados. Algumas, segundo Camila, aproveitaram os cursos e conseguiram oportunidades de trabalho. Outras, decidiram iniciar ou ampliar seus próprios negócios.

Projeto da Camila Britto da Silva do Programa Criança Feliz, São Paulo (SP)

“Isso me fez acreditar que o impacto do projeto tenha abrangido não somente elas, mas também suas famílias, uma vez que todas as participantes ou estavam gestantes, ou tinham filhos e companheiros. Todos enfrentando momentos difíceis por conta da pandemia. Dessa forma, o edital beneficiou cerca de 60 indivíduos.”

Doações emergenciais aos imigrantes na pandemia

Uma longa crise econômica e humanitária na Venezuela trouxe fileiras de imigrantes ao Brasil ao longo dos últimos anos. Em janeiro de 2020, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, já havia reconhecido 17 mil venezuelanos como refugiados. E segundo o Atlas Temático – Migrações Venezuelanas (Unicamp), 3.250 imigrantes tinham registro ativo residentes na Região Nordeste, no período 2000-2019.

Na cidade de Crato, no Ceará, a professora de teatro e artes, Carla Hemanuela Bezerra, de 35 anos, e sua trupe, aproveitaram a chamada para o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, para colaborar com famílias venezuelanas que estavam de passagem pela Casa do Migrante, em novembro do ano passado. O edital avaliaria ações emergenciais dirigidas a povos indígenas, quilombolas, migrantes ou refugiados foram avaliadas em relação à sensibilidade cultural.

Projeto de Carla Hemanuela Bezerra na Casa do Migrante, em Crato (CE)

“Faço parte de um grupo de teatro que já realiza atividades em comunidades periféricas, com contação de história, oficinas e espetáculos teatrais. Quando surgiu o edital vimos a possibilidade de desenvolver algo na Casa do Migrante, que apoia os imigrantes venezuelanos. O prédio pertence à Diocese de Crato, mas é mantido com doações”, explica.

“Com a doação emergencial do Baobá fizemos em novembro um primeiro encontro presencial com as famílias para apresentamos o projeto. Em um segundo encontro organizamos oficinas de resgate da cultura venezuelana, uma com as crianças e outra com os pais. Todos escolheram falar sobre a cultura do seu país através de desenhos”.

As ilustrações que os pequenos fizeram estamparam tecidos que por sua vez viraram máscaras de proteção contra a Covid-19, em uma oficina de costura.  Carla gravou um vídeo com dicas para a confecção das peças, que foi compartilhado para outras dezenas de famílias de refugiados espalhadas pela Região do Cariri.

Projeto de Carla Hemanuela Bezerra na Casa do Migrante, em Crato (CE)

“Em 2020 mais de 100 venezuelanos passaram pela Casa do Migrante, mas durante o projeto só três famílias permaneciam desempregadas. Uma delas foi escolhida para receber uma máquina de costura e os materiais que usamos na oficina. A mulher é costureira e o marido artista plástico, então eles já estão confeccionando máscaras e bolsas para vender. O projeto foi para muitos, mas gerou imediatamente emprego e renda para uma família com três crianças. Também temos notícia de outros venezuelanos, em outras localidades, que estão confeccionando máscaras para vender”.

Os participantes ainda criaram uma logomarca para o projeto e participaram ativamente da produção de um documentário.

Projeto de Carla Hemanuela Bezerra na Casa do Migrante, em Crato (CE)

“Eles foram filmados ressaltando aspectos positivos do seu país e a necessidade de doações para a Casa do Migrante de Crato. A nossa preocupação agora é dar continuidade ao projeto, colaborando com esses mais de 100 imigrantes que ainda estão no Cariri, entre eles muitos jovens e crianças. Temos a ideia de criar uma brinquedoteca e outras coisas mais”.

A situação dos refugiados venezuelanos também sensibilizou a psicóloga Beth Fernandes, de 54 anos, 25 deles trabalhando com ativismo social.

“Estive em Boa Vista, Roraima para estudos sobre migrações sexuais e tráfico de pessoas na fronteira Brasil e Venezuela, em 2019, e percebi que Goiânia teve muita interiorização de venezuelanos, principalmente de mulheres grávidas e com crianças que ficavam nas ruas do Centro pedindo dinheiro e comida, expostas à violência.”

Projeto de Beth Fernandes no Amor Sem Dor, Goiânia (GO)

Beth encaminhou várias dessas mães ao projeto “Amor sem Dor”, promovido pelo Ministério Público do Trabalho de Goiânia e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), que oferecia aulas de corte e costura.

“Cinco das mães que eu encaminhei concluíram o curso e hoje coordenam a miniconfecção que eu montei, comprando duas máquinas e tecidos com recursos do Fundo Baobá. Elas orientam outras sete mães na confecção de camisetas, batas, lenços e máscaras de proteção contra o coronavírus”, explica Beth.

Projeto de Beth Fernandes no Amor Sem Dor, Goiânia (GO)

As participantes, 12 no total, geram renda com a venda das peças, no Centro de Goiânia. A ideia é que a miniconfecção, que funciona no galpão de outra ONG parceira – a Amor sem Fronteiras, criada por um venezuelano -, se torne o primeiro empreendimento delas.

“Se o projeto terminar, elas vão conseguir continuar sozinhas. Mas eu desejo agora é ampliar a confecção, engajar as mulheres que perderam os maridos na pandemia, ensinar a elas corte e costura, bordado, reinseri-las na sociedade”.

Projeto de Beth Fernandes no Amor Sem Dor, Goiânia (GO)

Em Suzano, São Paulo, Sílvia Aparecida do Carmo Rangel, 49, também atuou pela vertente do empoderamento, como ferramenta para o combate da violência contra a mulher.

“Minha participação foi motivada pelo desejo de ampliar ações desenvolvidas com outras usuárias dos projetos da AAMAE, instituição na qual atuo como gestora e presidente. Diante do desafio de minimizar a violência, na busca por um diagnóstico e acompanhamento mais próximo das mulheres que participam do programa Viva Leite, ou que fazem parte da comunidade e com crianças na primeira infância. Vivenciamos um aumento considerável em relação a violência doméstica, inclusive tivemos vários casos de feminicídio próximos a instituição”, afirma.

Bacharel em Direito, pós-graduada em Desenvolvimento Social e mestre em Políticas Públicas, Silvia elaborou o projeto Laços de Família – Baobá, com atividades realizadas no bairro Miguel Badra.

Projeto de Sílvia Aparecida do Carmo Rangel no AAMAE, Suzano (SP)

O cadastramento para levantamento dos dados das famílias deu-se de forma presencial, com horários previamente agendados e seguindo rigorosamente protocolos de saúde para conter o avanço do novo coronavírus. A partir daí, os contatos gerais para dúvidas e acompanhamentos ocorreram por telefone. Silvia promoveu diversas lives coletivas para discussões das temáticas violência doméstica, acidentes domésticos com crianças, educação dos filhos, amamentação e sobrecarga de responsabilidades para a mulher.

“Tivemos muitas discussões no grupo, pertinentes aos temas abordados. Mediar é sempre um desafio, pois cada qual tem sua bagagem, suas vivências, e são únicas, o que me faz a cada dia desenvolver o senso de altruísmo, o respeito a história de cada uma, e a empatia”.

O Laços de Família proporcionou também atendimento psicossocial em situações de violência, presencialmente e seguindo protocolo de saúde, além de entregas agendadas de cestas de Natal, cestas básicas, cestas de higiene e limpeza; brinquedos e máscaras de proteção. Duzentas mães e 170 crianças foram acolhidas.

Projeto de Sílvia Aparecida do Carmo Rangel no AAMAE, Suzano (SP)

“As atividades foram pensadas como forma de aproximação e envolvimento com as famílias, focando na mulher como protagonista. O desejo era ampliar a discussão sobre as diversas situações que envolvem a dinâmica familiar, os sonhos, as dificuldades e a capacidade de resolução de conflitos. Acredito que assim promovemos reflexões para trazer o reconhecimento do potencial de transformação e impacto a partir do empoderamento e resgate da dignidade.”

Cuidados para a saúde física e mental das populações vulneráveis

Determinantes para mitigar o avanço da pandemia do novo coronavírus, as políticas de distanciamento social e as recomendações básicas de higiene soaram um alerta para a parcela da população que vive em favelas, periferias e rincões do país, em situação de extrema pobreza e sem infraestrutura. De acordo com o Instituto Trata Brasil são quase 35 milhões de brasileiros que sequer têm acesso ao abastecimento de água e mais de 100 milhões sem a cobertura da coleta de esgoto.

Pensando justamente nesse grupo, longe de espaços de acolhimento adequados, a assistente social Claudia Arantes da Silva Mathias, de 51 anos, se inscreveu no edital do Fundo Baobá.

“Atuo há 22 anos no Centro de São Paulo e acompanho as demandas dessas pessoas – especialmente mulheres e jovens gestantes. Muitas delas, na sua grande maioria negras, relataram situações de violência e empobrecimento, agravadas pela epidemia que interrompeu ou reduziu muitos serviços”, explica.

Projeto de Claudia Arantes da Silva Mathias, São Paulo (SP)

Claudia considerou ainda o cuidado integral das crianças na primeira infância:

“Vivendo nos cortiços e ocupações, em ambientes insalubres e sem espaços de convivência e lazer, os pequenos são os que mais sofrem com as situações de violência doméstica. Creches e escolas fecharam e eles não ganharam opções lúdicas e educativas.”

Moradora da Zona Oeste, Claudia usou carro e transporte público para realizar visitas domiciliares na favela do Moinho e em cortiços das regiões da Luz, Canindé, Bom Retiro e Consolação; distribuiu 60 cestas básicas e 60 kits de higiene e limpeza. As demais ações ocorreram no ambiente virtual: atividades lúdico-pedagógicas para crianças de 0 a 6 anos; entrevistas individuais de acolhimento e reuniões com adolescentes e jovens mães, para o enfrentamento de violência doméstica.

Projeto de Claudia Arantes da Silva Mathias, São Paulo (SP)

“Em quatro desses casos de violência nós orientamos as mulheres sobre as medidas legais possíveis, e contei com a ajuda da A.A.Criança para realizar o atendimento biopsicossocial das famílias”.

Ao todo 114 pessoas foram beneficiadas, entre elas a jovem mãe Kelly, 17, que deixou o seguinte relato:

“Nesse momento em que a gente não tinha a quem recorrer, a senhora foi um porto seguro. Ter alguém pra falar dos nossos problemas, e nos ensinar o que é bom pra fazer nessa hora de tanta dificuldade, não tem preço”.

