Mês da Filantropia Negra (Black Philanthropy Month) é aberto oficialmente no Brasil pela primeira vez

Diretora-executiva do Fundo Baobá, Selma Moreira chamou as pessoas a fazerem doações pela causa negra

Um marco para a filantropia pela equidade racial foi estabelecido neste 4 de agosto no Brasil com a abertura do Black Philanthropy Month (Mês da Filantropia Negra), que já acontece há 10 anos nos Estados Unidos e, pela primeira vez, se realiza no Brasil em parceria com o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE). Participou do evento, Selma Moreira, diretora-executiva do Fundo Baobá para Equidade Racial, primeiro e único fundo voltado, exclusivamente, para apoiar iniciativas negras para  promoção da equidade racial. 

O BPM Brasil teve as palavras de abertura proferidas pela afro-americana Jackie Copeland, fundadora do BPM nos Estados Unidos: “A justiça econômica é a última fronteira do movimento pelos Direitos Civis e Humanos. Esperamos que todo o mundo nos acompanhe na celebração do mês de agosto, pressionando por tornar a equidade uma realidade”, ressaltou Jackie. 

Jackie Copeland, fundadora do BPM nos Estados Unidos

Em sua fala, Selma Moreira, lembrou das raízes de ajuda mútua que sempre acompanharam a história dos negros no Brasil. “Não vou me estender nos dados que comprovam o resultado de séculos de opressão e preconceito. São verdades que carregamos em nossas veias, no nosso DNA. Mas carregamos também uma história de lutas.  Atualmente, é comum ouvir, especialmente entre mulheres negras, a expressão que ganhou visibilidade em um dos livros organizados por Jurema Werneck: ‘Nossos passos vêm de longe’. Trata-se da mais absoluta verdade: entre nós, ninguém soltou a mão de ninguém. E talvez o exemplo mais emblemático seja a criação das irmandades negras. O agrupamento em irmandades foi uma estratégia encontrada pela população negra para a construção da solidariedade diante de uma sociedade hostil em pleno escravismo colonial.” 

Selma Moreira, diretora-executiva do Fundo Baobá para Equidade Racial

Segundo dados do Censo GIFE 2018, apenas 10% das organizações afirmam focar a população negra em seus programas e projetos de doação. Este percentual cai para 2% quando se trata de definir organizações que tenham a população negra, a equidade racial ou o combate ao racismo contra a população negra como foco prioritário. O investimento social privado e a filantropia podem ter um papel estratégico em diferentes frentes, seja no âmbito do investimento ou, de modo transversal,  em todas as ações e políticas implementadas pelas organizações.

Em sua fala de encerramento, Selma Moreira disse:

“Nós temos todos os saberes e capacidade para construir os próximos passos da nossa história. Durante essa pandemia nós vimos as pessoas mais simples doando para suas comunidades. Temos que pensar nas estratégias que envolvem o capital, porque a gente também doa. Somos a maior parte da população e é fundamental que encontremos essas saídas. Mas acho que temos que fazer isso juntos. E vamos fazer isso com a absoluta certeza de que isso se faz a partir de um conjunto de pessoas. Que a gente tenha capacidade de pensar na doação da  forma mais ampla. Que a gente possa doar vida. As irmandades se juntavam para comprar as cartas de alforria para comprar a liberdade. O que é mais necessário que poder viver em liberdade e de forma digna? Que a gente tenha a possibilidade de seguir juntos, de construir nossa história potente e de múltiplos atores. Que tenhamos condição de ver a justiça social, a equidade racial  para todos e não apenas para alguns. Espero que você doe, que se engaje e permita que seu melhor aflore na perspectiva de uma sociedade mais conectada, onde as pessoas negras sigam vivendo e vivendo com dignidade.”

Além de Selma Moreira, outras importantes vozes brasileiras no tema da filantropia para equidade racial participaram como palestrantes desta primeira edição do BPM Brasil: Adriana Barbosa (Fundadora e CEO da Feira Preta); Atila Roque (Diretor da Fundação Ford Brasil); Gilberto Costa (Diretor executivo do JP Morgan Brasil); Ines Lafer (Presidente do  Conselho do GIFE e Diretora da Fundação Betty e Jacob Lafer) e Neca Setubal (Ex-presidente do Conselho do GIFE e Presidente da Fundação Tide Setubal).

Palestrantes do BPM Brasil 2021 em sentido horário: Márcio Black, Gilberto Costa (JP Morgan Brasil), Ines Lafer (GIFE, Fundação Betty e Jacob Lafer) Adriana Barbosa (Feira Preta e Pretahub), Atila Roque (Fundação Ford Brasil) e Neca Setubal (Fundação Tide Setubal)

Para assistir o painel na íntegra basta fazer a inscrição gratuitamente neste link e depois acessar esta sala.

 

Sobre o Black Philanthropy Month

Ao longo do mês de agosto, o Black Philanthropy Month vai promover atividades para disseminação da cultura de doação no Brasil e no mundo. Estão programadas as seguintes ações: 

  • Lançamento do mapa de iniciativas da filantropia pela Equidade Racial no Brasil;
  • Lançamento da plataforma ISP pela equidade racial;
  • Encontro de formação e sensibilização das governanças do ISP para a Equidade Racial;
  • Produção de vídeos pílulas que respondam a pergunta: “Quais contribuições aprofundadas podem e precisam ser dadas pela filantropia e o investimento social privado para responder ao desafio de uma maior equidade racial?” para ser divulgado durante o mês de agosto;
  • Disseminação, divulgação das ações (rede GIFE, imprensa etc).

10 Anos do Baobá: a importância da Assembleia Geral e do Conselho Deliberativo

O texto começa com um agradecimento. Mas não é pieguice. É que ele tem muito significado para o que estará escrito posteriormente. Sim, o agradecimento é sentimental, mas também tem posicionamento político contundente. “Tenho prazer enorme em fazer parte desse time. Prazer enorme em estar desde o início dessa construção de ações, de projetos, de propostas de promoção de equidade racial no Brasil.  O Fundo Baobá tem um valor enorme para milhares de famílias brasileiras, de famílias nordestinas sobretudo. Porque aqui no nordeste está a expressão  maior de negação de direitos de todas as ordens. Quero agradecer imensamente por estar nessa organização, por fazer parte da Assembleia Geral do Baobá e poder contribuir de forma efetiva para que tenhamos uma sociedade mais justa, mais igualitária, que respeite de fato a sua diversidade.” 

A fala acima é da pedagoga Maria do Socorro Guterres, que faz parte da Assembleia Geral do Fundo Baobá para Equidade Racial. Mas qual é o papel da Assembleia Geral e de seus membros dentro do Fundo Baobá? A própria Socorro Guterres explica: “A assembleia tem papel fundamental para a condução dos trabalhos da missão do Baobá. Os membros da assembleia têm um papel não só burocrático de aprovar e assinar atas, além da prestação de contas. O papel é de fortalecer o processo organizativo do Baobá. De construir alternativas que possibilitem a alteração dos propósitos de vida das pessoas para as quais o Baobá executa as suas ações. A Assembleia Geral não só decide, mas constrói, coordena e articula, ela decide os processos organizativos. Os processos de fortalecimento do Baobá.”

Maria do Socorro Guterres, pedagoga

Outra esfera de governança do Fundo Baobá é o Conselho Deliberativo, do qual faz parte o economista Elias Sampaio. Falando diretamente de Salvador, na Bahia, Sampaio disse: “O Conselho Deliberativo faz parte do que chamamos de Governança do Baobá. O Conselho é o elo entre a execução e os guardiões dos princípios do Baobá, que são os associados, os membros da Assembleia. O Conselho toma decisões estratégicas. É quem aponta os caminhos para onde o Baobá deve seguir e aponta correções, quando necessárias.  O papel do conselheiro é contribuir com esse debate”, afirma Elias Sampaio.  

Socorro Guterres e Elias Sampaio fazem parte da trajetória de criação do Fundo Baobá para Equidade Racial, lá na metade da primeira década dos anos 2000.  Como profissional da Educação e profissional da Economia, eles falam sobre esses dois eixos programáticos do Baobá. “O eixo educação é fundamental. A importância de ter o eixo educação desde a fundação do Fundo Baobá é pensar que ainda existe um fosso extremamente grande entre a população negra (adolescentes, jovens e crianças) e a população branca. Um fosso ainda muito grande em relação à educação. É necessário construir estratégias para a sua diminuição ou eliminação. Para que tenhamos a população negra em iguais possibilidades de acesso à educação em nosso país, isso pode ser construído e fortalecido com ações do Fundo Baobá”, afirma Socorro Guterres. 

Elias Sampaio enfatiza o papel da Economia. “A centralidade do Baobá é a Economia. Você não pode promover ação sem ter financiamento dessa ação. A grande inovação do Baobá é isso. O Baobá tem que ter mecanismos sólidos e sustentáveis de financiamento. Sem financiamento não há nenhum tipo de política pública”, afirma.

Elias Sampaio, economista

Com relação à contribuição do Fundo Baobá para a implementação da equidade racial no Brasil e o combate ao racismo, as visões dos conselheiros, por serem pessoas de muito conteúdo, como classificou Elias Sampaio, podem ser diferentes, fato que contribui ainda mais para o debate e tomada de um caminho comum.  “Acho sim que o Baobá já alcançou o propósito para o qual foi criado. Porque a promoção da equidade racial no Brasil não é só do Baobá. O Fundo Baobá  foi criado para contribuir nesse processo de construção de promoção da equidade. E tenho certeza que nesses 10 anos já cumpriu com isso. É claro que pode mais. Intensificando, continuando a implementar projetos, editais, ações que promovam e fortaleçam o exercício da cidadania de tantos sujeitos homens e mulheres, negros e negras. Podemos fortalecer o exercício de disputa de espaços de poder. Quando falo em disputa, falo no sentido do exercício sadio. Falo da possibilidade real de negros e negras estarem em espaços de poder”, diz Socorro Guterres. 

Elias Sampaio considera que a luta histórica ainda tem muito para ser equilibrada, quando questionado se o Fundo Baobá já teria alcançado o propósito de sua criação. “Não. E não poderia. Como vamos conseguir equidade racial em 10 anos se temos mais de 500 de iniquidade?  Nem que fosse com 25 bilhões de dólares, em 10 anos não conseguiriamos alterar as desigualdades históricas contra os negros no Brasil. E isso não é nenhum demérito para o Baobá. Nós não conseguimos chegar a nossa meta, pois ela é a meta de 210 milhões de brasileiros. Essa luta não é apenas dos negros, é de todos os brasileiros”, conclui.

Empreendedorismo negro: Chefs investem nas comidas africanas e têm sucesso

“No tabuleiro da baiana tem: Vatapá, Caruru, Munguzá…”  O verso do compositor Ari Barroso (1903-1964), feito em 1936 e imortalizado na voz de Dorival Caymmi, mostra como a culinária africana está incorporada à cultura do Brasil. Afinal, os povos negros, sequestrados de África e trazidos à força para cá, conferem ao país outros universos de conhecimentos, cores e sabores, desde 1530.

As comidas são algumas  das mais ricas fontes culturais de um povo. Porém, ao contrário do que ocorre com a culinária dos povos europeus que colonizaram o Brasil – e que figuram nos cardápios dos mais caros restaurantes das capitais brasileiras -, as diferentes culinárias  encontradas nos 54 países que compõem a África sofrem rejeição, apesar de terem  muitos de seus elementos em alguns dos mais cultuados pratos da cozinha brasileira. Acarajé, xinxim, vatapá, caruru, amalá, abará, cuscuz, mungunzá, angu e feijoada:  essas iguarias e inúmeras outras estão inseridas dentro do que se chama hoje de comida brasileira. A origem de muitas delas, porém, está nos porões dos navios negreiros que aportaram na costa de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro ainda antes de 1550. 

A diversa culinária africana permanecia invisível, até que uma polêmica televisiva chamou a atenção para sua existência. Houve uma zombaria a uma comida, o Ugali, feita por um camaronês, o chef Sam. Os envolvidos na prova do Ugali mencionaram que poderiam morrer depois de comer. A manifestação viralizou na internet, gerando protestos. 

A dedicação em produzir a culinária dos países africanos  tem sido o meio de vida de muita gente envolvida com gastronomia.  Uma empreendedora que apostou nisso é Rosilene Rodrigues dos Santos, 60 anos, mais conhecida no Recife (Pernambuco) como Rose Tabuleiro. “Tabuleiro é um instrumento onde se expõem as mercadorias ou quitutes para venda. Era muito usado pelas mulheres negras alforriadas ou escravizadas, para vender nas ruas os quitutes produzidos por elas mesmas”, explicou Rose Tabuleiro, revelando de onde vem o apelido. O tabuleiro se transformou no Tabuleiro Culinária Afro Brasileira, empreendimento de Rose que já está no segmento de restaurantes há 20 anos. 