Projeto de Claudia Arantes da Silva Mathias, São Paulo (SP)

Da mesma forma a enfermeira Dóris Faustino, 33, voltou o seu olhar para comunidades periféricas de Belo Horizonte, capital mineira, e Betim, quinto município mais populoso do estado.

“A minha motivação para participar do edital do Fundo Baobá veio do desejo de colaborar com as meninas mães egressas do projeto socioeducativo do coletivo Teia de Anansi, onde trabalho há três anos. Confiantes no nosso trabalho, as jovens não hesitaram em nos contar que enfrentavam dificuldades para comprar materiais básicos para seus bebês em decorrência da pandemia”, relata.

Projeto de Dóris Faustino do coletivo Teia de Anansi – Belo Horizonte e Betim (MG)

Com ênfase na prevenção da doença e nos cuidados necessários para as adolescentes e seus bebês, Dóris definiu as seguintes estratégias: elaboração e entrega de cartilhas ilustrativas com esclarecimentos sobre o SARS-CoV-2 (Covid-19); distribuição de álcool em gel e máscaras de proteção; conversas por telefone para falar sobre a saúde das mães e dos bebês.

Projeto de Dóris Faustino do coletivo Teia de Anansi – Belo Horizonte e Betim (MG)

Conseguimos atingir oito adolescentes diretamente e seus bebês, totalizando nove crianças em Belo Horizonte e Betim, mais os seus familiares. Para algumas adolescentes mães egressas do socioeducativo que estão nos interiores de Minas Gerais, nós enviamos a cartilha e conversamos via aplicativos de mensagem e redes sociais. Elas agradeceram muito.”

Projeto de Dóris Faustino do coletivo Teia de Anansi – Belo Horizonte e Betim (MG)

A fim de contribuir com a primeira infância no contexto da pandemia, a psicóloga Aline Cardoso Côrtes, 29, moradora de Taguatinga, no Distrito Federal, mobilizou pelo menos seis agentes populares de saúde nos cuidados de famílias da comunidade Quintas do Amanhecer e do Assentamento Pequeno William, em Planaltina. Ao longo do projeto, eles tinham a tarefa de convidá-las para as ações e acompanhá-las.

“O cenário de pandemia, isolamento social e crise econômica desencadeou, sobretudo para as famílias e comunidades de baixa renda, uma condição de medo constante e situações de estresse vivenciadas pela falta de apoio e cuidado aos indivíduos. O projeto representou uma oportunidade de viabilizar condições concretas para salvar vidas e promover saúde às crianças e seus cuidadores. Uma etapa inicial muito importante foi a de mobilização e formação com a temática saúde mental no contexto de crise econômica e isolamento social para os agentes.”

Após o mapeamento das famílias, Aline dedicou-se a elaboração de videoaulas com diversas temáticas: de orientações para o fortalecimento da relação crianças e seus pais ou cuidadores, a oficinas de ioga e meditação, dança e instruções sobre alimentação saudável. Ela conta que surgiram algumas dificuldades, essencialmente pelas limitações do formato virtual. O convite às famílias era feito através de ligações e mensagens, o que criou um certo distanciamento e até ausência de respostas.

“Em condições normais, realizar essa mobilização de forma presencial é mais sensível e com maiores chances de cativação. Mas nos adaptando, inclusive utilizando ao máximo a ferramenta do WhatsApp”, comenta.

Projeto de Aline Cardoso Côrtes, na comunidade Quintas do Amanhecer e no Assentamento Pequeno William, em Taguatinga e Planaltina (DF)

Mas comemora, porque a recepção ao projeto foi muito positiva:

“Os relatos de uma mãe solo, por exemplo, confirmam que a pandemia fez com que a dinâmica familiar sofresse várias alterações, há uma sobrecarga de tarefas, as crianças estão mais agitadas, fazendo-se necessário meios de reinventar o cuidado. Deste modo, percebemos como muito assertivo essa proposta que incide diretamente em alternativas para a melhoria da qualidade de vida, tanto das crianças, quanto dos seus pais, que se encontram mais vulneráveis nesta conjuntura. No geral, buscamos nos fortalecer a partir de uma solidariedade coletiva, promovendo ações com foco na educação em saúde no aspecto da promoção da qualidade de vida”.

Edital Primeira Infância atraiu olhares profissionais e acadêmicos para a população vulnerável, durante a pandemia

Falar de medidas de isolamento físico e social para os sem-teto, durante a pandemia, é mais do que uma ironia. É motivo de muito sofrimento. Conhecedora dessa realidade, a arquiteta Viviane Zerlotini da Silva, de 50 anos, propôs ao Fundo Baobá medidas que impactassem positivamente cerca de seis mil famílias vivendo em Izidora, ao Norte de Belo Horizonte – um dos maiores conflitos fundiários da América Latina. Homens, mulheres e crianças em constante situação de precariedade e sem acesso às políticas públicas.

Na sua rotina de assessora técnica das ocupações de Izidora (Esperança, Helena Grego, Vitório e Rosa Leão), em atividades de extensão pela PUC Minas Gerais, Viviane também acompanha os movimentos de uma rede de cuidadores de crianças e idosos responsável por auxiliar as lideranças reconhecidas pelos moradores, na distribuição de doações. Quando a pandemia chegou, trazendo normas restritivas de acesso a uma série de serviços (creches, escolas, postos de saúde e o Centro de Referência da Assistência Social), percebeu que tudo ficou mais complicado.

Ela então tomou a iniciativa de aderir ao Edital Primeira Infância, e de convocar outros colegas e alunos do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da universidade.

“Com os devidos cuidados andamos com as lideranças, visitamos as casas, ouvimos os moradores e as muitas dúvidas que tinham em relação à Covid. Muitos estavam preocupados com a aglomeração de jovens nos bailes, com a necessidade eventual usar o transporte público, sem saber como acessar o posto de saúde para levar alguém doente ou ainda como lidar com os filhos fora da escola, por exemplo”.

Projeto de Viviane Zerlotini da Silva, Izidora (MG)

A principal ação do projeto acabou se transformando a produção e gravação de pelo menos cinco vídeos, que incluíram depoimentos dos próprios moradores e de profissionais de saúde, depois compartilhados por um aplicativo de mensagem.

“O retorno que tivemos foi ótimo. Eles gostaram muito, porque viram moradores falando e se reconheceram ali”, comenta Viviane.

Em outra ação emergencial os alunos da Escola de Formação de Autoprodutores em Processos Socioambientais, da universidade, sugeriram a confecção de brinquedos de sucata e madeira para suprir a falta da escola e da internet para a garotada. A ideia foi afinada em videoconferência, com as lideranças comunitárias. E alunos dez alunos da disciplina Processos Colaborativos elaboraram cartilhas explicativas para que os próprios moradores montassem as peças.

Projeto de Viviane Zerlotini da Silva, Izidora (MG)

“A doação de brinquedos contribuiu com a formação da criança, em seu universo lúdico, ao mesmo tempo que não exigiu a presença de um adulto externo à ocupação para acompanhar estas crianças, apenas dos pais e cuidadores. Evitou-se assim a circulação do vírus nas ocupações“, ressalta Viviane.

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A psicóloga clínica e social Liliane Santos Pereira Silva, 24, também entende a realidade de moradores de territórios em conflito, e se preocupa com esses espaços atualmente.

“Atuo desde 2016 nesses territórios (MST, Quilombos, Comunidades indígenas e campesinas), inicialmente como estudante, nesse momento como profissional. E, para além do compromisso profissional, como mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas considero que as universidades públicas devem voltar suas pesquisas a atividades de campo, produzindo nos territórios a aliança entre pesquisar e intervir”, pondera.

Para atenuar os sofrimentos da comunidade Quilombola Cajá dos Negros, na Zona Rural da cidade de Batalha, no sertão alagoano, ela optou por iniciativas virtuais e presenciais voltadas para crianças de 3 a 6 anos, mulheres jovens e adultas em período gestacional ou puerpério, além de vítimas de violência doméstica.

“Com as crianças visamos apresentar cartilhas com brincadeiras africanas em que elas possam conhecer a história do seu povo, da sua comunidade e construir referências negras desde a infância. Às mulheres grávidas ou em período puerpério ofertamos acompanhamentos para sanar dúvidas sobre o período e os cuidados em relação à Covid-19. Por fim, tentamos acolher as mulheres vítimas de violência doméstica e articular um processo de conscientização comunitária sobre o assunto, divulgando uma cartilha sobre os tipos de violência e os locais de amparo”, descreve.

Projeto de Liliane Santos Pereira Silva, Quilombo Cajá dos Negros (MG)

Liliane calcula que 15 famílias foram diretamente impactadas pelas ações, por meio de 11 crianças e quatro mães; mais 88 outras famílias, indiretamente.

“A aplicação das cartilhas infantis com jogos e contos africanos foi a que enfrentamos o maior desafio. Alguns pais e mães eram analfabetos e/ou não possuíam smartphones para receber vídeos e áudios com as explicações das brincadeiras. Para resolver isso, seguimos com a proposta de conteúdo apresentado por WhatsApp, para as famílias que possuíam o smartphones; as que não tinham receberam a vista de jovens mediadoras da comunidade que foram até suas casas para aplicar algumas atividades. Sempre seguindo rigorosamente todos os cuidados em relação a Covid-19”.

Projeto de Liliane Santos Pereira Silva, Quilombo Cajá dos Negros (MG)

Vários relatos de participantes foram satisfatórios em relação à melhora do relacionamento pais e filhos, e do comportamento dos pequenos por meio da leitura das cartilhas infantis. Já as mães sentiram-se mais confiantes com as informações seguras e de qualidade que receberam.

“Com relação às vítimas de violência, nós focamos em discutir possibilidades de desenvolvimento de renda. A saída de uma relação abusiva nunca é simples. Existe uma base sustentável que a mulher precisa ter (econômico e psicológico), e foram por essas vias que atuamos”, comentou.

“Envolver-se com comunidades é sempre pensar cada estratégia com muito cuidado e com afetividade, pensando o impacto que isso pode fornecer as famílias e como pode ainda impactar a longo prazo. De forma ampla, o maior aprendizado que recebo das comunidades é o cuidar do outro com afeto e paciência e ainda de construir ações sorrateiras, que quebram nuances do sistema hegemônico e produz no território a potência de transformação coletiva”.

Projeto de Liliane Santos Pereira Silva, Quilombo Cajá dos Negros (MG)

No Rio de Janeiro, a médica da família Patricia Maria Barros Thomas, 37, considera que o seu trabalho sempre teve um cunho social. Com a chegada do novo coronavírus e seus efeitos negativos sobre a sociedade, ela decidiu fazer algo mais pelas mulheres e crianças da Rocinha – por muitos considerada a maior favela urbana do país, encravada entre três bairros nobres da cidade.

“Percebi que a pandemia agravou as necessidades dos moradores. Quando fiquei sabendo do Edital Primeira Infância, pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, eu propus montar kits infantis, com produtos de higiene e materiais de brincar, e ofertá-los às famílias mais vulneráveis. A ideia inicial era aproveitar o momento da entrega e propiciar uma espécie de ‘oficina’ para tratar de temas como desenvolvimento infantil e relação pais-filhos, na própria clínica, mas estamos em uma unidade de saúde do município trabalhando num contexto bastante adverso nos últimos meses”.

O agravamento do quadro da pandemia na cidade atrapalhou os planos de Patricia, mas não a impediram de entregar 30 kits, contendo quadro negro, giz, apagador, massinha de modelar, areia, fita crepe, lápis de cor, giz de cera, cola, folhas de papel A4, livros infantil, leite em pó, fraldas e sabonete. Ela foi até o encontro das crianças e responsáveis, na companhia de agentes comunitários de saúde, colegas médicas, residentes e estudantes de medicina. Todos voluntários.

“A atividade contribuiu bastante para os agentes, residentes e estudantes no aspecto da formação profissional. Além disso, a impressão geral é a do quanto podemos fazer com poucas coisas. Neste tópico, vale muito mais a abordagem, o ‘recurso humano’, não somente o material!”

 

Experiências e histórias de vida que inspiram mudanças no coletivo

Quem gosta de literatura e escuta o nome Cora Coralina, logo o associa ao pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, uma importante poetisa e contista brasileira, que teve o primeiro livro publicado em 1965, aos 76 anos, embora escrevesse há várias décadas. Aos 50, já viúva, Anna decidiu assumir o pseudônimo e dedicou-se mais intensamente a registrar suas experiências pessoais e o amor pela cidade natal, Goiás. 

Ela ainda era viva, em 1991, quando um casal em São Paulo batizou a filha com o seu nome artístico. Cora Coralina de Paula Souza, hoje com 29 anos, chegou a ter vergonha do nome, porque, segundo ela, causava estranhamento entre as outras crianças. Só na juventude, descobriu os textos da escritora goiana. 

Projeto de Cora Coralina – São Paulo (SP)

 “Acredito que um poema dela vem muito de encontro aos meus anseios, o ‘Ofertas de Aninha (aos moços)’, que diz um pouco: ‘Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. Ensinou a amar a vida. Não desistir da luta. Recomeçar na derrota. Renunciar a palavras e pensamentos negativos. Acreditar nos valores humanos. Ser otimista’(…) ”.

Formada em Comunicação Social, com especialização em Gestão Cultural, a Cora Coralina paulistana tem muita sensibilidade e sede de transformação. Integra o coletivo N’Kinpa – Núcleo de Culturas Negras e Periféricas -, que reúne em sua maioria mulheres negras para a promoção da cultura e educação em territórios periféricos.  

“A motivação para me inscrever no Edital Primeira Infância veio do despreparo e descaso do poder público em dar suporte a população, principalmente nas áreas da Saúde e Educação, frente a pandemia. As violências e vulnerabilidades que acometeram os negros e as crianças foram escancaradas. Diante disso, a necessidade de buscarmos fundos e verbas foi imprescindível, pois não podíamos apenas assistir a fome, a morte e falta de cuidados”, desabafa.

Projeto de Cora Coralina – São Paulo (SP)

Cora Coralina e integrantes do coletivo atuaram na comunidade Quilombo da Parada, que fica no distrito da Brasilândia em São Paulo, região que chegou a liderar o ranking de mortes pela Covid-19 na capital, ano passado.

“Impactamos trinta famílias com crianças na primeira infância. Desenvolvemos o Kit Capanga contendo um livro de pano, saquinhos de N’ganga (ervas) e um catálogo com explicações sobre as ervas e sugestões ilustradas de cuidados com os bebês e crianças. Os livrinhos de pano trazem os símbolos Adinkras – Sankofa, Aya e Duafe. Também criamos o CD Histórias do Lado de lá Calunga, com contos e canções, acompanhado de um QR Code no encarte. Este Kit foi entregue junto de cestas básicas que continham alimentos e itens para higiene”, descreve.

Projeto de Cora Coralina – São Paulo (SP)

Como Cora Coralina, lá em São Paulo, o professor e agente comunitário Domingos Lemos Silva, 40, não suportou assistir de braços cruzados o sofrimento do seu povo.

“Moro no quilombo de São Joaquim do Sertão, em Vitoria da Conquista, na Bahia, e sou natural desse município. Enxerguei no edital a oportunidade de captar recursos para melhor servir a minha comunidade nesse momento difícil”, conta.

Projeto de Domingos Lemos Silva no Quilombo São Joaquim do Sertão – Vitória da Conquista (BA)

A ajuda chegou com a distribuição de cestas de alimentos, kits de produtos de higiene e muita orientação. Domingos convidou um representante de cada família para participar de uma palestra no pátio da igreja do quilombo – ali evocaram diálogos sobre os sintomas e cuidados necessários para manter distante o novo coronavírus.

Projeto de Domingos Lemos Silva no Quilombo São Joaquim do Sertão – Vitória da Conquista (BA)

“Na ocasião, também expliquei o que era o Fundo Baobá e o projeto que estávamos participando. Em outro momento promovi a pesagem das crianças em uma unidade de saúde, onde foi possível ainda checar as cadernetas de vacinação, além de vacinar as crianças que tinham vacinas pendentes. Consegui que o projeto atingisse 57 adultos e 35 crianças. Os participantes comentaram que gostaram do projeto e que ele deveria ser permanente; já eu aprendi a lição de que fazer o bem é gratificante”.

Projeto de Domingos Lemos Silva no Quilombo São Joaquim do Sertão – Vitória da Conquista (BA)

Em Ananindeua, no Pará, a assistente social Amanda Cristina Queiroz de Moraes, 34, teve a mesma impressão ao encerrar o projeto desenvolvido para o edital. O público-alvo foram crianças e adolescentes paraenses que sofrem com a violência familiar e a gravidez na adolescência.

 “Sou voluntária em uma comunidade denominada Curuçambá, em Ananindeua, onde vivencio essa realidade diariamente. Eu sigo o Fundo Baobá no Instagram e fiquei sabendo do edital por lá. Decidi participar, porque queria levar informação de forma lúdica e com uma linguagem acessível para essas meninas.”

Projeto de Amanda Cristina Queiroz de Moraes – Ananindeua (PA)

Com a parceria de outra assistente social, a Regeane Holanda do Carmo, 29, Amanda Cristina ofereceu também muito carinho e atenção, por meio de rodas de conversa e visitas individualizadas nas casas das adolescentes. 

Projeto de Amanda Cristina Queiroz de Moraes – Ananindeua (PA)

“Não foi fácil falar sobre sexualidade, uso de contraceptivos e relacionamento amoroso, por exemplo. Primeiro porque havia a necessidade de um responsável por perto, o que as deixava constrangidas, e por que muitas vezes esses temas não eram bem-vindos pelos pais. Mas nós conseguimos levar informações do ECA (Estatuto da Criança do Adolescente) por meio de cartilhas. Informações que elas terão para sempre.”

Projeto de Amanda Cristina Queiroz de Moraes – Ananindeua (PA)

Amanda e Regeane são voluntárias do Centro Social Estrela Dalva umas das muitas associações que buscam apoiar os moradores de ocupações de Curuçambá e populações ribeirinhas próximas. Por meio desse trabalho chegaram até 20 garotas e 10 adultos, certas de ter feito alguma diferença na vida de todos:

“Fazer o bem, é amar o próximo”, resume Amanda Cristina. 

Jornalista narra as histórias de apoiados do edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19

Diante da maior crise de saúde pública mundial, a pandemia do novo coronavírus, o Fundo Baobá para Equidade Racial lançou, no dia 6 de julho de 2020, o edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19. Em parceria com Imaginable Futures, Porticus América Latina e Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, ele tinha o objetivo de selecionar iniciativas de apoio a famílias que, em seu núcleo, tivessem: crianças de 0 a 6 anos, mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz, homens responsáveis e corresponsáveis pelo cuidado de crianças de 0 a 6 anos.

O edital recebeu 200 inscrições e divulgou, no dia 25 de setembro, a lista com as 54 iniciativas selecionadas, idealizadas por profissionais da área da saúde, educação e serviço social.

Para mostrar o impacto positivo que o programa trouxe para as famílias apoiadas, o Fundo Baobá iniciou no ano de 2021 o projeto “Edital Para Primeira Infância no Contexto da Covid-19: As Histórias”. Postado diariamente no site do Fundo Baobá e replicado nas redes sociais da organização, o projeto engloba  18 matérias produzidas com as 54 pessoas apoiadas, narrando as transformações realizadas pelo o apoio do edital.

Quem esteve à frente do projeto e produziu as 18 matérias foi a jornalista Eliane de Santos. Com passagens pelos principais jornais do Rio de Janeiro, como O Dia, O Povo e Jornal do Brasil e, posteriormente, migrando para o telejornalismo, trabalhando na TV Brasil, Canal Futura e TV Escola, Eliane tem experiência quando o assunto é trazer vida e sensibilidade para o texto.  

Eliane, que conhecia o trabalho do Fundo Baobá, acompanhando notícias e posts ligados ao movimento negro, teve a oportunidade de se aprofundar na trajetória da organização e, principalmente, ver as transformações que os editais realizam na vida da população em condições de vulnerabilidade. Cada matéria contou com o depoimento de três membros de três iniciativas apoiadas, sendo eles de diferentes regiões do país. O critério de seleção utilizado por Eliane de Santos, para montar os textos foi bem objetivo: “Busquei afinidades entre eles, como por exemplo a mesma profissão, a mesma localização, as mesmas ações selecionadas e as mesmas causas”.

Eliane de Santos, jornalista

Entre as muitas histórias ouvidas e registradas, Eliane cita três casos, em especial, que lhe sensibilizaram: “A assistente social Amanda Cristina, de Ananindeua, no Pará, venceu barreiras como o preconceito e a pobreza para informar e apoiar meninas, várias delas gestantes, vítimas de violência”. Voluntária do Centro Social Estrela Dalva, umas das muitas associações que buscam apoiar os moradores de ocupações de Curuçambá e populações ribeirinhas próximas, Amanda Cristina ficou sabendo do edital pelo Instagram do Fundo Baobá: “Decidi participar, porque queria levar informação de forma lúdica e com uma linguagem acessível para essas meninas”. Ao lado da também assistente social Regeane Holanda do Carmo, as duas ofereceram também muito carinho e atenção, por meio de rodas de conversa e visitas individualizadas nas casas das adolescentes. Através desse trabalho chegaram até 20 garotas e 10 adultos: “Não foi fácil falar sobre sexualidade, uso de contraceptivos e relacionamento amoroso, por exemplo. Primeiro porque havia a necessidade de um responsável por perto, o que as deixava constrangidas, e porque muitas vezes esses temas não eram bem-vindos pelos pais. Mas nós conseguimos levar informações do ECA (Estatuto da Criança do Adolescente) por meio de cartilhas – informações que elas terão para sempre”.