Segundo dados de 2020 do Global Entrepreneurship Monitor (GEM),  há cerca de 24 milhões de mulheres empreendedoras no Brasil.  A Taxa Total de Empreendedores (TTE) entre pretos é maior do que a de brancos, de acordo com a pesquisa do Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), Sebrae e GEM 2019: 16,5%. Empreendedores brancos são 15,2%, respectivamente. Um dos eixos programáticos do Fundo Baobá para Equidade Racial é o do Desenvolvimento Econômico. Para nós, promover o desenvolvimento econômico da população negra significa apoiar iniciativas de formação de cidadãos e cidadãs para o ingresso no mercado de trabalho formal ou para o seu aprimoramento, nos mais diferentes setores; que estimulem o empreendedorismo como  engrenagem para o emprego e geração de renda; defendam a diversidade e a equidade como um valores  na indústria, comércio, serviços e demais áreas; ou mesmo o apoio a iniciativas que protejam os direitos das trabalhadoras e trabalhadores domésticos ou ampliem o acesso da população negra ao crédito. 

Rosilene Rodrigues dos Santos – Rose Tabuleiro – Tabuleiro Culinária Afro Brasileira

A jornada de Rose Tabuleiro não foi fácil. Um dos motivos, o estigma que existe em relação à culinária africana. “Existe um preconceito histórico com relação a tudo que é considerado africano no Brasil. Em relação à culinária, isso é percebido quando não se ressalta nas preparações da comida brasileira a contribuição do povo africano nos pratos desta culinária. Muitas vezes se referem a esses pratos como preparações regionais, mas não ressaltam a identidade do povo de origem”, afirma Rose.

Rose vê como fruto do racismo estrutural a pouca difusão da culinária dos países africanos. “No Brasil,  o racismo é estrutural. Ou seja, está na base de todas as nossas relações. Nessas relações, tudo que se refere ao povo preto, consequentemente com raiz africana, é taxado como não tendo valor. Portanto, não deve ser difundido”, afirma. 

Outros dois nomes que trabalham com comidas africanas são Leila Ione Oliveira, 47 anos, e André Luis Maciel Lobão, 44. O interesse deles veio por meio da religiosidade. Ambos são iniciados no Candomblé. Leila há 10 anos. É Yabassé, cargo dado às mulheres para serem guardiãs dos segredos da comida sagrada e ritual dos Orixás. André Lobão é iniciado há 15 anos. É Egbomi (alguém que está na direção de ser Ialorixá ou Babalorixá). Ambos integram a comunidade do Ilê Axé Alagbedê Olodumare. 

A evolução de Leila e André na culinária africana deu origem ao Cozinha Ancestral, restaurante localizado em São Luís (Maranhão) e referência no local. Ambos reconhecem que há pouca difusão do seu tipo de trabalho no Brasil, mesmo o país contando com um contingente de 56% de gente negra. “Vivemos no Brasil um complexo cultural colonialista e racista que é estrutural. Ele nos impediu e nos distanciou da soberania alimentar africana, assim como de seus mitos e tabus. Além disso, a disseminação racista sobre a relação sacrificial do alimento, tradicionalmente presente na cultura africana, contribuiu para a construção de um imaginário preconceituoso, macabro e perverso sobre a origem, o manuseio e o propósito do alimento na culinária do povo africano e dos praticantes de seus ritos ancestrais na diáspora”, diz André Lobão.

Leila Ione Oliveira e André Luis Maciel Lobão, Cozinha Ancestral

Leila Oliveira, uma mulher afro-ameríndia, nascida em Belém, no Pará, cresceu dentro do mercado Ver-o-Peso, centro comercial e gastronômico da cidade. Aprendeu a base da culinária em meio a ervas, raízes, frutos e pescados ofertados pela floresta e pelos rios. Para ela, há pouco conhecimento sobre a cultura alimentar no Brasil. “O povo brasileiro, apesar de desfrutar de uma diversidade cultural na sua alimentação, pouco conhece a origem dos ingredientes, receitas, mitologias e tabus que envolvem o imaginário da herança dos povos africanos e indígenas. Fomos educados com um referencial civilizatório europeu e uma economia pautada no capital norte-americano. Esquecemos, porque nos foi negada, a história e a cultura do povo africano. A culinária de um povo é uma de suas principais manifestações culturais. Fala de como os ancestrais nos ensinaram a comer para ter longevidade e sermos felizes”, afirma. 

 “Costumo dizer que trabalho com culinária afro-brasileira e saliento que a contribuição do povo preto da África com o povo preto do Brasil foi e tem sido de extrema importância na formulação desta cozinha tão marcante e rica em qualquer um dos seus territórios. Qualquer preparação advinda destes povos nos representa e reafirma o quanto eles contribuíram para que este país seja engrandecido e enegrecido nesta área”, diz Rosilene, a Rose Tabuleiro. 

André Lobão e Leila Oliveira fizeram um convite a quem for a São Luís: passar no Cozinha Ancestral e comer o Banquete do Caçador. Rose Tabuleiro mandou uma receita para ser experimentada pelos leitores e leitoras:  

Rose Tabuleiro

“Quero, nesta receita, ressaltar a parceria entre o povo indigena e o povo preto, que fez com que esta iguaria se tornasse patrimônio do povo brasileiro, a  Tapioca, uma raiz cultivada e transformada pelos povos indígenas e transformada em culinária saborosa e nutritiva pelas mãos negras.”

Tapioca Ensopada no leite de coco

Ingredientes:

500 gr de goma para tapioca (não é sagu)

500 ml de leite líquido (de caixinha)

300 gramas de coco ralado fresco

100 gramas de açúcar

sal a gosto

10 gramas de canela em pó

Modo de Preparo:

1- peneire a goma para tapioca e faça as tapiocas(de forma tradicional) e reserve,

2- coloque no liquidificador o coco ralado fresco com o leite líquido e coe. Adoce com o açúcar e parte da canela em pó,

3- em um refratário coloque as tapiocas em camadas alternadas com os leites reservados antes

4- polvilhe com o restante do coco ralado fresco e o restante da canela

5- leve à geladeira por pelo menos 2 horas antes de servir


Observações da chef:

1.  Se for servir como sobremesa sirva gelado
2. Se for servir no café da manhã ou jantar, sirva em temperatura ambiente

10 anos do Baobá: base sólida de trabalho, forte estruturação e internacionalização

A cultura de doação no Brasil vem passando por transformações. Como agente desse ecossistema, a atuação do Fundo Baobá para Equidade Racial tem sido marcante. O segmento em que o Baobá atua, o da captação e destinação de recursos visando o combate ao racismo e promoção da equidade no Brasil, vem sendo mais notado por financiadores que enxergam a defesa dos direitos e oportunidades justas para a  população negra como algo sem retrocesso, que vai contribuir para uma melhor sociedade. 

O Baobá completa dez anos de fundação neste ano de 2021. Seu trabalho vem sendo significativo na captação e destinação de recursos para que entidades negras alcancem excelência em suas propostas de transformação da realidade social do Brasil. Esse trabalho, porém, é mais que secular, como explica a socióloga e vice-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá, Amalia Fischer: “Acho que o Baobá tem mais de dez anos. Ele tem 310 anos. Por que falo isso? Porque o Baobá tem a linhagem de toda ancestralidade que criou formas de solidariedade e formas de construir filantropia pela justiça social. A filantropia pela justiça social no Brasil começa com as irmandades negras”,  afirma. “O Baobá tem o conhecimento e a experiência de todas essas pessoas negras que o formam e o fortalecem”, completa. 

Amalia Fischer, socióloga e vice-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá para Equidade Racial

O administrador Fábio Santiago, membro do Conselho Fiscal do Fundo Baobá, vê com otimismo o desenvolvimento de captação de recursos para filantropia no país. “Quando comparamos o ecossistema de doação e a prática de filantropia no Brasil e no exterior, podemos notar a enorme diferença na quantidade de fundos patrimoniais criados e também sobre as diferenças de valores que os compõem. Claro que a situação econômica do país é determinante para esses aspectos, mas o Brasil ainda tem muito espaço para melhorar sua visão e suas práticas no que tange à promoção da filantropia”, diz. 

Para Santiago, o nível organizacional desenvolvido pelo Fundo Baobá nesses dez anos de atuação propiciou confiabilidade dentro do segmento da filantropia. “Trabalhar com objetivos bem definidos, ter discurso coerente, prática estruturada e um processo de prestação de contas bem elaborado e transparente anima as empresas”, explica. Porém, alerta Fábio Santiago, há outras formas de os financiadores contribuírem. “É importante deixar nítido que nem só de dinheiro depende o fortalecimento de certas causas. Acesso ao trabalho, a serviços e produtos essenciais, além do reforço de mensagens afirmativas são algumas contribuições possíveis por empresas de diferentes portes e que podem resultar em mudanças muito significativas no contexto brasileiro.”

Fábio Santiago, administrador e membro do Conselho Fiscal do Fundo Baobá

O desenvolvimento da cultura de doações no Brasil pode fazer uma entidade com o nível organizacional do Baobá crescer ainda mais em importância para a sociedade. “O Baobá vai ser uma das grandes instituições do país. Porque tem capacidade de gerar recursos grandes e altos. Conhece muito bem as organizações e os territórios onde elas estão. Sabe das necessidades dessas organizações e sabe como fortalecê-las. Além disso, sabe construir colaborativamente com outros fundos e outras fundações”, afirma Amalia Fischer. 

O mês de agosto vai marcar a realização do Black Philanthropy Month (BPM). O evento aconteceu pela primeira vez em 2011 e tem como objetivo investir na liderança filantrópica negra para o fortalecimento da doação também negra visando beneficiar organizações, comunidades e vidas dos afrodescendentes brasileiros. Pela primeira vez o BPM acontecerá no Brasil e o Fundo Baobá terá papel de destaque. “Será uma oportunidade de colocar luz sobre um tema, de atrair novos olhares, de promover trocas entre os participantes e conhecer experiências de determinadas regiões que podem ser aplicadas em outras. A participação do Baobá no BPM reforça seu papel de organização formadora de opinião, de incentivo à causa e engajamento de diferentes públicos, além de projetar a instituição internacionalmente. Ter papel de destaque no evento promete ser um grande gol para o Baobá”, destaca Fábio Santiago. 

O caminho da internacionalização do Fundo é analisado também pela vice-presidente do Conselho Deliberativo, Amalia Fischer. “A participação do Baobá no Black Philantrophy Month (BPM) vai ser super importante. Vai ser uma troca em que o Baobá vai aprender e também compartilhar conhecimentos e experiências. Vai também estimular que essas doações sejam dirigidas  para a questão do combate ao racismo no Brasil”, declara.   

Arte negra engajada: existir e resistir

Uma pesquisa realizada em junho de 2020, pelo jornal britânico The Sunday Time, perguntava quais eram as cinco profissões consideradas essenciais e quais as profissões consideradas não essenciais, no contexto da pandemia. Do lado essencial, profissionais da área da saúde lideravam a lista ao lado de faxineiras, coletores de lixo e entregadores delivery. Do lado não essencial, artistas aparecem liderando a lista, com 71% dos votos. Mesmo que a escolha tenha sido feita pela população britânica, este pensamento atravessa fronteiras e oceanos e é reproduzido aqui em nosso país. A professora de dança em Goiânia, Juliana Jardel, já foi questionada acerca da sua profissão: “Já perguntaram se eu só dou aulas de dança ou se eu trabalho também”, mostrando que há uma desvalorização imensa da classe artística. Juliana se utiliza de meios pedagógicos para mostrar a importância da arte, principalmente no contexto pandêmico: “Eu sempre digo  para quem diz que a arte não é importante e que nunca precisou de um artista, para desligar os rádios e as TVs, além de não abrir nenhum livro. Dessa forma eles compreendem a importância de qualquer manifestação artística”.

Por compreender a importância das artes para desconstruir representações sociais negativas da população negra, o  Fundo Baobá para Equidade Racial prioriza apoio a iniciativas negras alinhadas aos eixos programáticos da organização, entre eles o comunicação e memória, que consiste em apoiar projetos e iniciativas de valorização e difusão de bens culturais materiais e simbólicos (produção artística – música, dança, canto, literatura, etc.; práticas culturais tradicionais e inovadoras), além da mídia negra. Promovendo a cultura negra e resgatando a nossa memória em todo o território nacional.

Cientes que somos da importância da arte para reflexão, alívio das dores e preocupações ou mesmo para o nosso entretenimento, deixamos as seguintes perguntas no ar: a (o) artista deve se engajar e se posicionar diante de determinadas situações de crise? As diversas manifestações artísticas negras que, historicamente foram perseguidas, por si só não são um ato de resistência? 

O Fundo Baobá entrevistou três artistas negros, de diferentes linguagens, para responder a estes questionamentos e nos  contar suas histórias e  trajetórias.

Juliana Jardel: A dança como instrumento de resistência e cuidado do nosso povo

Com quatro anos de idade, Juliana Jardel acompanhava a sua mãe, que era costureira em domicílio, até a casa de outras mulheres, para pegar roupas e realizar reparos. Em um desses passeios, a pequena Juliana se encantou com uma foto de formatura que estava pendurada na parede de uma casa, ao lado de um altar com imagens de santos: “Essa pessoa deve ser muito importante, porque a foto dela está do lado de um santo”, pensou a criança, que mesmo muito pequena lembrou que só havia visto fotos parecidas com aquela na casa de outras pessoas brancas. Ao chegar em casa, perguntou ao pai, que era fotógrafo, se pessoas negras poderiam ter aquela foto também e por que ela nunca tinha visto uma parecida na casa de pessoas negras. Naquele momento, Juliana Jardel decidiu que teria uma foto como aquela. Hoje, aos 43 anos de idade, Juliana não só tem uma foto da sua formatura em Dança, como também do mestrado em Performances Culturais e, logo mais, terá registros de sua tese de doutorado em Antropologia Social.