Projeto de Amanda Cristina, Ananindeua (PA)

Eliane cita a trajetória de mais duas entrevistadas: “Heloisa Ferreira da Silva, de Salvador, que espalhou cartazes pelos postes de Engenho Velho de Brotas, para convocar interessados e divulgar as atividades para aqueles que não tinham celular com internet, ou ainda a força de vontade de Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, de São Paulo, que sem trabalhar na pandemia se reinventou para acolher outras mães que como ela estavam desempregadas, respeitando o isolamento social e à beira de um ataque de nervos”.

A pedagoga baiana Heloisa Ferreira da Silva, perdeu o emprego no momento em que a pandemia do novo coronavírus se disseminou pelo país: “Eu havia sido aprovada em uma seleção pública e em uma instituição privada, para trabalhar como professora e coordenadora escolar. Mas veio a pandemia e não fui convocada por nenhuma das duas”. Quando soube do edital Primeira Infância, rapidamente se inscreveu para contribuir de alguma forma com o bem-estar de moradores do bairro do Engenho Velho de Brotas, porém, no meio do caminho ela encontrou inúmeras dificuldades: “Fui ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), expliquei as minhas intenções de prestar orientações pedagógicas para crianças de 0 a 6 anos e apoiar as mães que, como eu, estavam sem trabalhar, preocupadas com a educação dos filhos em casa. Fui orientada a não fazer o projeto”.  

A única saída para Heloisa seria percorrer a comunidade apresentando as propostas, colando cartazes e cadastrando os interessados: “Mudei a estratégia de divulgação. Busquei parceiros no bairro e adjacências, como o Mídia informativa Nosso Engenho, o bloco afro Os Negões, a Associação Santa Luzia, o Terreiro Ilê Axé Aji Ati Oya e o portal A gente educa”. Dessa forma, Heloísa teve o contato de 50 famílias, atendendo um total de 150 crianças, e como a grande maioria não tinha acesso às redes sociais a divulgação da chegada dos kits pedagógicos com caixa de lápis de cor, borracha, massinha de modelar e jogos de coordenação motora, entre outros itens que variavam de acordo com a faixa etária, foi feita no popular boca a boca: “Eu sempre senti a necessidade de apresentar para a sociedade uma educação que respeita as diversidades e atende com equidade. O Fundo Baobá abriu caminhos para eu iniciar a prática deste apoio comunitário e não vou parar!”.

Projeto de Heloisa Ferreira da Silva, Engenho Velho de Brotas (BA)

Também desempregada, a professora de dança, Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, São Paulo (SP), encontrou no edital a motivação que precisava, além de um caminho para estimular outros brasileiros a manterem seus corpos e mentes saudáveis: “Notei que as crianças, os responsáveis, as mulheres grávidas e puérperas sofriam muito com o distanciamento social. Percebi também que o poder público não desenvolveu ações para auxiliá-los nesse período. A instabilidade estava aumentando a ansiedade entre os pequenos e expondo os adultos à depressão, síndrome do pânico e outras doenças emocionais/psicológicas”. O seu projeto consiste em oficinas virtuais de ballet infantil (02 a 06 anos), alongamento para gestantes e puérperas, ballet e jazz para adultos. Ao todo, 30 pessoas se beneficiaram com a iniciativa e indicaram para pessoas em outras cidades, que desejam saber se Jaqueline formará mais turmas remotas. Mesmo depois da pandemia: “Algumas mães comentaram que as filhas ficaram menos ansiosas com as aulas de ballet infantil, e que perceberam melhora também na coordenação motora e na postura das meninas. Já algumas gestantes enviaram mensagens, reportando que as aulas de alongamento as ajudaram a dormir melhor”.

Projeto de Jaqueline Barbosa dos Santos Heldt, São Paulo (SP)

Para Eliane de Santos, contar a história de Jaqueline, Heloísa, Amanda e de outros 51 apoiados pelo Primeira Infância, foi revigorante: “Todos os participantes do edital me ensinaram alguma lição e merecem o meu respeito”. A jornalista também fez questão de ressaltar importância de uma iniciativa como esse edital: “Classifico o edital Primeira Infância do Fundo Baobá como uma ferramenta de transformação social, como mais uma prova de que, pessoas comprometidas com a sua missão profissional, têm muita força para impactar vidas positivamente”.

Os primeiros relatos já foram publicados no site oficial do Fundo Baobá, e você pode acompanhar por aqui, enquanto os outros textos serão postados diariamente.

Recursos emergenciais do Edital Primeira Infância levaram bem-estar e autoestima ao povo negro na pandemia

O histórico de escravidão e de negação da relevância dos negros na construção da nossa sociedade, minam ao longo do tempo a sua identidade. Por isso, todas as iniciativas voltadas para o resgate da força e da autoestima da população negra são consideradas essenciais pelo Fundo Baobá de Equidade Racial. O edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, por exemplo, proposto em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e Imaginable Futures, caminhou nesse sentido.

A prática de observar-se, notar-se e conhecer-se deve ser estimulada entre todas as gerações, e foi o ponto de partida para o projeto da pedagoga Ayodele Floriano Silva, de 37 anos, um dos selecionados pelo Baobá. Ciente do descumprimento da Lei 10.639/03, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, ela quis levar esse conteúdo até a casa dos estudantes.

Projeto da Ayodele Floriano Silva – São Carlos (SP)

“Pela minha experiência com a formação de professoras de educação infantil percebo que muitas desconhecem livros com personagens negros, ou que tratam da história e da cultura africana e afro-brasileira. Então pensei: porque não levar esses livros para as crianças de 0 a 6 anos? Por que não circular esses livros, já que as escolas e bibliotecas fecharam por causa da pandemia? Por que não estimular as famílias a lerem para as crianças?”.

O edital permitiu que Ayodele, moradora de São Carlos, São Paulo, superasse cada “não”, reunisse colaboradores próximos e da cidade vizinha (Itirapina) para concretizar as propostas. A ONG Associação Meninos da Aracy, o programa Criança Feliz de Itirapina (do Governo Federal) e o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos aceitaram o desafio.

Ela escalou três funcionários do Criança Feliz para atuarem como visitares. Antes participaram de reuniões presenciais e virtuais para adquirir mais conhecimento sobre temáticas como: literatura infantil e literatura infantil negra; a importância da leitura na primeira infância; a importância de personagens negros em narrativas infantis; e livros sobre as histórias e as culturas africanas, africanas na diáspora e afro-brasileiras.

Projeto da Ayodele Floriano Silva – São Carlos (SP)

“Pedi que cada visitador indicasse quatro famílias com crianças na primeira infância e eles passaram a visita-las, levando uma sacola de livros, contando as histórias e executando atividades artísticas a partir das leituras. E eles foram convidados a fazer o mesmo em seus lares”, conta Ayodele, ressaltando que o trio foi orientado a usar máscara no período das visitas; manter-se distante das crianças e realizar as leituras em áreas externas, como varandas e quintais. A cada visita também os livros e sacolas eram higienizados com álcool 70%.

Enquanto as visitas periódicas aconteciam, Ayodele foi convidada a falar sobre o projeto para 120 estudantes do curso de Licenciatura em pedagogia da UFSCar, ressaltando a importância da literatura infantil negra para a educação e para as relações étnico-raciais.

O projeto cumpriu sua missão, impactou diretamente 20 adultos e 30 crianças; outras 50 famílias receberam por aplicativo de mensagem histórias contadas em áudio e vídeo. E os posts acabaram sendo compartilhados, expandindo a proposta do projeto para um número bem maior de pessoas.

Projeto da Ayodele Floriano Silva – São Carlos (SP)

“As crianças vibraram com a histórias e os adultos também. Alguns afirmaram que nunca haviam ‘recebido a visita’ de livros que se parecem com eles. A lição que eu recebo que é preciso continuar a luta, seguir levando o que há de bom e bonito, como a arte da literatura infantil, para crianças, jovens, adultos e idosos. A prática antirracista está em várias frentes”.

O Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19 priorizou iniciativas de profissionais que se autodeclararam negros (as), indígenas, migrantes ou refugiados (as).

Confira abaixo algumas ações realizadas pelo projeto

Post 1

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Post 6

“Eu me senti motivada a participar. Baseada no meu compromisso ancestral, profissional, ético, político e social, desenvolvi esse projeto para combater opressões que intensificam a vulnerabilidade dessas pessoas”, explica a psicóloga Caena Rodrigues Conceição, 30.

Determinada a fortalecer os vínculos familiares, promover a saúde e a autoestima da comunidade negra de Salvador, ela buscou a ajuda de educadores e lideranças locais; organizou um curso para tratar de paternidade e maternidade negras. Alcançou integrantes de 25 famílias da região do Centro Histórico. As aulas ocorreram em ambiente virtual, com temas variados: “Cuidado na família preta periférica”, “O que é ser mãe e pai preto periférica(o)?”, “Como é o autocuidado e a experiência de cuidado com os filhos e filhas”, “Alimentação, nutrição da família” e “Beleza Afro e Autoestima”.

Caena Rodrigues Conceição – Salvador (BA)

“Além do curso, todas as pessoas foram acompanhadas por um grupo do Whatsapp e individualmente, tirando dúvidas e recebendo os conteúdos de formação”, conta.

Outros três últimos encontros foram reservados para debate, envio de vales-fralda (R$ 50) e certificados de participação. Encorajando os adultos o projeto ainda zelou pelo desenvolvimento saudável das crianças na fase da primeira infância. Uma das participantes, Jaqueline Silva, 23 anos, mãe de uma menina de 1 ano e 4 meses, concluiu ações com a seguinte reflexão:

“Pra mim ser mãe periférica é ter uma preocupação redobrada, pois nós sabemos que temos um sistema que não nos ajuda que não está a nosso favor, principalmente quando se trata de pretos pobres periféricos. Pra mim ser mãe periférica é colocar a educação acima de tudo, para tentar mudar a realidade em que vivemos.”

** https://www.youtube.com/playlist?list=PLeB0cRuKE49vYHwDPEceSBxdOROhw-_gG

Na mesma Salvador, as iniciativas lançadas pela enfermeira Maria Carolina Ortiz Whitaker, 42, e selecionadas pelo Baobá, também se pautaram em questões afirmativas.