O amor de Juliana Jardel pela arte começou no seio familiar: “A minha família sempre foi muito dançante. O meu tio Virgílio – hoje falecido – fazia parte de uma escola de samba, aqui de Goiânia, chamada Brasil Mulato, e as minhas tias faziam uma ala só da família nessa escola”, recorda Juliana, que estreou como membro da Brasil Mulato com apenas três anos de idade. “A escola de samba ficava em um bairro negro, era o principal ponto de encontro da população negra de Goiânia”.

Aos oito anos, quando Juliana Jardel foi fazer aulas de jazz, ela pôde sentir a importância da representatividade negra: “A Tia Constança, a minha professora de jazz, era negra. Aquilo foi muito importante pra mim, porque eu fui criança nos anos 1980, e naquela década  tinha muitos filmes musicais e tinham muitos corpos negros dançando. Então, na minha cabeça, eu tinha que ir para os Estados Unidos para dançar. Mas quando eu vi a Tia Constança, eu entendi que era possível fazer algo aqui”. Ainda na infância, ao lado de seu irmão Jarbas, outro grande apaixonado por dança, e dos seus primos, fizeram parte da companhia do Juquinha: “Era um show que tinha em Goiânia com apresentações artísticas e imitações”, relembra Juliana que, ao lado do irmão fez imitações do Trem da Alegria e da Banda Reflexu’s, famoso grupo de samba reggae formado nos anos 1980, em Salvador (BA). A Reflexu´s tem um trabalho musical voltado à valorização da história e cultura afro-brasileira: “Até então, a gente não tinha muito entendimento do que era o continente africano. Mas as letras da Banda Reflexu’s nos impactaram porque falavam de uma África completamente diferente do que era aprendido na escola. Foi muito importante pra mim”, revela Juliana.

Com a separação dos pais, Juliana Jardel deu um tempo na dança ( “Dança é algo muito caro, infelizmente”) e aos 16 anos arrumou um emprego. Mas o amor pela arte falou mais alto e  retornou à dança na fase adulta. Integrou a Companhia Nômades até que, finalmente, entrou na faculdade de dança, no mesmo ano em que sofreu um imenso golpe: “Quando entrei na universidade, eu estava com mais de 30 anos, mas entrei com tudo. Falei ‘a minha hora é agora’. Mas logo no primeiro ano, o meu irmão, meu parceiro de dança, faleceu”.

No ano de 2014, Juliana fundou o grupo Corpo Suspeito, uma parceria da Universidade Federal de Goiânia (UFG) com o Sesi, e em paralelo a isso criou um método de dança chamado Movimentos Atlânticos: “é o método de dança que eu uso no Corpo Suspeito e tem ligação com a minha avó que morava na fazenda. Então, alguns pilares dessa dança são coisas cotidianas que a minha avó fazia por lá, o pilar, o peneirar e encher o pote d’água. São esses três elementos que fazem parte fundamental da coreografia, mas entra também a coisa do axé, da dança dos orixás e dos elementos do candomblé”, revela.

Na primeira apresentação do Corpo Suspeito, Juliana Jardel teve uma ideia: convidar dois dançarinos brancos para interpretar a sua coreografia: “Foi proposital, eu queria ver a reação das pessoas ao ver uma mulher negra coreografando pessoas brancas”. O experimento realizado por Juliana funcionou: as pessoas presentes acreditavam que a performance era elaborada pelo dançarino branco, que chegou a demonstrar desconforto com a situação: “Ele chegava até mim e dizia que estava se sentindo mal, pelo fato de as pessoas acharem que o grupo era dele. Mas eu disse para ele não se preocupar, que na hora certa eu iria aparecer. Quando eu apareci, foi engraçado ver a reação chocada das pessoas”.

Juliana Jardel, graduada em dança, mestre em Performances Culturais, doutoranda em Antropologia Social e idealizadora do grupo Corpo Suspeito

O último trabalho realizado pela coreógrafa foi “Do Àiyé ao Òrun: A Escrita da Diáspora”, um filme dança, como ela mesmo gosta de chamar, por causa dos seus 32 minutos de duração, gravado no espaço da UFG – que estava fechado devido à pandemia da Covid-19 e que, segundo a própria coreógrafa, é um trabalho político: “O vídeo retrata o processo da escrita. Mas não só da escrita acadêmica,  uma escrita da vida ou a escrita do corpo. Um movimentar constante e um correr constante”. No vídeo, Juliana Jardel faz sua performance artística rodeada de imagens e desenhos de personalidades negras como Marielle Franco, Mestre Moa (morto a facadas em outubro de 2018, em Salvador, por motivações políticas) e Zumbi dos Palmares, além de fazer uma referência ao baculejo, gíria dada à revista efetuada por policiais a civis em locais públicos: “Não é só o baculejo da polícia que eu retrato, é o baculejo do sistema, que a toda hora vai te parar e vai te advertir, para ver se você realmente está apto a seguir”. Além do posicionamento político, o vídeo também remete à ancestralidade e à gratidão familiar, contando com imagens dos seus familiares ao longo da manifestação artística e com a narração do Babalorixá Paulo de Odé: “Por mais que o meu trabalho seja de cunho político, eu faço de tudo para não construir uma estética negra, simplesmente, pelo viés da dor, mas pela potência que o nosso povo tem. Me incomoda muito essa estética ainda presa a um sistema colonial, sempre da coisa da escravidão. Porque não é só isso, nós somos ricos em criatividade, em virtualidade, em poesia e em sensibilidade. Então, eu procuro sempre trazer essa delicadeza nos meus trabalhos”.

Em 2019, Juliana Jardel foi uma das selecionadas para o Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, iniciativa do Fundo Baobá em parceria com Fundação Kellogg, Instituto Ibirapitanga, Fundação Ford e Open Society Foundations. Juliana reconhece que o apoio do Fundo Baobá foi importante para a manutenção do seu mestrado em Performances Culturais, além de exibir orgulhosa, pela chamada de vídeo, as suas maiores aquisições graças ao Programa Marielle Franco: “Não sei se dá pra ver a minha estante aqui, ela está lotada de livros. Eu comprei os livros que eu mais desejei na minha vida e que são importantes para minha área, graças ao apoio do Fundo Baobá”.

No dia 8 de abril, o mundo perdeu o dançarino, coreógrafo Ismael Ivo, mais uma vítima da Covid-19. Juliana Jardel, que tem uma admiração imensurável pelo coreógrafo, chegou a estudar a sua obra em dois momentos da sua vida acadêmica. Na graduação, ela estudou a obra de Ismael Ivo pela ótica da estética do trauma e no mestrado ela mergulhou na pesquisa do dançarino na perspectiva da antropofagia. Juliana lamenta, não apenas a perda de Ismael Ivo, mas a falta de reconhecimento com a sua obra ainda em vida: “Muita gente me disse que conheceu Ismael Ivo através de mim. Eu sempre colocava foto dele nas minhas redes sociais e muitas pessoas vinham me perguntar quem era aquela pessoa. Se você for nas escolas de formação em dança, você jamais vai ver uma foto do Ismael Ivo. Quantos bailarinos negros nós poderíamos ter formado, com uma simples imagem do Ismael Ivo, em uma sala de dança? Mas o racismo no Brasil tem esse poder de eliminação e eu temo que ele e a sua obra caiam no esquecimento”. Diante deste fato, Juliana reforça a importância da arte negra ser engajada: “Eu sempre me posicionei e não é possível fazer arte sem posicionamento, porque a nossa dança, o nosso corpo é um ato político e o nosso papel é cuidar do nosso povo”. Finaliza.

Orun Santana: Colocando a dança de Pernambuco no mapa do mundo

“Artista sem posição só contribui para a permanência absoluta do racismo estrutural e de seus agentes.” A fala forte é do bailarino, capoeirista, professor e pesquisador da dança e cultura afro Orun Santana, 30 anos, do Recife (Pernambuco). Ele vem se tornando uma das referências da dança no país. Em 2019, seu espetáculo Meia Noite, depois de passar por importantes palcos de Pernambuco, São Paulo e Belo Horizonte,  foi parar no outro lado do mundo. Meia Noite foi visto no 22o Festival Lusofonia, em Macau, na costa sul da China, e na 11a Semana Cultural da China dos Países de Língua Portuguesa. 

O espetáculo Meia Noite mostra a relação entre Orun Santana e o mestre Meia Noite, fundador, juntamente com sua esposa,  a também bailarina Vilma Carijós, do Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo. Meia Noite e Vilma são os pais de Orun. “Nasci dentro de uma família de artistas. Tive o privilégio de crescer em contato direto com a cultura popular, envolvido com os movimentos socioculturais desenvolvidos e vivenciados junto a meus pais. Não me enxergo vivendo uma vida longe da arte e da dança. A arte sempre fez e continuará fazendo parte de quem sou”, afirma.

Orun Santana, bailarino, capoeirista, professor e pesquisador da dança e cultura afro

Orun Santana não se vê criando espetáculos de dança que não reflitam a realidade do povo preto no Brasil. “Minha prática artística está ancorada nas danças negras, deste corpo que fala e se move dentro de uma construção simbólica e imaginativa dentro de nossa construção de negritude. Em meu segmento,  o corpo negro que consegue e acessa espaços da cena já torna-se político. Justamente pela ausência de nós, negros, ocupando espaços e lugares. Partindo daí,  sigo elaborando discursos e poéticas na dança”, diz. 

Como artista negro engajado, os fatos do cotidiano que acontecem no Brasil influenciam diretamente na criação de Orun. “Faz parte de meu trabalho solo, a lembrança da morte do mestre baiano Moa do Katendê, assim como da negritude morta pela polícia nas periferias. As cenas dialogam demais com os acontecimentos recentes (espancamento e morte de João Alfredo, massacre no morro do Jacarezinho, entre outros). Esses fatos mexeram e mexem muito comigo, primeiro como homem negro; depois  em minhas ações e práticas educativas e artísticas”, afirma. 

O bailarino brasileiro, já reconhecido no exterior, está cuidando de algo importante para quem já domina a prática: a formação acadêmica: .”Minha principal formação foi pelo Daruê Malungo. Pelos mestres Vilma Carijós e Meia Noite. Também estou cursando Licenciatura em Dança pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)”. Suas principais influências, além dos pais, são Germaine Acogny (bailarina e coreógrafa do Senegal), Rui Moreira (bailarino e coreógrafo brasileiro, com atuações no Cisne Negro, Grupo Corpo e São Paulo Cia de Dança), Mercedes Baptista (primeira negra a ser bailarina clássica no Brasil), Mestre Martelo (artista de sabedoria popular que junta histórias, cantigas, cordéis e dança em suas apresentações),  Alvin Ailey (coreógrafo e ativista norte-americano que fundou o Alvin Ailey American Dance Theater), Zebrinha (mestre capoeirista) e demais amigos e parceiros da dança que tanto contribuem dançando junto comigo.

Samuel Santos: Do palco do futebol para o palco do teatro

Futebol e teatro. Em comum entre essas duas formas de arte a palavra atuação. A vida do pernambucano Samuel Santos, 50 anos, caminhava nos anos 1980 para uma carreira no futebol. Mas a dura realidade brasileira deu um chute no sonho. A luta pela sobrevivência gritou mais alto. Era necessário ajudar a família a pôr comida dentro de casa. Um momento de arrebatamento, ocorrido tempos depois, o colocou em contato com outra arte, que definiu uma vida.

Samuel vinha se destacando nas equipes de categoria de base do Santa Cruz Futebol Clube, o Santinha, que revelou nomes como o também pernambucano Rivaldo, campeão do mundo com a Seleção Brasileira em 2002, no Japão. Mas o sonho do jovem centroavante ficou pelo caminho. “Aos dezessete anos sai do Santa e abandonei o sonho de ser jogador. Não por falta de talento, mas por necessidade de sobrevivência. Tinha que trabalhar e ganhar dinheiro para o sustento da família”, diz. 

A arte entrou de forma definitiva na vida de Samuel Santos durante as festas juninas, uma das principais manifestações culturais do país, tão marcante nos estados do nordeste. “Em 1989, num ensaio de quadrilha junina, fui convidado para fazer parte de um grupo de teatro na comunidade do Alto José Bonifácio, bairro do Recife. Entrei em contato com o teatro de forma empírica (por observação e experiência, sem metodologia) e formei o Grupo Teatral Pé no Chão”, afirma Samuel. 

Samuel Santos, ator e fundador do Grupo Teatral Pé no Chão

O autodidatismo fez com que o conhecimento de Samuel Santos pela arte da representação fosse crescendo. “Não tenho curso superior, não sou acadêmico. Sou autodidata. Tenho 32 anos de teatro e já fiz cursos e oficinas com principais nomes do teatro brasileiro e internacional, como Antunes Filho (um dos principais diretores teatrais brasileiros, morto em 2019), Eugenio Barba (italiano, diretor de teatro e cinema, criador do ISTA – International School of Theatre Anthropology), Julia Varley (atriz e dramaturga), Linna de La Roca (atriz), Roberta Carreri (atriz), entre outros”. 

A formação de uma consciência social em suas plateias sempre esteve presente no trabalho de Silva, desde o grupo Pé No Chão. “Como primeiro trabalho,  o Grupo montou a peça Calendário Tradicional, de Zezo de Oliveira. O grupo tinha como objetivo discutir as questões sociais na comunidade e lá desenvolver um rico trabalho de conscientização sobre as problemáticas do bairro”, salienta. 

Da experiência de conscientização da gente do bairro para a abordagem das questões sociorraciais no Brasil não levou muito tempo. Para ele, artistas negros e negras devem estar engajados na luta por equidade. “Se o desejo do artista for pela mudança das estruturas, sim. Mas sabemos que a saúde mental do povo negro vem sendo bombardeada desde a sua captura e sequestro da África, passando pelos navios e chegada no Brasil. Então,  é todo um processo histórico para entender e se entender”, afirma. 

O entendimento desse processo histórico e o entendimento sobre o que se passa é uma longa jornada.” Tudo é um processo de construção e desconstrução para depois a gente ter uma base e uma consciência preta. As nossas referências negras foram e são invisibilizadas no processo de nossa formação. Isso é histórico e cruel. As nossas escolas, universidades e  espetáculos não trazem essas bases negras. Somos colonizados dentro de uma formação de branquitude e eurocentrismo. As novelas, a literatura, o cinema, as expressões artísticas como um tudo. Tudo nos leva apenas a um único olhar: o do colonizador.  Sabe quando a gente é criança e nossos pais dizem que Papai Noel existe? Que ele vai trazer no Natal um presente e para ganhar esse presente temos que nos comportar? Ao descobrir que esse Papai Noel não existe, ficamos com raiva de ter sido enganados por muito tempo. Pronto! É assim!”, afirma. 

O ativismo preto está presente em suas criações ou colaborações em eventos como o Festival Luz Negra: O Negro em Estado de Representação, que evidencia o protagonismo de artistas negros nas artes cênicas; o Pretação, mostra de teatro de mulheres pretas; as Terças Pretas, sequência de lives teatrais e a Escola de Antropologia Teatral, onde alunos, alunas, alunes têm contato com expressões culturais negras de Pernambuco, além de desenvolverem exercícios ancestrais de dança baseados nos movimentos dos orixás. 

Samuel Santos, mesmo fora do futebol, continua marcando seus gols. ”Quando você percebe que o teatro é um instrumento, uma arma poderosa, e que nele, o teatro, e que nela, a arte, podemos construir uma vida melhor para quem faz e para quem assiste, não tem preço”, define. 

Adeus, Januário Garcia

Todos os integrantes e as integrantes dos órgãos de governança do Fundo Baobá para Equidade Racial – Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Conselho Fiscal, Comitê de Investimento e Equipe Executiva – manifestam seu pesar pelo falecimento do fotógrafo Januário Garcia.

Januário Garcia foi o principal artífice e fiel depositário de grande parte da memória do movimento negro no Brasil nos últimos 50 anos. Foi presidente do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e lançou livros acerca da cultura afro-brasileira, como “25 Anos do Movimento Negro no Brasil”, “Diásporas Africanas na América do Sul” e “História dos Quilombos do Estado do Rio de Janeiro”.

“Minha história se mistura com a história”, gostava de dizer Januário Garcia, cuja história também se misturou à história da música brasileira: foi ele que registrou as imagens que ilustram algumas das principais capas dos discos de inúmeros artistas, como Leci Brandão, Roberto Ribeiro, Chico Buarque e a famosa capa de Anunciação de Belchior.

A sua obra (artística, histórica, social e política) inspirou e continuará a inspirar as pessoas que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Com certeza, também inspira aqueles que o sucederem.

Expressamos nossas condolências à família de Januário Garcia, assim como aos companheiros e companheiras que com ele estiveram em várias jornadas.

“Na minha geração ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, eu vou fazer essa memória”
(Januário Garcia)

Precisamos falar sobre homem negro e o mercado formal de trabalho

No país no qual a população negra é a maioria, representando 56,1%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quando o assunto é mercado de trabalho e espaço de tomadas de decisões a situação é bem diferente. 

O estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, feito em 2018, mostra que as pessoas negras representavam 64,2% da população que não tinha emprego no país. Aos que integraram o mercado de trabalho, boa boa parcela atua na informalidade: 47,3% das pessoas negras têm trabalhos informais, enquanto o percentual de pessoas brancas é de 34,6%.

O mesmo estudo mostrou que pessoas negras no mercado formal de trabalho eram maioria, sendo um total de 57,7 milhões, enquanto o número de brancos era 46,1 milhões, refletindo a composição padrão da população brasileira. Porém, esses números se invertem quando entram na equação dados sobre o ensino superior e cargos de chefia. Dados apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2017, mostra que a população negra correspondia a 32% das pessoas com ensino superior completo. Mas quando o recorte era a população com 25 anos ou mais, apenas 9,3% dos negros tinham ensino superior completo, enquanto na população branca havia chegado a 22,9%.

Aos negros que conseguiram se formar no ensino superior, enfrentam o desafio de não exercer a sua profissão no mercado formal de trabalho. Um estudo realizado pelo Instituto IDados, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD Contínua) do IBGE, no primeiro trimestre de 2020, mostra que 35% dos negros com ensino superior trabalham em cargos que dispensam diploma, ou seja em cargos de nível médio ou fundamental. O percentual é superior ao de pessoas brancas que têm formação de nível superior em cargos com menor exigência educacional, que somam  28,5%. 

Sobre cargos de chefia, uma pesquisa do Instituto Ethos mostrou que os negros ocupam apenas 4,9% das cadeiras nos Conselhos de Administração das 500 empresas de maior faturamento do Brasil. Entre os quadros executivos, representam 4,7%, enquanto na gerência, apenas 6,3% dos trabalhadores são negros. 

Para falar sobre a presença do negro no mercado formal de trabalho, sobretudo do homem negro, o Fundo Baobá conversou com três profissionais de diferentes áreas, que contaram a sua trajetória profissional e a forma como tem atuado para abrir caminhos para mais pessoas negras no mercado de trabalho.

Para o empresário e contador Carlos Norberto Ribeiro, ser um homem negro foi um desafio em sua carreira profissional: “Aquela velha história: sempre com a qualificação superior comparada à de um colega não negro, no entanto com mesma remuneração e sendo preterido nas promoções e nos postos de liderança”. Hoje, aos 43 anos de idade, Carlos Ribeiro, além de ter MBA em Finanças e Auditoria, é proprietário da Pappo Consultoria, que atua diretamente com consultoria financeira, contabilidade estratégica, planejamento tributário e societário, além de atuar na área de recursos humanos, com recrutamento e seleção, treinamento e desenvolvimento, coaching e consultoria em diversidade: “A Pappo Consultoria surgiu da ideia de que poderíamos prestar um serviço de qualidade para pequenos empreendedores, sobretudo afro empreendedores, com a mesma qualidade e resultados alcançados nas grandes empresas para as quais eu, atuando na área financeira/contábil/tributária, e minha sócia – e esposa – Érika Damasceno, que atua na área de RH, treinamento e desenvolvimento, trabalhamos, trazendo melhorias nos processos, economizando milhões em créditos tributários e tornando as equipes mais produtivas, com sustentabilidade e humanidade”.

Carlos Ribeiro ao lado da esposa e sócia Érika Damasceno, proprietários e diretores da Pappo Consultoria

Com 40 anos de idade e com formação em administração, Gilvan Bueno atua hoje  como especialista em finanças, gerente educacional da Órama e compõe a estrutura de governança do Fundo Baobá, como membro do comitê de investimentos. Sendo um homem negro, ao retratar os desafios encontrados em sua carreira profissional, ele afirma que eles podem ser divididos em três variáveis: renda, tempo e espaço. Segundo o administrador, estudos mostram que quanto menos conhecimento intelectual e educacional você tem, menos renda você terá. E, com isso, você perde a capacidade de competir por melhores oportunidades financeiras e alocação no mercado: “Na minha vida, eu consegui enxergar isso cedo pela criação da minha mãe e avô, assim minha caminhada profissional ficou pautada em competir com pessoas de melhores soft skills (habilidades comportamentais) e renda. O fator raça trouxe um olhar atento dos meus gestores em construir um ambiente em que todos respeitassem meu trabalho”.

Falando no fator tempo, para Gilvan Bueno é importante fazer um recorte temporal. Se estamos falando no século XXI, ele acredita que houve avanços na discussão, mesmo que pequenos. “Podemos trazer conceitos importantes, como ESG (Governança, Social e Ambiental), que mostra a relevância de ter diversidade e maior responsabilidade social. Estes critérios têm sido importantes para negros, mulheres, indígenas e pessoas com diferentes orientações sexuais”, diz o especialista em finanças, que também reconhece que o século XX foi importante para presenciamos os grandes debates sobre racismo nas instituições, a falta de diálogo e a restrição dos direitos e oportunidades em diversos campos produtivos da formação de capital privado e público: “Não quero dizer que hoje é muito melhor, mas as instituições privadas estão preocupadas com isso e querem aumentar seu comprometimento social e ambiental. O desenvolvimento da caminhada profissional está dentro da construção do século XXI, os desafios aconteceram, mas sempre fui respeitado nas instituições que trabalhei pelos meus resultados. A regra sempre esteve bem definida”.

Gilvan Bueno, administrador, especialista em finanças, gerente educacional da Órama e membro do comitê de investimentos do Fundo Baobá

Ao falar de espaço, Gilvan diz que é preciso reconhecer em qual espaço o percurso para a profissionalização é mais árduo: “Em ambientes com alta competitividade, os desafios são maiores e é necessário ter um bom conteúdo educacional e ser automotivado para persistir e vencer. Quando olhamos para espaços com pouco desenvolvimento humano, temos uma grande perda intelectual, social e econômica. E a população negra está em muitos destes locais e acaba sendo atingida e fica distante de aumentar sua renda para acessar outros espaços”, afirma Gilvan, que também acredita que o acesso a educação está atrelado ao crescimento profissional: “Alguns conceitos da educação empreendedora das escolas públicas e de cursos de extensão me ajudaram na caminhada profissional e a minha história é um misto dessas duas situações: quando aumentei meu nível educacional,  consegui novos espaços para me desenvolver, o que acelerou o meu crescimento profissional”, completa.

Sendo o mais jovem entre os três, com apenas 27 anos de idade, o jornalista Ruam Oliveira é fruto desse mercado de trabalho do século XXI, atento às diversidades: “Durante minha trajetória profissional tive o privilégio de estar envolvido com organizações e instituições que trabalham em favor da diversidade”, destaca. Mas reconhece que ser um homem negro também impôs desafios em sua jornada profissional: “Acho que senti isso muito mais na faculdade e na busca por estágios, por exemplo. Isso misturado ao fato de ser alguém da periferia pode ter tido um peso maior. De alguma forma aprofundou a minha percepção a respeito das dificuldades encontradas. Vejo também que o racismo atravessa todas as esferas da nossa vida e, somente há pouco tempo, venho fazendo as conexões necessárias sobre as respostas negativas que já tive”.

Ruam Oliveira, jornalista e idealizador do Banco de Talentos Negros

Além de atuar como repórter na área de educação, hoje Ruam está à frente do projeto Banco de Talentos Negros, criado em 2019, ao lado da jornalista Beatriz Sanz e da publicitária Angel Pinheiro. Trata-se de uma iniciativa que auxilia profissionais da área da comunicação a ingressarem no mercado de trabalho: “O Banco de Talentos Negros surgiu de alguns esforços isolados da Angel e da Beatriz inicialmente. Elas tinham planilhas com alguns contatos para indicação em jornalismo e publicidade. Quando a Beatriz me contou do projeto, decidimos juntos criar um drive, organizar em pastas, separar por estados e áreas e assim começamos. Focamos na comunicação por ser nossa área de atuação. As empresas começaram a nos procurar pedindo indicações e sugerindo vagas. Hoje conseguimos cadastrar mais de 400 profissionais espalhados por todo o Brasil e contamos com uma gama grande de instituições que nos procuram solicitando acesso ao Banco”.

O fato de Carlos, Gilvan e Ruam serem três homens negros com curso superior completo, atuando dentro da área na qual se especializaram e estando presentes em espaços de tomadas de decisões, é algo a ser celebrado, mas revela um imenso caminho a ser percorrido. As dificuldades de acesso ao ensino superior, de certo modo ajuda a entender essa falta de pessoas negras em cargos administrativos. Uma pesquisa do IBGE, realizada no ano de 2018, mostrou que um terço dos brasileiros entre 19 e 24 anos não havia conseguido concluir o ensino médio naquele ano. Entre os que não conluíram esta etapa, 44,2% são homens jovens negros. Para Gilvan Bueno, este alto número de evasão escolar está atrelado à questão profissional: “Os homens acabam desistindo de concluir o ensino médio e não almejam o nível superior porque acreditam que é mais oportuno ganhar recursos no curto prazo ou, em muitos outros casos, precisam sustentar sua família”. 

Ações afirmativas para ingresso do negro no ensino superior, como cotas raciais e programas como o ProUni (Universidade para Todos), geraram aumento de pessoas negras nas universidades. Se em 2015, o IBGE registrou 1,7 milhão de homens negros no ensino superior, em 2020 esse número chegou a 2,7 milhões – um aumento de 59%. Mesmo assim, o número de homens negros no ensino superior ainda é inferior comparado ao número de mulheres negras (4 milhões), homens brancos (5,4 milhões) e mulheres brancas (6,8 milhões).