Em 2015 ela visitou comunidades quilombolas, durante projetos de extensão pela Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Desde então dedica-se a atividades que possam promover a igualdade racial no país.

Maria Carolina Ortiz Whitaker – Salvador (BA)

“O edital Baobá foi um sopro de esperança no meio da turbulência provocada pela Covid-19. Essa situação agravou a realidade de famílias que já experimentavam a violência e as desigualdades sociais no seu cotidiano. Assim, nosso projeto buscou em conjunto com mulheres quilombolas fortalecer a parentalidade e a promoção da cultura de paz”.

Maria Carolina e outros voluntários atuaram na comunidade quilombola de Praia Grande, uma das cinco existentes na Ilha da Maré, em Salvador, Bahia. Com a parceria de lideranças locais eles ouviram mães de crianças de até seis anos sobre os desafios da rotina durante a quarentena; entregaram materiais educativos para prevenção da Covid-19, ilustrado com representação étnico-racial; promoveram orgulho étnico, fortalecimento feminino e reflexões a respeito das relações parentais não-tóxicas

Maria Carolina Ortiz Whitaker – Salvador (BA)

O projeto abraçou cerda de 500 pessoas de até 80 famílias, após alguns desafios: antes de mais nada foi preciso adquirir um roteador e instalar um ponto de internet na comunidade, a fim de divulgar as atividades usando aplicativo de mensagens e redes sociais. Depois se fez necessário estimular o uso da internet como responsabilidade e obter o reconhecimento do trabalho comunitário como potência.

“A nossa convivência com os quilombolas renderam aprendizados de perseverança, luta e garra. Atividades devem ser continuadas apesar de muitas vezes querermos desistir, os resultados positivos chegam de onde menos se espera. Devemos acreditar sempre.”

Maria Carolina Ortiz Whitaker – Salvador (BA)

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Ações de acolhimento para a transformação social

De casa, no bairro dos Aflitos, no Recife, Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo, de 50 anos, gastava 45 minutos no trânsito para percorrer os 13 km que a separavam de Candeeiro, comunidade no bairro do Ibura, na periferia da capital pernambucana. Ali, uma vez por semana, entre 4 de novembro de 2020 a 7 de janeiro de 2021, ela promoveu atividades de narração de histórias para meninos e meninas de 0 a 6 anos. Encontros proporcionados pelo Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, do Fundo Baobá.

Projeto de Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo – Aflitos (PE)

“Através das histórias motivamos as crianças a conhecerem novos contextos; estimulamos a criatividade, a reflexão, e principalmente o contato com os livros e a leitura. A ludicidade facilita o processo de ensino-aprendizagem”, acredita.

 Ana Elisa é formada em História, tem mestrado em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável e experiência de 12 anos atuando em ações voluntárias no terceiro setor. As doações emergenciais do Fundo Baobá a permitiram retomar um antigo projeto de narração de histórias a domicílio, que havia interrompido no começo da pandemia por falta de recursos:

“Me candidatei à iniciativa por acreditar que a primeira infância é o período mais importante da vida do ser humano. Assim é necessário um trabalho integral e integrado, onde a família tem papel fundamental”.  

Projeto de Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo – Aflitos (PE)

A meta inicial era envolver 20 crianças, mas o projeto chamou tanta atenção que outras chegaram, totalizando 37 crianças assistidas. Em cada casa, ao menos um adulto acompanhava os encontros e outros dez responsáveis participaram de oficinas sobre o papel da leitura no desenvolvimento infantil e técnicas de mediação:

“Eu entrava nas casas sem os sapatos; usava máscara e viseira o tempo todo. Levava álcool em gel para higienizar as minhas mãos e o material utilizado. Depois de contar as histórias deixava tarefas para que os pequenos fizessem associações com as histórias que ouviram. Deu certo. As crianças recontavam as histórias para outros parentes e me esperavam voltar, mas às vezes os pais esqueciam dos encontros e era viagem perdida. Esse foi o maior desafio, porém eu quero muito participar de outros editais e replicar a experiência”.

Projeto de Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo – Aflitos (PE)

Relatos como o de Ana Elisa ecoaram entre os participantes do edital. Mais do que apoiar e confortar uma parcela carente da população neste momento de tantas incertezas, muitos buscavam mudanças profundas. 

No município pernambucano de Trucunhaém, onde a cultura negra-indígena ainda é muito viva nos rostos dos habitantes e em tradições como o Maracatu de baque solto, o Coco e o Catimbó; a antropóloga e parteira Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva, 45, promoveu a saúde e o bem-estar de 70 adultos, adolescentes e crianças na primeira infância, resgatando alguns aspectos culturais: consultas e parto com parteira; horta; produção e distribuição de fitoterápicos para pessoas com sintomas de gripe. 

Tudo ocorreu entre as primeiras semanas de novembro e janeiro. Foram dois meses de muito trabalho, com atenção especial para as grávidas, puérperas, fazendo assim diferença para os bebês. 

Projeto de Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva – Trucunhaém (PE)

”É importante cuidar da gestação para que, tanto o gestar, como o nascer sejam os mais naturais possíveis. Os momentos da gravidez, do parto e a primeira infância exigem muita atenção, pois podem fragilizar as mulheres emocional e fisicamente. Elas precisam estar bem informadas, a partir do saber tradicional”, acredita.

Helena Maria que há cinco anos trabalha como parteira na sua região, adaptou seus saberes à fase da pandemia e, graças ao edital, conseguiu comprar novos equipamentos para dar um suporte melhor às parturientes – ao menos três delas foram acompanhadas e deram à luz ao longo da execução do projeto. Helena chegou a realizar um dos partos em domicílio e apoiou um caso de depressão pós-parto. 

“Criei um grupo virtual (com encontros pelo Google Meet) para promover as rodas de gestantes que eu já promovia presencialmente antes da pandemia, na comunidade. As mulheres puderam dizer como se estavam se sentindo física e emocionalmente; compartilhar questões familiares e dúvidas sobre o parto, o pós-parto e a maternidade”.

Projeto de Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva – Trucunhaém (PE)

O atendimento se complementava com visitas individuais, nas casas das participantes, quando Helena Maria usava mais da sua experiência como parteira, apalpando e medindo a barriga da gestante, checando a posição e o tamanho do bebê; auscultando os batimentos cardíacos; observando os olhos, a pele e língua das mulheres, a fim de descobrir se estavam anêmicas ou com alguma infecção, por exemplo. As visitas permitiram que ela envolvesse os pais e outros membros da família no processo da gestação, bem como nas transformações da gestante e do feto. 

“No decorrer do projeto eu também realizei escutas individuais e remotas, com gestantes e puérperas, e o acompanhamento de um caso de violência doméstica.  Também precisei orientar pessoas que relaxaram com os cuidados de higiene durante a pandemia. Mas com certeza faria tudo novamente, porque sei da importância do trabalho! Desejo participar de outros editais, aprimorando essas ideias e executando novas, pois há muito o que fazer na minha região. Esse tipo de apoio tem fortalecido a nós mulheres, ampliado a nossa capacidade de atuação e autonomia”, comemora.

Projeto de Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva – Trucunhaém (PE)

Saindo do Nordeste e descendo o mapa pelo litoral, chegamos até Armação dos Búzios, na Microrregião dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro. Um município com 23 praias e mais de 27.500 moradores (Censo IBGE, 2010) que, nos anos 1960, tornou-se conhecido internacionalmente com a visita da atriz francesa Brigitte Bardot. Desde então, Búzios ganhou força como destino turístico e o apelido de Saint-Tropez brasileira, embora tenha um lado carente que os visitantes não conhecem. 

Beatriz Raquel Silva Souza, 38, mora no bairro Cem Braças, que cresceu a partir de loteamentos ilegais. Ela pleiteou uma doação emergencial do Fundo Baobá, porque desejava oferecer suporte biopsicossocial a mulheres e adolescentes grávidas ou puérperas da sua comunidade e de um bairro vizinho (Capão).

“Sou doula desde 2015, consultora em amamentação, instrutora de yoga e massoterapeuta. Faço trabalhos sociais desde a adolescência e antes da pandemia já dava aulas gratuitas de yoga aqui no bairro. Com o apoio do Fundo Baobá foi possível levar os serviços de doula às pacientes dos Postos de Saúde da Família da região, e os profissionais de saúde olharam de outra forma para esse trabalho”, conta satisfeita. 

Projeto “Doula Comunidade” de Beatriz Raquel Silva Souza – Búzios (RJ)

A função doula ainda não é profissionalmente reconhecida, porém consta o Código Brasileiro de Ocupações e tem sido cada vez mais requisitada por gestantes que buscam acolhimento, apoio físico e emocional, da gravidez ao pós-parto.

A palavra doula tem origem grega e significa “servir”. Tudo o que Beatriz Raquel queria. Ela foi à luta: divulgou o projeto nos postos de saúde e também nas redes sociais, reunindo assim quatro gestantes (e seus companheiros) interessadas em participar de encontros virtuais com outras quatro doulas de diferentes cidades e estados. 

Divulgação do projeto “Doula Comunidade” de Beatriz Raquel Silva Souza – Búzios (RJ)

“Uma parte do recurso foi usada para ajudar as mães com o enxoval, então montei kits básicos com fraldas ecológicas, absorventes de seio ecológicos e outros itens definidos com elas. Também acompanhei alguns trabalhos de parto e forneci aulas de yoga na gestação (on-line).”

As participantes deram à luz cinco bebês (dois gêmeos) no decorrer do projeto, exigindo maior atenção de Beatriz, inclusive no pós-parto. Mas estava cumprida a missão de apresentar àquelas mães a opção do parto mais humanizado, com menos riscos de cesariana, menos chance de depressão pós-parto e menos bebês com problemas respiratórios. Sem contar a melhor adaptação ao ato de amamentar. Mães mais seguras e calmas, bebês mais saudáveis.

Projeto “Doula Comunidade” de Beatriz Raquel Silva Souza – Búzios (RJ)

“Eu faria tudo novamente, mas de forma diferente. Talvez com foco na educação perinatal, no coletivo, e posteriormente marcaria encontros individuais para tratar de temas pontuais. Assim poderia atingir um número maior de mulheres em diferentes períodos gestacionais e envolver mais doulas”, avalia, ainda mais experiente e amadurecendo ideias.

Edital Primeira Infância valorizou a experiência de profissionais que atuam em áreas estratégicas

A bacharel em psicologia Alessandra Danielly Cruz tem 25 anos, mas já adquiriu bastante experiência de vida atuando como técnica social de um Centro de Referência da Assistência Social, na região de Orobó, em Pernambuco; vendo de perto a precariedade dos serviços voltados para as famílias e para a primeira infância nos territórios quilombolas. No exercício da profissão uma coisa sempre a incomodou bastante: os casos de violência doméstica, que aliás aumentaram em muitos lares durante a pandemia e as medidas de confinamento, quando as mulheres passaram a ficar mais tempo em contato com potenciais agressores. 