Sobre a ausência do homem negro na universidade, o que também ocasiona na sua ausência no mercado de trabalho qualificado, Gilvan Bueno acredita que é uma questão bem mais ampla: “Envolve melhor distribuição de renda, melhora do índice de desenvolvimento humano e criação de cursos profissionalizantes de curto prazo para criar um aumento de renda nas famílias e permitir que tanto homens quanto mulheres possam se dedicar de maneira integral aos estudos”.

Para Carlos Ribeiro, o aumento da presença de mulheres negras nas universidades é em razão do empoderamento feminino e o feito deve ser celebrado: “Pelo fato das mulheres negras serem as grandes mantenedores do lar, da família, do sustento, trazendo unidade, mesmo enfrentando o abandono, a violência doméstica, creio que por conta disto tudo, a mulher se potencializou, se empoderou, se esforçou mais, e o resultado é que a mulher negra acaba almejando mais, e isto responde porque a mulher negra ocupa uma posição em muito casos, superior a do homem negro”. Entretanto, ele acredita que isto não venha de alguma forma minar a posição do homem negro: “Obviamente há outros fatores que acabam por contribuir com esta estatística, e um deles, pode se explicar pelo genocídio da população negra, que é maior em homens negros”.

Ruam Oliveira também vê com bons olhos essa alta procura por mulheres negras em posições de poder e com chances de empregabilidade: “É preciso levar em consideração que, se observarmos o espectro de desigualdade social, a mulher negra ficou por anos em um patamar inferior ao homem negro. Além de sofrer as dificuldades e impactos do racismo, ainda carrega nos ombros as dificuldades do machismo e do sistema patriarcal. É uma questão desse campo estrutural que tanto se fala. A escala é: homem branco – mulher branca – homem preto e mulher preta”. A fala de Ruam Oliveira faz relação com um estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no ano de 2017, que mostrou que a média de salário do homem branco é R$ 2.507; a da mulher branca, R$ 1.810; a do homem negro, R$ 1.458; e a da mulher negra, R$ 1.071. “Não se trata de uma contraposição homem negro x mulher negra, mas apenas uma constatação de que, no jogo de poderes, já está na hora de as mulheres ascenderem também”, completa Ruam.

Ainda sobre o assunto, Carlos Ribeiro acredita que mesmo que haja políticas públicas a favor do homem negro, é necessário ter consciência de classe: “Eu acredito que se existir, por parte do homem negro, o sentido de unidade negra e o sentido de valorização da mulher negra, com ele se espelhando nela e a apoiando, isto fará com que este homem negro se empodere mais e, desta forma, eu creio que esta distancia será diminuída. Precisamos deixar de reproduzir o modelo europeu e machista, para reconhecer na mulher negra a grande força e influência que esta exerce, e muitas vezes é negada”.

Olhando para suas áreas de atuação, Ruam Oliveira, disse que a participação de homens negros no jornalismo ainda é pequena, mas tem aumentado: “Tem homens negros, sim, mas em menor escala. A minha área, cobrindo educação, já é bem restrita, com um número muito pequeno de repórteres e instituições se comparados a outras editorias”. Já Gilvan Bueno, que atua no mercado financeiro, chega a citar nomes de grandes referências negras na área, mas reconhece que conhece todos pelo nome, logo, são poucos: “Existem grandes nomes como Marcus Macedo, Ian Lima, Oscar Decotelli, entre outros. Contudo, acredito que precisamos trazer mais participantes para o mercado financeiro”. Carlos Ribeiro também reforça a ausência de homens negros na área de consultoria empresarial: “Há participação sim, mas em número infinitamente menor que homens brancos, e na maioria dos casos, sem ocupar posição de liderança”.

Questionados sobre qual o papel de cada um deles no apoio a outros homens negros no mercado formal de trabalho, Carlos Ribeiro faz questão de apresentar o trabalho realizado pela Pappo Consultoria na promoção da equidade racial no meio profissional: “Nas contratações da Pappo, damos preferência a afro descendentes; consumimos serviços e produtos de homens e mulheres negras, privilegiamos a qualificação profissional dos nossos colaboradores e colaborados; o investimento em formação técnica dentro da área de atuação na empresa”. Gilvan Bueno segue a mesma linha e reforça que as suas contribuições são tanto para homens negros quanto mulheres negras, pois os dois são diretamente atingidos pelos desafios de conquistar espaços que permitam aumento de renda e mobilidade social: “Posso destacar minha participação no programa de igualdade social no mercado financeiro realizado pela Infi-Febraban e Instituto Ser Mais. Conseguimos formar muitos talentos que hoje estão pelo Brasil em instituições financeiras. Temos também o programa de formação da edtech que sou sócio: Financier, que está levando muitos talentos para o mercado de trabalho”. Para Ruam Oliveira, que comanda o Banco de Talentos Negros de forma voluntária, ele acredita que a sua participação nesse espectro vai ainda mais além: “Eu sigo conversando e permanecendo aberto para conversas sobre o assunto. Me colocando à disposição de jovens pretos que buscam por uma oportunidade de emprego. Sigo atento para as muitas possibilidades que dão prioridade para essa tarefa difícil, porém necessária, de equilibrar a balança. O BTN é só uma das coisas que fazemos. Acho que o principal é ter uma postura de abertura para pensar, refletir e reforçar a necessidade de que aconteçam efetivamente processos justos, assertivos e que enxerguem a competência pouco explorada dos profissionais pretos na comunicação brasileira”, finaliza.

21 de junho: Dia de Luiz Gama e Machado de Assis, escritores, jornalistas, abolicionistas e negros

Hoje, dia 21 de junho, celebramos o aniversário de duas personalidades negras históricas e de imenso simbolismo para a nossa cultura. Celebramos o nascimento do jornalista, escritor e advogado, Luiz Gama e também do escritor, jornalista, contista, cronista, dramaturgo e poeta, Machado de Assis.

Nascido no ano de 1830, em Salvador, Bahia, Luiz Gonzaga Pinto da Gama era filho de Luiza Mahin. Sua mãe merece um capítulo à parte, nascida na Costa da Mina, na África, Luíza Mahin foi escravizada até o ano de 1812, quando comprou a sua alforria, se mudou para Bahia e se tornou quituteira. Luiza participou do maior levante organizado pelos negros escravizados, a Revolta do Malês, no ano de 1835.

Filho de Luiza Mahin com um fidalgo branco de família portuguesa, aos 10 anos Luiz Gama foi vendido pelo próprio pai, sendo escravizado pelo comprador. Em São Paulo, ele foi colocado à venda, mas foi rejeitado por ser baiano, uma condição que conferia  aos homens a fama de insubordinados, justamente por causa da Revolta dos Malês, ocorrida cinco anos antes. Sendo assim, ele foi levado para casa de um comerciante.

Analfabeto, aos 17 anos Luiz Gama aprendeu a ler e conseguiu a própria alforria. Autodidata, começou a estudar leis e passou a defender escravizados em processos judiciais, conseguindo a liberdade de muitos, iniciando assim, a sua luta abolicionista. Estudos indicam  que Luiz Gama libertou mais de 500 escravizados e chegou a receber o carinhoso apelido de “Apóstolo Negro da Abolição”.

Luiz Gama

Luiz Gama também atuou como jornalista.  Ao lado do caricaturista Angelo Agostini, fundou, em 1864, o primeiro jornal ilustrado humorístico da capital paulista, o Diabo Coxo. Dois anos depois, fundou o Cabrião.

Diabético, Luiz Gama faleceu no dia 24 de agosto de 1882, aos 52 anos. Partiu antes da chamada abolição da escravatura, que aconteceria no dia 13 de maio de 1888, mas sua luta abolicionista, mesmo não encontrando espaço nos livros da história do Brasil, é de suma importância para a comunidade negra.

133 anos após sua morte, em 3 de novembro de 2015, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), concedeu-lhe o título de “advogado”, uma vez que não era formado e atuava como “provisionado abolicionista”.

 

No mesmo dia, nove anos depois, nascia outro negro que mudaria a história do país

No mesmo 21 de junho, mas com nove anos de diferença (1839), nasceu Joaquim Maria Machado de Assis, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Filho do pintor de paredes Francisco José de Assis – que por sua vez era filho de escravizados alforriados – e da lavadeira, de origem portuguesa, Maria Leopoldina Machado de Assis.

Em 1849, após a morte da sua mãe, Machado e o pai se mudam para a casa de sua madrinha. Em 1854, Francisco José se casa novamente, dessa vez com a doceira Maria Inês da Silva.  Mesmo após a morte do pai em 1864, Machado de Assis continua morando com a madrasta.

Apesar de não ter sido escravizado na infância, como Luiz Gama, para a doutora, jornalista e historiadora e membro da Rede de Historiadorxs Negrxs, Ana Flávia Magalhães Pinto, “Machado de Assis cresceu em um ambiente em que a sua presença podia ser confundida como a de uma criança ou jovem escravizado”, disse a historiadora em uma live organizada pelo Sindicado dos Jornalistas do Distrito Federal, em 2020, que celebrava o aniversário de Machado e Gama. No mesmo evento, Ana Flávia relembra que assim como Luiz Gama, Machado de Assis também encontrou no jornal “um espaço estratégico para desenvolver os seus projetos individuais e coletivos”. Foi em 1855 que Machado de Assis publicou o seu primeiro poema, Ela, após tornar-se colaborador do jornal Marmota Fluminense. Em 1858, após ter aulas de francês e latim com o professor Padre Antônio José da Silveira Sarmento, ele se torna revisor de provas de tipografia e da livraria do Jornalista Paula Brito, onde conhece membros da sociedade Petalógica e vira colaborador dos jornais O Paraíba e Correio Mercantil.

Para Ana Flávia Magalhães Pinto, em mais um momento a história de Luiz Gama e Machado de Assis se assemelham: “Escrevendo e criando jornais, ambos tiveram a oportunidade de estabelecer relações de amizade, não apenas com medalhões, figurões reais ou pretensamente brancos, mas também com outros homens negros, livres e letrados”. 

O primeiro romance publicado por Machado de Assis foi Ressureição, lançado em 1872. Ao longo de sua trajetória, o escritor lançou 10 romances e 10 peças teatrais, 200 contos, 5 coletâneas de poemas e sonetos, além de mais de 600 crônicas. Entre os livros mais emblemáticos está a chamada “trilogia realista”, formada por Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899).

Machado de Assis

Com uma saúde muito frágil, para além da epilepsia e gagueira, desenvolveu cegueira e depressão ao longo da vida. Machado de Assis morreu com uma úlcera cancerosa na boca no dia 2 de setembro de 1908, aos 69 anos de idade.

Luiz Gama e Machado de Assis, dois escritores e jornalistas negros que nasceram no dia 21 de junho, são retratados no livro Escritos de Liberdade: Literatos Negros, Racismo e Cidadania no Brasil Oitocentista de autoria de Ana Flavia Magalhães Pinto, lançado em 2019, fruto da sua tese de doutorado, que estuda a mídia negra no Brasil e apresenta os resultados da pesquisa sobre a rede de homens negros, livres, letrados e atuantes na imprensa nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX.

Livro “Escritos de Liberdade: Literatos Negros, Racismo e Cidadania no Brasil Oitocentista” de autoria de Ana Flavia Magalhães Pinto

Além de Luiz Gama e Machado de Assis, o livro aborda as trajetórias de Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de Castro, todos homens negros livres e letrados e que colaboraram com a luta abolicionista, muito antes do 13 de maio de 1888: “Luiz Gama e Machado de Assis foram pessoas que cada um ao seu modo, se dedicaram à luta contra a escravidão, problematizando aquilo que estava colocado no sentido de uma conivência com a permanência da escravidão, sejam em textos muito marcantes e também em textos que guardam uma certa discrição, muito comum dessa escrita machadiana”, conclui a autora. 

Para a historiadora Ana Flavia Magalhães Pinto: “Luiz Gama e Machado de Assis foram pessoas que cada um ao seu modo, se dedicaram à luta contra a escravidão”

Fontes:

Portal Geledés

Revista Afirmativa

Live do Sindicato dos Jornalista do Distrito Federal

Podcast Sob Torção – Especial Luiz Gama

Fortes Laços em Linhas Rotas – Literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX – Ana Flavia Magalhães Pinto

Benfeitoria celebra 10 anos de filantropia com “café virtual” e participação do Fundo Baobá

No dia 28 de abril, a Benfeitoria completou 10 anos de existência. Para celebrar esse marco tão importante desta plataforma de financiamento coletivo, a organização realizou um evento virtual de 10 horas de duração, com diversos convidados do setor filantrópico, para dialogar, refletir, pensar e inspirar.

A “Benfeitoria 10 anos – A.Live” contou com as participações de Dorly Neto (Powernap), Monique Evelle (Inventivos), Michaell Zappa (Envisioning Institute), Dríade Aguiar (Midia Ninja), Fabio Szwarcwald (MAM RJ), além da diretora-executiva do Fundo Baobá para Equidade Racial, Selma Moreira, que participou de um bate-papo ao lado da presidente do GIFE e, também, presidente da Fundação Tide Setubal, Neca Setubal.

Intitulado “Café com Cuidado (Filantropia Regenerativa)”, o bate-papo entre ambas foi conduzido pela fundadora da Benfeitoria, Tatiana Leite, que apresentou o tema abordando uma metáfora de fácil compreensão: “Quando um barco está afundando, você precisa tirar a água urgentemente, mas você precisa também fechar o furo. Falando em doações, tudo que você faz na filantropia, principalmente neste momento trágico da sociedade que estamos vivendo, você precisa urgentemente tirar a água e olhar pra isso, mas a filantropia precisa ter também um papel de regenerar o sistema e consertar o furo”.

Selma Moreira, em sua fala inicial, ressaltou a importância do evento: “É importante estar aqui hoje, construindo a história, abrindo novas formas de comunicação e rompendo barreiras. Uma nova sociedade se faz encontrando conexões nos mais diversos universos, valorizando a pluralidade e diversidade que cada um traz”.

Para Neca Setubal, ainda estamos distantes da filantropia regenerativa, mas o contexto de pandemia trouxe novos atores para a causa, além da mídia que descortinou as desigualdades sociais mostrando que os movimentos de base contribuem para uma melhor ação filantrópica: “A gente também enquanto setor executor, também começou a dar um salto para olhar e apoiar organizações da base, que é um outro ganho, este olhar das organizações para as periferias, para as organizações de negros e negras, para as organizações periféricas. Ver o quanto de potências essas organizações têm, porque se não fossem por elas e por todas as outras que se criaram, não seria possível que todas essas doações de cestas básicas, cartões alimentação, chegassem às pessoas mais vulneráveis”.

Selma concordou com a fala de Neca e acredita ser esse o caminho: “A filantropia precisa dialogar a partir desse lugar: a comunidade”, entretanto, ela reconhece os desafios para realizar o trabalho em campo: “Não é uma tarefa simples, tem muito a ser feito. Sempre foi um item complexo buscar os recursos, entendendo o que é necessário para o campo, em contrapartida do que está sendo solicitado na matriz de metas dos financiadores. Agora a gente tem um pouco mais de abertura para a escuta, para entender o que e como o campo está demandando. É o campo que deve orientar a atuação da filantropia. Precisamos atuar e permitir essa construção, entendendo que não se trata de apoiados e de quem tem o recurso para apoiar. Quem vivencia aquele drama, talvez seja um dos melhores a contribuir para a busca de solução”. Completa.

Selma falou da trajetória do Fundo Baobá como um importante agente na desconstrução da cultura colonizadora e na promoção da equidade racial: “O Fundo Baobá foi criado como legado da Fundação Kellogg, que estava encerrando a sua operação aqui no Brasil. Mas foi o movimento negro que destacou o que diziam os dados: a população que estava com falta de acesso à educação, saúde e saneamento de qualidade era justamente a população negra, periférica, LGBTQI+, além das populações quilombolas e indígenas. Olharam pra isso e pensaram em construir uma solução. Convidaram ativistas, militantes do movimento negro, professores e pessoas que estavam trabalhando na filantropia com uma cultura antirracista, e todo mundo junto construiu o que hoje conhecemos como Fundo Baobá. A gente foi construído a partir de uma mentalidade que é da criação de um fundo patrimonial, que é dinheiro, é premissa de quem já vem com uma garantia de recurso, seja de família, de empresa, de alguma forma. Isso nos garantiu protagonismo.”

Para acompanhar o evento na íntegra, basta assistir o vídeo abaixo. O Café com Cuidado, com a participação de Selma Moreira e Neca Setubal, começa a partir de 2:28:30.

Sobre a Benfeitoria

Iniciando as atividades em 2011, a Benfeitoria foi uma ideia do casal Murilo Farah e Tatiana Leite, que se tornaria uma das maiores e mais completas plataformas de financiamento coletivo do país. 10 anos depois, o movimento começa a se naturalizar no dia a dia do brasileiro, principalmente com a urgência de diversas causas neste mais de um ano de pandemia. Desde 2011, mais de 3.500 campanhas foram viabilizadas por mais de 500 mil benfeitores, que superaram os R$135 milhões em doações, sendo R$81 milhões arrecadados só em 2020, através de 220 mil pessoas.

Fundo Baobá, Benfeitoria e Instituto Coca Cola Brasil e Movimento Coletivo foram parceiros no projeto Negras Potências que apoiou 13 iniciativas e soluções de impacto para o empoderamento de meninas e mulheres negras em território nacional, focados na redução das desigualdades raciais e sociais, contando com apoio de mais de  1.200 apoiadores benfeitores.

Além de todos esses trabalhos realizados, a Benfeitoria planejou diversos conteúdos, ferramentas e projetos, como o Rio +, a Universidade do Financiamento Coletivo e o Festival Reboot. Hoje ela conta com um time de 20 pessoas dedicadas em tempo integral à organização, além de contar com um reforço de mais de 140 Sócios Benfeitores. 

“É nós por nós”: 25 anos de Conaq e de luta pela sobrevivência quilombola

No dia 12 de maio, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) celebrou 25 anos de existência. No dia 14 de maio, durante a live Diálogo Intergeracional: avanços e retrocessos na luta pela terra e território, que celebrou as duas décadas e meia de histórias e lutas da Coordenação quilombola, a educadora, mestra em Políticas Públicas e Gestão da Educação, doutoranda em sociologia e coordenadora executiva da Conaq, Givânia Maria da Silva, fez questão de parabenizar o movimento: “Salve a Conaq! Viva a todos que vieram antes, viva os que estão e os que virão. A Conaq somos todos nós. Não é de um grupo, não é de uma comunidade, é do povo brasileiro, é um patrimônio do povo negro e de todos nós”. 

Live comemorativa de 25 anos da Conaq

Muito antes de ser oficializada em 1996, a trajetória da Conaq iniciou na década de 1970, mais precisamente no estado do Maranhão, conforme relembra a tecnóloga em gestão ambiental, educadora popular e coordenadora executiva da Conaq no Maranhão, Célia Pinto: “Maranhão foi o estado pioneiro na identificação das comunidades quilombolas no país, através do Centro de Cultura Negra (CCN), que fazia um levantamento da população negra rural”. Segundo Célia, esse levantamento acabou gerando um projeto chamado “Vida de Negro”, que existe até hoje, e na época foi o responsável pelo mapeamento das comunidades negras rurais do Maranhão.

Como resultado desse mapeamento ocorreu, no ano de 1986, o 1º Encontro de Comunidades Negras Rurais: Quilombos e Terras de Preto no Maranhão. Célia Pinto faz questão de lembrar que o encontro aconteceu dois anos antes da Constituição Brasileira ser promulgada e muitas das reivindicações apresentadas pela população quilombola no encontro ajudaram a pautar medidas e decretos de proteção. “Naquela época já se começava a se pensar em políticas para essa população.”

Célia Pinto, tecnóloga em gestão ambiental, educadora popular e coordenadora executiva da Conaq no Maranhão

O Maranhão realizou mais quatro encontros estaduais de quilombolas incluindo resultados do mapeamento de comunidades negras rurais que ocorriam em outras regiões do país, com a apoio de outras instituições e movimentos, como o Movimento Negro Unificado (MNU). Até aquele momento 412 comunidades quilombolas eram conhecidas. O exercício de mapeamento e reconhecimento culminou no 1º Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Brasília, no ano de 1995. Durante o evento foi criada a “Comissão Nacional Provisória das Comunidades Rurais Negras Quilombolas”.

Cartaz do “1º Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas”, em Brasília em 1995

No ano seguinte, 1996, aconteceu o segundo encontro nacional, dessa vez na cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e foi justamente lá que a Comissão Nacional Provisória deu lugar à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Conaq. “Como diz Socorro Guterres, a Conaq nasceu em Bom Jesus da Lapa, mas ela foi gestada no Maranhão”, em complemento, Célia Pinto brinca “e eu tive o privilégio de participar dessa gestação desde o início”.

Atualmente, a Conaq está presente em 24 estados e, a partir do processo de identificação e visibilidade das comunidades quilombolas, articula um universo com mais de 3.500 comunidades, em todas as regiões do país. 

Se Célia Pinto teve o privilégio de participar da gestação da Conaq, até chegar a coordenação executiva da mesma em 2011, ela também esteve presente nas principais conquistas da coordenação para a população quilombola brasileira, como a sanção do decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. 

Quinze anos depois desta importante conquista coletiva, a Conaq se viu lutando contra o Supremo Tribunal Federal (STF) para manter a constitucionalidade deste decreto: “Foi um processo muito difícil pra gente, muito doloroso. Nós fizemos várias idas a Brasília, várias mobilizações, várias caravanas e quando chegávamos lá, na hora, a votação era suspensa”, relembra Célia. Finalmente, no dia 8 de fevereiro de 2018, o STF decidiu que o decreto era constitucional: “Não foi por unanimidade não! Porque ainda teve dois votos imparciais e um voto contrário, mas no final das contas nós conseguimos que o STF votasse como constitucional”, lembra Célia.

Para a coordenadora executiva, além da importância de manter as demarcações e o reconhecimento das terras quilombolas, a mobilização da Conaq por essa causa gerou uma grande visibilidade para o movimento: “Nós tivemos parcerias de várias organizações, tanto políticas como jurídicas e também de comunicação. Nós elaboramos campanhas e tivemos o apoio de vários artistas”. A campanha citada por Célia é a mobilização “O Brasil é Quilombola! Nenhum Quilombo a Menos!”, que contou com o apoio e a participação de atores globais como Ícaro Silva, Sérgio Malheiros, Letícia Colin e Sophia Abrahão, além de lideranças ativistas como a professora Vilma Reis, a coordenadora geral da ONG Criola, Lúcia Xavier e a jornalista e apresentadora Maria Paula de Andrade, entre outros: “Até então, a gente vinha fazendo essas lutas, vinha fazendo esses enfrentamentos, mas muito ainda na invisibilidade. Essa questão da votação fez com que a gente também pudesse ter essa visibilidade mais pra fora, até internacionalmente. Isso pra mim foi um marco muito importante”.

A Conaq e a Covid-19

Ao longo dos 25 anos de atuação a Conaq sempre teve que lidar com questões envolvendo a política de demarcação e reconhecimento de terras quilombolas; racismo ambiental mas,  no ano de 2020, a população quilombola teve que enfrentar um novo e imenso desafio, a pandemia do novo coronavírus. Segundo dados apresentados pela própria Conaq, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), com base no monitoramento das secretarias estaduais de saúde do país, até o dia 6 de maio deste ano foram confirmados 5.345 casos de Covid 19, em 21 estados e um total de 272 óbitos em 19 estados, sendo o Pará o recordista com 80 mortes, seguidos por Rio de Janeiro (42) e Amapá (35). Para Célia, os números ainda não representam a totalidade: “Para gerar esse boletim, nós solicitamos o apoio das lideranças. Eles pegam os boletins com as secretarias municipais, mas, infelizmente, não são todos os municípios que fazem isso. Tem estados que a gente tem mais facilidade, tem estado que a gente tem mais dificuldade, inclusive de reconhecer a população quilombola como sujeito de direito. Portanto, sabemos que mesmo esses dados que a gente tem dentro da nossa plataforma, são dados que, na verdade, não são reais. Infelizmente há muitos mais mortos”, lamenta.

Aliás, foi conquista da Conaq incluir a população quilombola como grupo prioritário no plano nacional de vacinação, através da Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) 742/2020, votada e aprovada pelo STF. Até o momento, apenas 9,4% da população brasileira foi vacinada contra a Covid-19 e isso, obviamente, reverbera nas comunidades quilombolas: “Do total de vacinas que estavam destinadas para a população quilombola no Maranhão, veio apenas 63%. Portanto, o número de vacinas disponibilizadas não condiz com a realidade. Ainda mais considerando que os dados que o governo possui, a respeito das comunidades quilombolas, são de 2010, são 11 anos de defasagem”, frisa Célia, que ainda revela outra triste constatação em relação à vacinação da população quilombola no estado do Maranhão: “Aqui estima que temos em torno de 1.500 comunidades quilombolas espalhadas em 117 municípios. Porém, apenas 90 municípios chegaram a receber doses de vacinas, e destes, três informaram que não têm população quilombola, mas mesmo assim receberam vacinas para vacinar quilombolas”.

Equipe da Conaq em Brasília para a “Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) 742/2020”, que incluiu a população quilombola como preferencial no plano nacional de vacinação contra à Covid-19 | Foto: Walisson Braga

Diante de todos esses entraves, Célia Pinto revela de onde vem a força da Conaq para lutar cada vez mais pelas comunidades quilombolas no país: “Como costumamos dizer por aqui, somos sempre nós por nós! É um cuidando do outro, buscando os nossos saberes ancestrais, buscando essas nossas energias vitais e cronológicas. É através disso que a gente tem vencido esses desafios”. 

Em 25 anos de atividade, apesar de muitos desafios, houve muitas conquistas: a titulação de territórios quilombolas através do Artigo 68 da Constituição; o programa de Educação Escolar Quilombola; o Programa Nacional de Habitação Rural, que viabiliza a construção ou a reforma de unidades habitacionais rurais, por meio de parcerias com as Entidades Organizadoras (EO), destinadas às famílias enquadráveis no âmbito, entre elas quilombolas e indígenas; o Programa Brasil Quilombola, que compreende um conjunto de ações voltadas para a melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e serviços públicos da população quilombola, entre muitas outras que tiveram as mãos da Conaq e de muitos parceiros. 