Projeto da Alessandra Danielly Cruz das comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico (PE)

 “Essa violência ainda é vista de forma naturalizada, como algo que ‘a mulher procurou”, pois não existem ações governamentais efetivas voltadas para o tema dentro do território. Entendo a importância do ambiente saudável para a formação de uma criança saudável, então quis levar até as famílias cadastradas algum conhecimento acerca das violências existentes no seio familiar e suas consequências para o desenvolvimento infantil”.

O Fundo Baobá, através do Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, incentivou Alessandra na missão. O período para o cadastramento coincidiu com as últimas eleições municipais, o que atrapalhou um pouco o contato com as famílias que vivem nas comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico. Mesmo assim chegou até 25 mães e 25 crianças de 0 a 6 anos.

Projeto da Alessandra Danielly Cruz das comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico (PE)

 

“Houve a oferta de escutas psicológicas, com o intuito de trabalhar a saúde mental das mães. Elas apresentaram seus medos diante da pandemia, os desgastes físicos e mentais, a mudança na rotina, entre outras questões”, conta.

As escutas aconteceram por meio de videochamadas. E à distância também foram propostas atividades infantis, relacionadas ao desenvolvimento físico-motor, cognitivo e emocional. Alessandra gravou vários vídeos explicando o que é primeira infância, a importância na estimulação e as características de cada faixa etária. Na sequência encaminhava algumas práticas para os pais aplicarem com os filho, fortalecendo assim os vínculos familiares. Alessandra diz que receptividade foi muito boa:

“Eu recebi muitos agradecimentos pela iniciativa. As mães relataram anseios no que se refere à formação dos filhos, o medo de não estarem atuando de forma satisfatória para o desenvolvimento deles. O projeto me fez perceber o quanto a minha comunidade é carente de informação e de serviços, e enxergar como, enquanto profissional e pertencente ao local, eu posso fazer mais pelo meu povo”.

Alguns dos trabalhos de apoio à primeira infância, feito pela Alessandra Danielly Cruz das comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico (PE)

Desde o início das medidas de isolamento social, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) tem percebido mês a mês redução de uma série de crimes contra as mulheres em diversos estados. Sinal, segundo o próprio FBSP, de que as vítimas estão encontrando mais dificuldades em denunciar as violências sofridas. 

No município de Centro Novo do Maranhão, a assistente social Bruna Rafaelly Cavalcanti da Cruz, 36, percebeu essa tendência no dia a dia profissional. 

“Passamos a receber mais relatos de violência doméstica, porém através de terceiros. Não por quem sofreu a agressão”, comenta Bruna, lembrando ainda que a cidade tem muitas famílias em situação de vulnerabilidade social, o que favorece o cenário da violência doméstica.

Projeto da Bruna Rafaelly Cavalcanti da Cruz – Centro Novo do Maranhão (MA)

Era preciso agir e a doação emergencial do Baobá chegou na hora certa para aproximadamente 150 pessoas de 20 famílias, que receberam visitas domiciliares cercadas de cuidados:

“Contei com uma psicóloga e uma nutricionista na equipe. Dividimos a execução do projeto em duas etapas na primeira realizamos um trabalho socioeducativo voltado para a prevenção e combate da COVID 19, e assuntos relacionados aos impactos da epidemia da doença. A segunda etapa constou da realização de oficinas de teatro de fantoches, de casa em casa, com as famílias e entrega de lanches. Nessa fase conseguimos nos mobilizar e adquirimos parcerias para a aquisição de cestas básicas. As atividades presencial nos permitiram entender o real contexto em que as famílias estão vivendo, favoreceu a escuta e os diálogos.”

Projeto da Bruna Rafaelly Cavalcanti da Cruz – Centro Novo do Maranhão (MA) 

Ao lançar o edital, em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Porticus América Latina e Imaginable Futures, o Fundo Baobá definiu que os candidatos deveriam ter formação e prática nas áreas de saúde, educação ou assistência social. Havia a certeza de que a experiência profissional seria um fator agregador de resultados. Assim como Alessandra e Bruna, o histórico da psicóloga Marcy Maria Ferreira Gomes, 53, confirma isso.

“Trabalho desde 2008 na favela da Mangueirinha, na área da Primeira Infância. Depois de tantos anos atendendo famílias com casos de violência intrafamiliar, não há outra conclusão senão a de que a referida violência está intimamente ligada à violência e ao racismo estrutural que essa população sofre desde o início de sua vida”, desabafa, certa de que a negligência do Estado e da sociedade leva à violação de direitos fundamentais, como educação, saúde, trabalho e lazer, e afeta a qualidade das relações intrafamiliares e suscitando violências intrafamiliares. 

 

“O desenvolvimento pleno de uma criança depende uma família fortalecida, a qual só é possível com uma comunidade igualmente forte. A incidência da pandemia aprofundou as vulnerabilidades sofridas por essas famílias, o que significa que a proteção à criança ficaria ainda mais fragilizada. Vi no edital um meio de somar esforços na proteção das crianças de 0 a 6 nos da Mangueirinha, através de oficinas virtuais para mães e filhos, promovendo o fortalecimento desse vínculo como forma de prevenção à violência intrafamiliar.”

Com o apoio da Associação Brasileira Terra dos Homens, ela iniciou as atividades promovendo uma roda de conversa presencial para a formação de cinco agentes de proteção comunitários, todos moradores da favela e capazes de apoiar as famílias no tema da primeira infância. 

“Essa atividade seguiu todos os protocolos de segurança, sendo desempenhada em lugar aberto, com uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento de dois metros.

Projeto da Marcy Maria Ferreira Gomes – Favela da Mangueirinha (RJ)

Na ocasião, os agentes entraram em contato com suas vivências em sua própria infância. Depois desenvolvemos juntos o planejamento e o cronograma de oficinas virtuais para as famílias”, esclarece.

“A oficineira responsável, que compõe o grupo de agentes comunitários, gravou os vídeos com o passo a passo das oficinas e enviou para o grupo de Whatsapp das famílias, para que desenvolvessem as propostas com os filhos. Importante salientar que a escolha de uma liderança local para a execução das oficinas foi proposital, a fim de aumentar identificação por parte dos participantes e o engajamento nas atividades. As famílias receberam material complementar e após as oficinas, postavam no grupo o resultado alcançado”.

Nesse ritmo ocorreram oficinas do brincar, de montagem de álbuns de família e de construção de brinquedos. Momentos de criatividade, concentração e diálogo.

Projeto da Marcy Maria Ferreira Gomes – Favela da Mangueirinha (RJ)

 “As oficinas tiveram como escopo a aproximação e o fortalecimento dos vínculos da família, mãe e filhos, como também o estímulo de suas competências individuais, a valorização da importância do brincar para as crianças e a redução do estresse ocasionado pelo momento da pandemia, prevenindo, portanto, violências intrafamiliares.”

O projeto promoveu ainda suporte terapêutico e rodas de conversas virtuais com temas relacionados à prevenção e cuidados com a Covid-19, gestação, cuidados na primeira infância e nas relações intrafamiliares, beneficiando ao todo 40 famílias e 70 crianças.

Projeto da Marcy Maria Ferreira Gomes – Favela da Mangueirinha (RJ)

Será que a dedicação da equipe valeu a pena? Marcy Maria responde com o relato de uma mãe atendida pelo projeto – responsável por seis filhos: 

“A montagem da árvore de Natal com eles foi um momento que aproximou muito. Deu um sentido em viver em família. Eu nunca montei uma árvore com eles. Sempre trabalho fazendo faxina nessa época e não dá tempo para organizar o Natal na minha casa. Mas devido à pandemia eu fiquei em casa esse ano e foi muito bom. As oficinas com os filhos diminuíram a agitação e as brigas entre os irmãos.”  (J.S, 32 anos).

https://www.youtube.com/watch?v=QCLbgBIFrqE&feature=youtu.be

Edital Primeira Infância valorizou a autoestima de mães periféricas

Por Eliane de Santos

Em dezembro de 2019 a assistente social Aline Brauna dos Santos, de 33 anos, deu à luz João Artur, um bebê forte e saudável. Era o seu primeiro filho, mas o período de gestação foi difícil:

“Senti as mudanças no corpo e na mente, além de uma grande necessidade de suporte biopsicossocial, para mim e minha família. Optei pela gravidez independente e com isso tive muitas críticas. Por alguns momentos ficava triste e cheia de dúvidas.”

Aline é assistente social, mora em Freixeiras, na cidade de Paracuru, Ceará. Quando descobriu o Edital Primeira Infância,  lembrou-se da própria experiência complexa com a maternidade e pensou nas aflições de muitas mães e futuras mamães, agravadas pelo contexto da Covid-19:

“A minha localidade tem muitas gestantes em situação de vulnerabilidade social. Minha amiga e vizinha tinha comentado de fazermos um projeto para distribuir roupas para recém-nascidos. Com o apoio do Fundo Baobá realizamos o nosso sonho”, comemora.

Projeto de Aline Brauna dos Santos – Paracuru (CE)

Esse é o espírito do edital, lançado em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e a Imaginable Futures: selecionar iniciativas de apoio às famílias que, em seu núcleo, tenham mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz e homens responsáveis e corresponsáveis pelo cuidado de crianças de 0 a 6 anos.

Aline formou uma equipe que de novembro de 2020 a janeiro deste ano confeccionou e distribuiu fraldas, roupinhas e sapatinhos de bebê para 100 gestantes cadastradas.  As mesmas puderam participar de ao menos oito lives com enfermeiro, psicólogo e nutricionista, entre outros profissionais da saúde.

Uma das lives realizadas pelo Projeto de Aline Brauna dos Santos – Paracuru (CE)

O projeto também olhou para 50 meninos e meninas, dando suporte às suas famílias e divulgando os direitos dos pequenos em outros dois encontros simultâneos.

“As crianças merecem os cuidados primordiais nesta fase da vida, com este projeto fomentamos esses direitos, também para as gestantes e parturientes.”

Projeto de Aline Brauna dos Santos – Paracuru (CE)

 

Apostando no trabalho social como ferramenta para a construção de uma sociedade mais igualitária, Thays Fernanda da Silva, 31, assistente social de formação, com especialização em Saúde Pública e Sanitarismo, buscou as doações do edital em prol de 25 gestantes do bairro do Prado, na comunidade Sítio do Berardo; em Recife, Pernambuco.