Como Givânia fez questão de frisar na live de aniversário: “A Conaq não nasceu sozinha, a Conaq não é uma ilha, não é uma organização isolada, ela tem e bebeu na ancestralidade e essa ancestralidade não é quilombola, ela é negra”. Célia Pinto, que  compartilha o mesmo pensamento, completa:  “A Conaq nunca fez isso sozinha, ela sempre contou com grandes parceiros que até hoje estão conosco. Nesses 25 anos de luta e de resistência, tivemos muitos braços e muitas pernas construindo junto conosco. Falar da Conaq é falar que todo quilombola é Conaq. Onde estiver um quilombola, uma quilombola, lutando por garantia de direitos, lutando pela garantia da vida, é um Conaquiano. A Conaq somos todos nós”.

Racismo ambiental: saiba o que é e enxergue como ele vem acontecendo

Neste 5 de junho (sábado), o mundo vai comemorar o Dia Mundial do Meio Ambiente. Um dia pela conscientização de toda a população para preservação,  conservação e recuperação das fontes naturais sustentáveis. 

O mundo tem estado atento mas, embora a tônica seja “não deixar ninguém para trás”, há sempre aquelas e aqueles que ficam à margem, vítimas da degradação das fontes de recursos naturais.

Para o ativista afro-americano de direitos civis Benjamin Franklin Chavis Junior, isso constitui o Racismo Ambiental, termo criado por ele  no início dos anos 1980 e que define a desigualdade com que as etnias vulnerabilizadas estão sendo expostas, cotidianamente, aos fenômenos ambientais nocivos ao bem-estar humano. 

Chavis Junior criou a expressão Racismo Ambiental a partir da constatação de que parte da população negra nos EUA estava sendo levada a viver em localidades degradadas de várias formas. Ele define Racismo Ambiental como “a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais”. 

No Brasil, 51,9% da população não tem acesso ao saneamento básico. Segundo pesquisa do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), realizada em 2016, 51,6% da população sem acesso ao saneamento básico  é pobre, sendo a maioria negra.  

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em maio de 2020 que o Brasil tem mais de 5,1 milhões de domicílios localizados em favelas, comunidades, palafitas, grotas ou vilas, baixadas ou mocambos (aglomerados subnormais). Estes territórios totalizam 13.151 e estão presentes em 734 municípios do país. Qualquer que seja a denominação há um traço comum: gente vivendo na linha da pobreza ou compondo  os estratos recém nomeados  desamparados. Gente que, pela ausência de políticas públicas de habitação,  planejamento urbano, meio ambiente e políticas sociais em geral, é levada a viver e sobreviver com os piores resultados de um ambiente degradado, ou seja, a coexistir com o pior.

Não há como não associar justiça climática a direitos humanos e justiça social. Já há mais de 500 anos os povos da diáspora negra têm sofrido os impactos negativos do que se denomina desenvolvimento. Em nome desse desenvolvimento é que são promovidas queimadas, desmatamentos e desmantelamentos que vêm despejando opressão sobre o povo preto, indígena e quilombola. 

Presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá, Giovanni Harvey analisa a importância do edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça, lançado no início de maio

No dia 5 de maio, o Fundo Baobá lançou mais um importante edital. Com o financiamento da Google.org, o edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça vai apoiar entidades negras atuantes no enfrentamento do racismo, violência racial e incorreções que acontecem dentro do sistema de justiça criminal no Brasil. Uma grande iniciativa dentro de um país que fechou 2020 com a marca de 43.892 mortes, segundo o NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Concomitantemente ao lançamento do edital, o dia 6 de maio acabou entrando para a história brasileira como o dia da maior chacina ocorrida na cidade do Rio de Janeiro desde o século passado. Após a invasão do Morro do Jacarezinho por agentes policiais, 28 pessoas foram mortas. Um policial também morreu: André Leonardo Frias, 48 anos.  A motivação alegada pela polícia para a invasão do morro seria a repressão ao aliciamento de crianças e adolescentes pelo tráfico de drogas. 

O Superior Tribunal  Federal (STF), porém, determinou em  junho de 2020 que operações policiais em comunidades não deveriam ocorrer durante o período de pandemia. Situação que seria alterada apenas em casos excepcionais, o que não seria o caso do Jacarezinho. 

O presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá, Giovanni Harvey, comenta: “O edital mantém uma linha de coerência com a trajetória do Fundo Baobá. Este edital resgata parte dos compromissos estabelecidos ao longo da mobilização que engajou 192 instituições, lideranças e personalidades negras, principalmente da Região Nordeste do Brasil, no processo que resultou na fundação do Fundo Baobá, em 2011. Já naquele momento um dos temas identificados foi o alto nível de letalidade de jovens negros”.

Harvey cita os eixos programáticos do Fundo Baobá e o alinhamento do Vidas Negras nesses eixos. “Ao longo desses 10 anos, o Baobá vem buscando qualificar a sua atuação programática, para que possa dar conta dos desafios, não apenas nesse eixo Viver com Dignidade, como nos demais: Comunicação e Memória, Educação e Desenvolvimento Econômico. O Baobá trabalha nesses quatro eixos. O edital Vidas Negras engloba os quatro eixos estratégicos”, afirmou o presidente do Conselho Deliberativo do Fundo. 

Giovanni Harvey, presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), no ano de 2020 foram realizadas quase 12 milhões de abordagens policiais para revista. O contingente mais impactado por essas abordagens é o dos jovens negros da periferia. Só isso já demonstra arbitrariedade na ação policial.  “Isso é importante porque é um tema que normalmente precisaria de investimento social privado. O Baobá conseguiu construir uma parceria com a Google.org no sentido de atender a uma demanda super nítida, que trata de um tema tão emergente. Um tema para o qual a  filantropia brasileira, o investimento social privado no Brasil,  ainda não dá relevância. Portanto, é importante que o braço filantrópico de uma empresa como a Google se alinhe ao Baobá  no sentido de sinalizar para a sociedade a relevância do enfrentamento desse tema para promover equidade racial”, define Giovanni Harvey. 

Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Dina Alves (SP) e Lorena Borges (MG) falam de suas conquistas

O Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, lançado em setembro de 2019 pelo Fundo Baobá para Equidade Racial, teve evento inaugural no Rio de Janeiro. Além da família da vereadora assassinada em 14 de março de 2018, estiveram presentes cerca de 250 pessoas entre elas financiadores, membros da Assembleias Geral e Conselho Deliberativo do Fundo Baobá, lideranças do movimento de mulheres negras, movimento negro e do movimento feminista. O principal, porém, estava por vir quando das inscrições e definição dos nomes das mulheres que receberam apoio financeiro e técnico para ampliação de suas habilidades.  

Entre tantas mulheres que, com seus esforços, vêm transformando as vidas de outras estão a advogada, atriz e mestra em Ciências Sociais Dina Alves e a também advogada, com pós-graduação em Direito Penal, Lorena Borges. A primeira é de São Paulo e a segunda, de Minas Gerais.  

O fato de estarem sendo apoiadas pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco tem dado um incremento maior à vida dessas mulheres. Dina, por exemplo, tem utilizado as diferentes plataformas em que atua para ampliar a defesa dos direitos  das mulheres negras. “Minha atuação está focada em múltiplas dimensões (profissional, acadêmica e ativista) na luta e defesa intransigente pela vida das mulheres negras. Atuar nestas dimensões tem me permitido construir uma agenda de Direitos Humanos racializada junto a mulheres negras em diferentes pautas. Assim,  tenho construido redes e identificado atores  na luta contra o genocídio antinegro a partir da pauta do encarceramento e mortes” diz. 

Dina Alves, advogada, atriz e mestra em Ciências Sociais

Lorena Borges encontrou significância na atuação com os povos quilombolas e na defesa de sua cultura em Minas Gerais. “Atuo como diretora cultural de eventos da Juventude de Terreiro Cenarab – MG (Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira). Faço parte da comunidade quilombola Manzo N’gunzu Kaiango, onde atuo no desenvolvimento, gestão e execução de projetos. O nosso principal eixo de atuação é o desenvolvimento e emancipação das mulheres da nossa comunidade. Meus trabalhos são voltados para o empoderamento e para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, onde a igualdade de gênero e racial estejam presentes. Para isso organizo e ministro formações, palestras e oficinas em comunidades tradicionais de matriz africana”, afirma.

O trabalho que Lorena vem desenvolvendo tem ajudado na preservação da memória cultural das raízes africanas. “Através deste trabalho alcançamos o fortalecimento e a criação de redes entre nós, que além de possibilitar troca de saberes também ajudam na organização das comunidades tradicionais de matriz africana e geram visibilidade e engajamento para nossas ações”, diz. Já o trabalho de Dina tem foco nas mulheres encarceradas. “A construção de redes em torno do debate sobre encarceramento em massa, feminismo negro e abolicionismo penal passa pelo fortalecimento da nossa identidade de mulher negra na luta antirracista. Estes anos de estudos e ativismo me proporcionaram acúmulo teórico e inspiração para fortalecer as redes e os vínculos com diversos coletivos feministas nacionais e internacionais”, conclui. 

Lorena Borges, advogada com pós-graduação em Direito Penal

Ser parte do Programa de Aceleração tem contribuído para que Dina siga investindo na defesa das mulheres privadas de liberdade e ainda incremente o intercâmbio entre as mulheres negras em diferentes territórios. “O fortalecimento das redes de mulheres negras traduz-se em fortalecimento da nossa autonomia, independência e autoconhecimento. As trocas sobre a política do autocuidado e da importância da preservação de dados pessoais – num contexto de assustador incremento da violência contra as mulheres negras – são conquistas imensuráveis”, afirma Dina. 

Lorena Borges também comemora o fato de estar no Programa de Aceleração. “Os avanços na minha formação acadêmica e os caminhos que venho traçando em prol de me consolidar como pesquisadora me trazem grande satisfação. Significa estar honrando a minha ancestralidade e contribuindo com as gerações futuras”, conclui.

Sobre o programa

O Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, é uma iniciativa do Fundo Baobá para Equidade Racial, lançada em setembro de 2019, em parceria com a Fundação Kellogg, Instituto Ibirapitanga, Fundação Ford e Open Society Foundations.

O intuito do Programa é fomentar lideranças femininas negras, de forma individual ou coletiva. Para que mulheres negras tenham mais subsídios para acessar espaços de tomada de decisão; mobilizem mais pessoas para a luta antirracista, por justiça, equidade racial e social e transformem o mundo a partir de suas experiências.

 

28 de maio: Dia Internacional de Luta Pela Saúde da Mulher e Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna

Hoje celebramos duas lutas para a saúde feminina, o “Dia Internacional de Luta Pela Saúde da Mulher” e o “Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna”.

A primeira comemoração foi definida no “IV Encontro Internacional Mulher e Saúde”, que ocorreu em 1984, na Holanda, durante o “Tribunal Internacional de Denúncia e Violação dos Direitos Reprodutivos”. Nele foi discutida a mortalidade materna como o principal indicativo da qualidade de saúde ofertada para as mulheres fortemente influenciadas pelas condições socioeconômicas da população.

No Brasil, 28 de maio foi declarado pelo Ministério da Saúde como Dia Nacional da Redução da Mortalidade Materna, focando na necessidade de melhorar os serviços de atenção ao pré-natal e ao parto, bem como a capacitação dos profissionais de saúde para este atendimento.

Dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostravam no ano de 2016, no Brasil, que 1.829 mulheres morreram por causas relacionadas/agravadas por gravidez, parto ou o puerpério (período pós-parto de 42 dias). No mundo todo, 830 mulheres morreram por dia por essas causas.

Ainda sobre o Brasil, 54,1% das mortes maternas no país ocorrem entre as mulheres negras de 15 a 29 anos. A população negra feminina também tem duas vezes mais chance de morrer por causas relacionadas à gravidez, ao parto e ao pós-parto quando comparadas às mulheres brancas.

No entanto, a partir de 2020, com o avanço da Covid-19 no país, um levantamento realizado pelo Observatório Obstétrico Brasileiro COVID-19 (OOBr Covid-19), registrou que no ano passado tivemos 453 mortes de gestantes e de mães puérperas, sendo 10,5 óbitos da média semanal. Entretanto, esse número da média semanal dobrou agora em 2021, até o dia 7 de abril, foram 289 mortes (22,2 óbitos na média semanal).

O mesmo estudo mostra que a falta de acesso a tratamentos adequados é apontado com uma das principais causas do crescimento de mortes de gestantes e puérperas. Uma em cada cinco gestantes e puérperas internadas com coronavírus não tiveram acesso a UTI e cerca de 34% não foram intubadas, conforme afirma o OOBr Covid-19.

Contra à Covid-19 não existe tratamento precoce, o que imuniza o vírus é a vacina. Segundo dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações, até o dia 23 de abril, foram vacinadas 22.295 gestantes no país, sendo a grande maioria com a vacina Astrazeneca produzida pelo Instituto Fiocruz em parceria com a universidade Oxford. O mesmo órgão apresentou um estudo informando que das três vacinas disponíveis no país, foram notificados 408 eventos adversos em gestantes, entretanto, 397 não são considerados graves, enquanto os 11 restantes, entre eles sete abortos espontâneos em gestantes vacinadas, que não sabiam que estavam grávidas, não teve associação com a vacina.