Projeto da Thays Fernanda da Silva – Sítio do Berardo, em Recife (PE)

“Por quase dez anos atuei como agente comunitária de saúde e sempre atendi esses grupos populacionais, realizando visitas domiciliares, ações de promoção à saúde, palestras etc. Uma experiência que me mostrou o quanto as mulheres e adolescentes grávidas e puérperas são fragilizadas por diversas questões – do fator socioeconômico ao sofrimento psicológico, com o abandono paterno ou familiar. Atualmente, trabalho como Conselheira Tutelar e também observo o grande número de grávidas que pedem ajuda. Agora,  ainda mais desprotegidas com a pandemia”, conta.

Projeto da Thays Fernanda da Silva – Sítio do Berardo, em Recife (PE)

Thays conseguiu parceiros e criou o projeto Acolher Gestante, que ao todo impactou 82 pessoas, direta e indiretamente, com atendimentos individualizados (presenciais e remotos), diálogos sobre gestação em tempos de pandemia; e a entrega dos enxovais:

“Amigos me ajudaram. Tivemos ainda uma psicóloga e a parceria de uma assistente social da Ong CCB-Social, que nos cedeu um espaço para a entrega dos enxovais e um laboratório de informática para as atividades on-line. Manter as mulheres conectadas foi o maior desafio, porque nem todas tinham aparelho celular, tablet ou computador próprio. Algumas sequer sabiam manuseá-los e lidar com a internet. Mas, sem dúvida,  repetiria a experiência. E desejo participar de outros editais aprimorando essas ideias ou executando novas.”

Projeto da Thays Fernanda da Silva – Sítio do Berardo, em Recife (PE)

Se é nos momentos de dificuldade que surgem as melhores oportunidades, Marlise Silva Lemos, 34, estava atenta e viu na iniciativa do Fundo Baobá a chance de fortalecer a trajetória de 11 mulheres negras moradoras de territórios de extrema pobreza: os bairros Restinga e Ponta Grossa, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Projeto da Marlise Silva Lemos – Porto Alegre (RS)

Marlise é psicopedagoga, possui habilitação clínica e institucional, além de experiência com trabalhos sociais. Ela trabalha para uma Organização da Sociedade Civil, coordenando um serviço de convivência para crianças em situação de violência. A partir do edital, ela sentiu-se estimulada a ampliar sua atuação, alcançando também as mães:

“Refleti sobre a trajetória de inúmeras mães solteiras, que ficam diante dos dilemas e anseios inerentes à maternidade; mulheres expostas a diferentes cenários de violência e violações. Realizamos com elas três encontros presenciais nos quais trabalhamos temáticas referentes à maternidade e ao desenvolvendo infantil na primeira infância, mais atividades práticas em um curso de culinária saudável”, enumera, lembrando que as práticas ocorreram em locais abertos. Nas aulas de culinária, especificamente no momento de uso do forno, houve um revezamento entre as participantes.

Projeto da Marlise Silva Lemos – Porto Alegre (RS)

E desses momentos, aliás, saíram fornadas generosas de esperança. O Natal estava se aproximando e duas mulheres produziram e comercializaram panetones, com os conhecimentos adquiridos nas aulas. Uma delas atualmente já comanda um quiosque de lanches.

A despedida do grupo ocorreu no dia 06 de janeiro e Marlise pôde medir o sucesso do projeto:

“As participantes demonstraram em palavras e empenho o quanto se sentiram beneficiadas e valorizadas. Eu certamente repetiria a experiência, considerando o impacto extremamente significativo para a sociedade, a ampliação das minhas capacidades enquanto profissional”, avalia.

Lindos panetones feitos através do Projeto da Marlise Silva Lemos – Porto Alegre (RS)

Edital Primeira Infância – Oportunidade e Mobilização para o Acolhimento

Lançado pelo Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e Imaginable Futures, o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19 estabeleceu regras para a realização de doações emergenciais com valores de R$ 2.500,00 a R$ 5.000,00.

 Foram consideradas propostas para seis tipos de ações de apoio às famílias com crianças de 0 a 6 anos e em situação de vulnerabilidade socioeconômica. As iniciativas deveriam ser implementadas entre os meses de novembro de 2020 e janeiro de 2021. 

Pessoas físicas atuantes nas áreas de saúde, educação e assistência social puderam optar entre ações: para o cuidado integral de crianças nessa faixa etária; de suporte biopsicossocial de mulheres ou adolescentes grávidas ou puérperas; ações voltadas para homens responsáveis ou corresponsáveis pelo cuidado integral das crianças na primeira infância; de apoio a adultos responsáveis por zelar e preparar os pequenos, para os desafios presentes e futuros. Outras duas possibilidades foram: iniciativas de prevenção à violência intrafamiliar e doméstica contra mulheres, idosos, crianças e adolescentes de famílias que tivessem em seu núcleo meninos e meninas de até seis anos, e ações de assistência à essas vítimas. 

E não é que surgiram candidatos para atuar em todas as frentes? Profissionais como Edaildes Aparecida Rocha, de 51 anos. Formada em Serviço Social e com especialização na área da saúde, ela previu os impactos negativos que os protocolos de isolamento poderiam causar à saúde e à segurança da população carente de Cotia, São Paulo, e de localidades vizinhas.

Projeto da Edaildes Aparecida Rocha – Cotia (SP)

Ela envolveu outros especialistas em saúde e psicologia, definiu o público-alvo, traçou um cronograma de atividades, distribuiu cartões de atendimento e impactou (direta e indiretamente) 101 pessoas, por meio de atendimentos psicológico, oftalmológico, ginecológico e dentário, em pelo menos três unidades de saúde da região. Fora a oferta de kits de higiene para os pacientes e a entrega de cestas básicas mensais. 

Parte do trabalho ocorreu de forma remota, com o envio de vídeo e folder informativos sobre saúde e a importância da família. O maior desafio, segundo ela, foi lidar com a equação: tempo versus resultados.

Projeto da Edaildes Aparecida Rocha – Cotia (SP)

“Pacientes e seus núcleos familiares trouxeram questões complexas, como ansiedade, luto, violência sexual e doméstica, a serem resolvidas num curto espaço de tempo. Se fez necessário acompanhamento semanal com eles, além de intervenções para elevar a autoestima, cuidados para com o corpo, a mente e o espírito”, conta.

Edaildes pensou em detalhes para fidelizar os atendimentos: lembretes eletrônicos, chamando para as consultas; lanchinhos para recepcionar os pacientes, doces e cartões como presentes de Natal para as famílias. 

Projeto da Edaildes Aparecida Rocha – Cotia (SP)

“Muitas vezes o paciente chegava triste, cheio de dores e angústias, mas após algumas sessões se mostrava sorridente e fortalecido. Ouvi relatos de pessoas que aguardavam pela consulta uma vez por semana e que passaram a dormir melhor. Isso não tem preço.” 

Também não é possível precificar o bem-estar que Aristanan Pinto Nery da Silva, 35, proporcionou a cerca de 300 famílias do Distrito de Pataiba, em Água Fria, Bahia.

“Sou servidor municipal na área da saúde, categoria endemias, e sei da real necessidade de ações para a primeira infância e para a proteção humana, na localidade onde atuo”, comenta.

Aristanan Pinto Nery da Silva – Distrito de Pataiba (BA)

A verba do edital permitiu que Aristanan e uma equipe de profissionais – envolvendo professores, mobilizadores culturais e sociais – ampliassem um projeto que já vinham realizando de forma remota: a Rede de Articulação e Mobilização no enfrentamento ao Covid-19, com recorte para a primeira infância.

“Mobilizamos as pessoas pelas redes sociais e a primeira ação executada, no período de novembro a dezembro, foi a distribuição de kits de higiene contendo máscaras, álcool em gel e folders informativos. Também enviamos cartilhas virtuais com temáticas voltadas para a saúde e a educação de crianças de 0 a 6 anos durante a pandemia”. 

Projeto de Aristanan Pinto Nery da Silva – Distrito de Pataiba (BA)

As redes sociais também foram o caminho para compartilhar oficinas de contos virtuais e promover uma significativa ação de enfrentamento à Covid-19: o seminário virtual “Proteção da Primeira Infância em Tempos de Pandemia”. 

“Contamos com a presença de Emerson Almeida, ex-coordenador do Programa Primeira Infância em Água Fria, e de Adailton de Cerqueira, presidente do CMDCA em Biritinga. Transmitimos ao vivo pelo Facebook, oscilando entre 10 e 15 participantes. Mas com os acompanhamentos, calculamos o alcance de 50 pessoas. O momento foi de orientação e troca de experiências relacionadas à contaminação pelo novo coronavírus e violações sofridas pelas crianças no isolamento.”

Imagens do seminário virtual “Proteção da Primeira Infância em Tempos de Pandemia”

Os participantes do Edital Primeira Infância deveriam executar as propostas preferencialmente no ambiente virtual, reduzindo as chances de disseminação do novo coronavirus nas comunidades envolvidas. Um desafio que Lela Queiroz, 57, assumiu para nunca mais esquecer.

Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão interação cognitiva BMCª (Body Mind-Centering) na Escola de Dança da UFBA, ela desafiou a si mesma e moradores de duas comunidades quilombolas e de uma aldeia indígena Tupinambá, na Bahia, com duas tarefas remotas: realizar duas oficinas de brinquedos eco sustentáveis para crianças de 0 a 2 anos em três semanas, a tempo de serem entregues às crianças no Natal, e coletar cantorias originais (indígenas e africanas) que pudessem acompanhar o brincar da criança com esses objetos.

Projeto de Lela Queiroz de BMC e Bebê – Aldeia Tupinambá (BA)

Não se tratava de uma gincana, mas de um projeto que também contemplava a educação parental, desenvolvendo nos adultos a visão do protagonismo da criança no seu próprio desenvolvimento integral. Para ela ser feliz primeiro.

Para a missão, ela escalou três multiplicadores:

 “Eu e outra desenvolvedora do projeto, pesquisamos materiais de baixa tecnologia, de baixo custo e que não oferecessem riscos às crianças. Substituímos facas e estiletes por tesouras, por exemplo. Nós orientamos os multiplicadores através de um grupo no WhatsApp (o Baobá Tronco) e eles por sua vez replicaram as tarefas para as famílias cadastradas nas suas respectivas comunidades, também por meio de um grupo (o Baobazinho), no mesmo aplicativo de mensagem. As famílias então montavam as peças em suas casas”, explica Lela.

Equipe de colaboradores do Projeto BMC e Bebê – Aldeia Tupinambá (BA)

“Os recursos do Fundo Baobá serviram para compra de material e para subsidiar as ações. As comunidades então criaram uma linha de brinquedos de 0 a 2 anos, mas o objetivo final era fomentar a produção no futuro, replicando os modelos em maior escala, para crianças de até 4, vendendo esses brinquedos on-line, em feiras, distribuindo em escolas etc”.

Confeccionados papelão, garrafas pet e sementes, os brinquedos deveriam sons suaves que remetessem ao xequerê (instrumento musical de percussão africano) e ao pau-de-chuva (instrumento musical idiofônico indígena), para não abalar o sistema nervoso da criança.  Os bebês precisam do estímulo auditivo e a oficina levou esse entendimento para as famílias. 

Projeto de Lela Queiroz de BMC e Bebê – Aldeia Tupinambá (BA)

“O projeto extrapolou as comunidades, ganhou um canal no YouTube onde mais de 100 pessoas se inscreveram para acompanhar as oficinas de instrumentos. Nas comunidades calculamos ter impactado de 20 a 30 pessoas.”, diz Lela. 

“Foi lindo, mas foi difícil. Fizemos um mês de prospecção junto aos agentes em comunidades e após escuta e seleção de sete comunidades, somente três encontraram jeito de participar. Os desafios foram desenvolver todo o escopo da ação do projeto on-line, com a outra ponta sem acesso à internet por dificuldades ligadas a transmissão em áreas remotas, falta de equipamentos e de wifi, falta de condições tecnológicas associado à falta de compreensão ou entendimento. Mas as comunidades adoraram. Plantamos uma sementinha”.

Conheça o projeto BMC e Bebês

Apoiar, mobilizar e transformar: O que é possível realizar durante a pandemia

Por Eliane de Santos

Reunir esforços para encorajar uma parcela vulnerável da população quando ela mais precisa: em tempo de pandemia e de recomendações oficiais para o isolamento social. Neste momento novo e difícil para todos, o Fundo Baobá para Equidade Racial -em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e a Imaginable Futures- lançou um desafio: o Edital para Primeira Infância no Contexto da Covid-19. 

Os requerimentos foram recebidos entre os dias 6 e 26 de junho, mês em que, de acordo com a Universidade Johns Hopkins (EUA), o Brasil já somava o segundo maior número de mortes por Covid-19 (58 mil), atrás dos Estados Unidos (126 mil).

Ao todo foram selecionadas iniciativas de 54 profissionais com formação superior e experiência nas áreas de educação, saúde e assistência social. Brasileiros dos quatro cantos do país igualmente ameaçados pelo novo coronavírus, porém dispostos a (de maneira segura) fazer diferença nas vidas de crianças de até seis anos ou mesmo de famílias inteiras.

Na zona rural de Feira de Santana, na Bahia, por exemplo, Daiane Pereira, de 35 anos, encontrou no edital a possibilidade de oferecer suporte pedagógico e de fortalecer o vínculo entre crianças, pais ou responsáveis, moradores do Quilombo Candeal II.

Projeto da Daiane Pereira de Feira de Santana (BA)

“A escola da comunidade fechou por causa da pandemia e nenhum suporte foi providenciado pelo poder público. Não houve ensino remoto, acompanhamento pedagógico, nem entrega de atividades. Absolutamente nada foi feito entre os meses de março e setembro. Percebi que as famílias estavam perdidas”, conta Daiane.

Graduada em Letras, especialista em estudos literários e mestre em cultura, memória e desenvolvimento regional, ela apostou nas palavras e plantou o projeto Cultivando Sonhos, a fim de resgatar a dignidade de 15 famílias  nas quais estão 25 crianças com idades de 3 a 6 anos. 

Projeto da Daiane Pereira de Feira de Santana (BA)

“Nossos monitores passavam pelas casas para entregar e recolher as ‘sacolas do saber’, com os livros de literatura que também tratavam de representatividade negra. Cada família ficava com a sacola por uma semana, para que tivessem momentos de leitura com seus pequenos e de forma que toda bibliografia do projeto circulasse na comunidade. Além disso, tivemos os ‘padrinhos literários’, voluntários que acompanhavam as famílias virtualmente, auxiliando nos momentos de leitura.  A nossa orientadora pedagógica gravou histórias, elaborou os roteiros de leitura, sugeriu atividades e brincadeiras.”

Saiba mais sobre o projeto no FacebookInstagram.

https://www.youtube.com/channel/UC3bdYfczBawNo-j0jP3Hajw

Também na Bahia, no município de São Francisco do Conde, Layla Carvalho, 37, e Mighian Danae Ferreira, 40, encontraram no edital a saída para aprimorar o projeto social Facul das Crias, que ambas já desenvolviam dentro da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Seu propósito é dar mais visibilidade à infância, maternidade e paternidade negras nos espaços institucionais.

“Os recursos recebidos pelo Fundo Baobá nos permitiram aprofundar algumas ações e reflexões durante a pandemia. Nosso objetivo era acolher crianças, puérperas, mães e pais com ações voltadas para a formação de meninos e meninas, além de conversas sobre preocupações que envolviam a comunidade”, diz Layla. 

Projeto Facul das Crias em São Francisco do Conde (BA)

Uma dessas preocupações estava relacionada à garantia do alimento durante a pandemia, quando a falta de trabalho, a queda da renda familiar e o aumento do preço dos alimentos se agravaram.  Vale lembrar que a Bahia registrou o maior índice de desocupação (20,7%) entre os estados do país no terceiro trimestre de 2020, quando, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil tinha 14, 1 milhões de pessoas sem empregos formais. 

Foi nesse cenário que Layla, cientista política, e Mighian, pedagoga, envolveram 47 adultos e 26 crianças em atividades como a oferta de crédito de R$ 60 para a compra de frutas, verduras e legumes com um feirante local; a edição de um livro de receitas contemplando o uso desses ingredientes, e ainda a produção e compra de fraldas reutilizáveis e ecológicas. Medidas simples, porém transformadoras.

“Buscaremos mais recursos também para viabilizar nossas ações no período pós-pandêmico, a fim de garantir um espaço para a formação complementar das crianças de São Francisco do Conde”, planeja Layla.

Projeto Facul das Crias em São Francisco do Conde (BA)

A mais de 800 Km dali, em Olinda, na região metropolitana do Recife (PE), a parceria chegou através de dois encontros semanais com duração de uma hora cada; máscaras e álcool em gel disponíveis para os convidados.  Instantes de acolhimento emocional e aprendizado para 12 mães e 15 crianças do bairro Rio Doce, num espaço onde era possível exercitar a criatividade e fortalecer vínculos. 

“Dividimos os convidados em três grupos. Para as mães oferecemos oficina de confecção de brinquedos com feltro e recursos terapêuticos visando o aprendizado de um ofício, a troca de experiências e o empoderamento feminino. Também promovemos orientações sobre a primeira infância. Já para as crianças foram oferecidos o brincar e o interagir”, conta Jaqueline Leite Serafim, 47 anos, responsável pelo projeto.   

  “Sou pedagoga e estudiosa da Neuroeducação. Aprendi que estímulos na fase da primeira infância são importantes para a formação do adulto. Podemos aproveitar essa janela de oportunidade aberta pelo edital para impulsionar o desenvolvimento da criança e gerar impactos no destino dela”.

O maior desafio neste projeto foi vencer o distanciamento: “Duas pessoas contraíram a Covid. Para não deixá-las sem a assistência, nós preparamos e entregamos em suas casas um kit com o material necessário e orientações para a costura dos brinquedos. Fizemos contato por chamadas de vídeo no WhatsApp para mais instruções e acompanhamento das crianças. Não desistimos”, orgulha-se Jaqueline.

Projeto de Jaqueline Leite Serafim de Olinda (PE)

“Vamos continuar com o projeto, dando assistência às mães, orientando sobre como empreender e cuidar das suas crianças na fase da primeira infância. Queremos que as participantes das primeiras oficinas sejam mediadoras nas próximas, gerando renda e melhorando a autoestima.”   

Todas as ações que apresentamos aqui são inspiradoras e deixaram lições para as próprias idealizadoras. A Daiane, lá de Feira de Santana, se emociona ao falar dos resultados:

“Foi gratificante ouvir os relatos dos pais e das crianças. Depoimentos como o de Mirela, de 4 anos, me dizendo que a princesa do livro é como ela, isto é, negra com cabelo crespo; ou ainda ver a emoção de outra menina, chamada Julia, ao descobrir um livro cujo título leva o seu nome e com o qual passou a se identificar. Os pais dizem que o projeto deveria ter acontecido antes e que não poderia terminar”, comemora.

Projeto de Jaqueline Leite Serafim de Olinda (PE)

Siga o Fundo Baobá e surpreenda-se com as outras inciativas contempladas no Edital Primeira Infância. Descubra o tanto de amor e empatia que o ser humano é capaz de promover!

Primeira Infância no Contexto da Covid-19: As Histórias

Por Eliane de Santos

Diante da novidade catastrófica – a pandemia de Sars-CoV-2 anunciada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde – uma reação natural foi recolher-se num gesto de autopreservação e até mesmo de respeito para com a parcela da população que deveria seguir com as suas jornadas de serviços essenciais: jornalistas; profissionais da saúde, da segurança pública; comerciantes e comerciários do setor de alimentos e remédios, por exemplo.

Mas, em pleno isolamento domiciliar, um grupo de brasileiros não conseguiu acompanhar o mundo apenas pela janela de casa ou pela televisão. Eram profissionais de diversas áreas que desejavam encarar o inimigo invisível, e imprevisível, para apoiar famílias – de norte a sul do país – que desde sempre estiveram à margem da sociedade e, portanto, se encontravam mais vulneráveis do que nunca.

Se havia alguma dúvida sobre como e por onde começar esse apoio, ela acabou quando o Fundo Baobá para Equidade Racial anunciou o Edital para a Primeira Infância no Contexto da Covid-19, com doações emergenciais de R$ 5 mil para projetos que deveriam ser executados, preferencialmente, de forma remota e ressaltando os protocolos sanitários, a fim de não contribuir com a propagação do novo coronavírus nas comunidades assistidas. Um desafio lançado em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Porticus América Latina e Imaginable Futures.

A iniciativa mostrou-se um grande feito de transformação social, levando mais do que alimentos e itens de higiene ou limpeza para as famílias que tinham em seu núcleo crianças de 0 a 6 anos, ou seja, na fase mais de delicada e importante da formação do ser humano.

As propostas apresentadas e avaliadas por uma assessoria técnica ofereceram também o resgate da cidadania; amor, cuidado, acolhimento psicológico, bem-estar e informação, enquanto o que mais pairava no ar eram ameaças e dúvidas. Uma prova de que o Brasil é gigante: em extensão, sim, mas também em coragem e solidariedade.

Agora eu te convido a conhecer e, por que não, se inspirar com algumas dessas histórias.