Sobre a eficiência ou contra indicações da vacina para gestantes, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou, no dia 2 de março, um documento científico com informações acerca do tema. Sobre a imunização de mulheres lactantes, a organização se pronuncia da seguinte forma: “A SBP é enfática em recomendar a vacinação de mulheres que, na sua oportunidade de vacinação, estiverem amamentando, independentemente da idade de seu filho, sem necessidade de interrupção do aleitamento materno, ressaltando todos os benefícios de ambas as ações (imunização e amamentação).” Em relação à administração de vacinas contra a Covid-19 durante a gestação, a posição da SBP é que ela poderá ser realizada após avaliação cautelosa dos riscos e benefícios e com decisão compartilhada, entre a mulher e seu médico prescritor. “As gestantes que eventualmente forem vacinadas inadvertidamente devem ser informadas pelos profissionais sobre a baixa probabilidade de risco e encaminhadas para o acompanhamento pré-natal de rotina”.

A luta diária para redução das mortes maternas e promoção do bem estar das mulheres é uma causa que envolve diversos setores da sociedade e dos governos, focando essencialmente no acesso aos serviços, numa assistência de qualidade e humanizada.

 

Movimentos e organizações sociais lançam campanha de combate à fome em meio a pandemia

A pandemia do novo coronavírus, que assola o país há um ano, trouxe um rastro de destruição que pode ser quantificado em dados: Em 12 meses, tivemos 12,5 milhões de casos e alcançamos a marca de mais de 300 mil vidas perdidas. Mesmo com a vacinação em curso, desde janeiro de 2021, até o momento, apenas 2,22% da população tomou a segunda dose da vacina contra a Covid-19, enquanto a média diária de morte tem alcançado o número de 3 mil por dia. Quanto mais tempo demorarmos para ampliar o acesso à vacinação e sem a consciência social sobre a prevenção, mais vidas serão ceifadas e outras tantas negativamente afetadas. 

A covid-19 acirrou desigualdades sociais existentes em nosso país, o aumento do desemprego, durante o período pandêmico, atingiu as populações mais vulneráveis e com isso, além da doença, um outro vilão têm assombrado essas pessoas: a fome.

Para fazer a contingência da pior crise humanitária dos últimos tempos no Brasil, a Coalizão Negra Por Direitos, em parceria com a Anistia Internacional, Oxfam Brasil, Redes da Maré, Ação Brasileira de Combate às Desigualdades, 342 Artes, Nossas – Rede de Ativismo, Instituto Ethos, Orgânico Solidário e Grupo Prerrô, mobilizam suas forças para lançar a campanha de financiamento coletivo para arrecadar fundos para ações emergenciais de enfrentamento à fome, à miséria e à violência na pandemia de Covid-19.

A campanha “Se Tem Gente Com Fome, Dá de Comer”, lançada no dia 16 de março, visa buscar formas de manter as ações das organizações apoiadoras nos territórios afetados pela pandemia, garantindo a saúde e a vida de lideranças territoriais e de membros do movimento negro. Aumentando a capacidade de organização e acompanhamento de famílias atendidas e, sobretudo, buscando condições estruturais e financeiras para atender milhares de famílias em extrema pobreza.

Foi realizado um mapeamento detalhado dos territórios e das famílias atendidas pelas ações de apoio humanitário promovidas pelas organizações que compõem esta campanha. O resultado prévio deste trabalho identificou 222.895 famílias a serem apoiadas e mobilizadas em periferias, favelas, palafitas, comunidades ribeirinhas e quilombolas de todo o território nacional. Famílias prioritariamente negras. 

O Fundo Baobá, com a premissa de promover a equidade racial para a população negra em nosso país, é mais um braço a somar nesta iniciativa. Assumimos o compromisso de divulgar a campanha junto às nossas bases e parceiros por meio de ações de comunicação, em eventos e outros espaços estratégicos. Falaremos da “Se Tem Gente Com Fome, Dá de Comer” e a necessidade do apoio, participação e doação nessa empreitada. Todos podem participar dessa iniciativa, sendo pessoa física ou jurídica, o mais importante é doar.

A atuação do Fundo Baobá no combate à Covid-19, no ano de 2020, renderam cinco editais voltados para comunidade negra em situação de vulnerabilidade. Em um balanço preliminar, foram investidos mais de R$ 1.180 milhões, que beneficiaram, direta ou indiretamente, 421 indivíduos e 135 organizações, no contexto da pandemia do novo coronavírus.

Para saber mais sobre a campanha “Se Tem Gente Com Fome, Dá de Comer”, e como colaborar acesse o site oficial e participe dessa iniciativa. 

Trabalho tecnológico e trajetória ativista definem a missão da Amadi Technology, apoiador do Programa Já É

O nome Amadi significa alegria e harmonia, ele veio de um ritual conhecido como Ikomojade, que dá nome ao recém nascido dentro da tradição Yorubá. “Há um ano e meio nossa filha nasceu e recebeu esse nome na comunidade tradicional de terreiro, o Ilê Alaketu Ifá Omo Oyá, da qual fazemos parte”, diz Agnes Karoline, CEO da Amadi Technology, empresa que leva o mesmo nome de sua filha com o esposo e sócio Renato Racin.

A trajetória da Amadi Technology começou com Renato Racin. Trabalhando há 15 anos com informática, iniciou os seus trabalhos com o setor privado, depois contribuiu para ativistas de direitos humanos e ativistas políticos, além da comunidade de software livre. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Renato lutou por melhores condições de acesso e permanência na universidade.  

Com o aumento das demandas por trabalhos de TI com as organizações do terceiro setor, principalmente organizações que lutam pela defesa dos direitos humanos, houve a necessidade de aumentar o nível de profissionalização no atendimento dessas demandas e por uma gestão mais eficiente: “Foi então que constituímos uma sociedade, com a atual diretora-executiva Agnes Karoline”, revela Renato. Graduada em Ciências Sociais também pela UNIFESP, Agnes também possui cursos na área de gestão pública (ETEC CEPAM USP) e gestão e elaboração de projetos sociais (PUC).

Renato Racin, filosofo e sócio da Amadi Technology

Hoje, a Amadi Technology, conta com a colaboração de pessoas que constituem uma Equipe Executiva (Diretora Executiva, Coordenadora Administrativa e Financeira e Diretor de Tecnologia) e a Equipe de Tecnologia, que conta com um analista de suporte nível 1, que realiza seleção, implantação e manutenção de hardwares e software básico e de apoio, um analista de suporte pleno, responsável pelo atendimento de nível 2 e um parceiro de infraestrutura e prestação de serviços na área de elétrica, cabeamento estruturado e Circuito Fechado de TV (CFTV). “Recentemente, também passamos a contar com duas consultorias, responsáveis pelo processo de institucionalização da nossa comunicação e apoio jurídico”, conta Agnes Caroline.

Para Renato, o grande diferencial do trabalho oferecido pela Amadi Technology é a unidade da tecnologia com questões humanas: “Juntamos o trabalho tecnológico com a nossa trajetória ativista e também a experiência com a ancestralidade para dar sentido à empresa e para a missão que temos”.

A missão da Amadi Technology consiste em: 

– Oferecer recursos tecnológicos personalizados para melhorar processos internos de empresas e organizações, agregando maior produtividade por meio de uma gestão inteligente, responsável e confiável em Tecnologia da Informação e Informática. 

– Democratizar o uso das tecnologias da informação e informática, tanto em sua dimensão técnica como de apropriação digital, apresentando suas inúmeras possibilidades de uso criativo e adequado para todos os gêneros, etnias ou raças, modos de existências, lutas ou resistências e para todas as gerações.

“Tudo isso impulsionou nossa profissionalização no campo de direitos humanos e segurança da informação para o terceiro setor”, revela Agnes.

Agnes Karoline, CEO da Amadi Technology e graduada em Ciências Sociais

E foi com essa vontade de mudar o mundo, oferecendo um bom serviço tecnológico, que os caminhos da Amadi Technology e do Fundo Baobá para Equidade Racial se cruzaram em 2019, conforme relembra Renato: “A diretora-executiva do Fundo Baobá, Selma Moreira, entrou em contato comigo para realizar a prestação de um serviço pontual de organização do parque de TI do escritório. Na oportunidade, foi possível identificar alguns recursos de produtividade que poderiam ser implantados na organização”. Hoje a parceria entre Amadi e Baobá segue forte: “Após a realização desse serviço inicial, iniciou-se uma parceria que hoje conta com um atendimento personalizado para Suporte e Gestão de TI, além de Compliance na área de proteção de dados pessoais”.

E a parceria entre Fundo Baobá e Amadi Technology se intensificou ainda mais durante a execução do “Já É: Educação e Equidade Racial”. Lançado em 2020, o Programa tem a premissa de apoiar jovens negros entre 17 e 25 anos para o acesso à universidade. As e os jovens selecionados são de regiões periféricas da cidade de São Paulo e da Grande São Paulo e receberam bolsa de estudos para frequentar aulas em um cursinho pré vestibular. O Programa conta com o apoio da Citi Brasil, Demarest Advogados e também da Amadi Technology, que foi fundamental considerando que as aulas iniciaram de forma remota, devido a Covid-19: “Após receber uma demanda operacional, para o levantamento orçamentário para a compra de notebooks e preparação dos mesmos para uso, percebemos a grandeza do Programa Já É e uma oportunidade de exercer nossa missão de facilitar os processos de democratização dos usos de tecnologias digitais”, diz Agnes. 

A Amadi Technology facilita a informatização dos alunos durante as aulas virtuais do Programa Já É: “Inicialmente realizamos uma pesquisa de equipamentos apropriados para contemplar as necessidades dos(as) estudantes do programa. Essa pesquisa inicial contou também com um estudo orçamentário e dos pré-requisitos da plataforma de estudos do cursinho..

Sugerimos também a instalação de um Sistema Operacional Livre (GNU/Linux) em todos os computadores, por conta de questões de segurança e estabilidade dos equipamentos, além de toda a economia com licenças proprietárias de software”. Afirma Renato.

O apoio ao Programa Já É do Fundo Baobá, não é a primeira e nem única incursão da Amadi Technology na esfera da equidade racial, o grupo de desenvolve o tema não apenas em outras parcerias mas dentro da própria empresa: “Apoiamos projetos em nosso território que fazem formação com mulheres na perspectiva interseccional, que é o curso das promotoras legais populares e também realizam atendimento para mulheres vítimas de violência doméstica, onde grande parte destas mulheres são periféricas e negras”, diz Agnes Karoline. “Os critérios de seleção para funcionários têm alta prioridade mulheres negras ou de comunidades tradicionais. Nossas parcerias estratégicas também contam com a sensibilidade para os debates dos direitos humanos”, reforça, acreditando que essa deve ser uma responsabilidade de todo o setor privado: “Em nossa opinião, o setor privado tem que ter responsabilidade social. Entender sua responsabilidade enquanto ator de impacto em questões de ordem econômica, política, social e cultural”.

Agnes Karoline durante a aula inaugural do “Programa Já É: Educação e Equidade Racial”

Agnes Caroline avalia de forma positiva o resultado da parceria da Amadi Technology no Programa Já É: “Conseguimos neste momento já ter entregado os computadores para os estudantes que é um recurso básico para acessar as aulas. E também ficamos disponíveis para eles dando suporte remoto às dificuldades com o hardware ou com o sistema operacional. Em breve faremos uma interação com as aulas para trazer o debate da tecnologia e segurança da informação e tecnopolítica”, que deixa também uma mensagem para todos(as) os(as) jovens participantes do Programa: “Você não está sozinho(a), a luta dos nossos ancestrais vem de muito tempo para chegarmos até aqui. Acredite em você. Todos os lugares são também pra vocês e não acredite naqueles que digam ao contrário ou menos que isso”.

Justiça Racial: o combate a injustiças históricas pode impedir a carne negra de ir de graça para os presídios

“A carne mais barata do mercado é a carne negra,
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos” 

Os versos da música A Carne, composta por Seu Jorge e Marcelo Yuca, dão uma pesada ideia da realidade vivida pelo povo preto brasileiro. O sistema prisional nacional tem na sua entranha a presença maciça do elemento negro, quer sejam homens ou mulheres. Esse é um reflexo da (in)justiça racial que impera no país. Segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2019 e que teve atualização em fevereiro de 2021, o sistema Prisional Brasileiro conta com 657.844 detentos definidos por cor e raça. Desses, 438.719 (66,7%) são negros e negras. Os brancos são 212.444 (32,3%). O número de negros é o dobro que o de brancos. 

Para o doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) Felipe Freitas, o modo de atuação da polícia no Brasil explica um pouco a presença tão marcante do elemento negro dentro do sistema prisional. “Em geral as decisões judiciais não reconhecem a violência policial e resistem em agir para coibir a violência de Estado. Conforme evidencia a  pesquisa do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). Aceita-se a palavra do policial como única prova na ampla maioria dos casos apreciados no âmbito das audiências de custódia. Nos crimes de tráfico, por exemplo, 90% dos casos analisados pelo IDDD tinham como único elemento da acusação a palavra dos agentes envolvidos na abordagem”, complementa Felipe Freitas. 

Felipe Freitas, doutor em Direito, Estado e Constituição

A história brasileira vem marcando o histórico crescente da violência racial no Brasil. Um fato de peso e que veio contribuir ainda mais para isso, ocorreu durante a Conferência da Comissão Brasileira para a Anistia, realizada em 1979. Nela, o Movimento Negro Unificado (MNU) apresentou proposta sobre a questão da prisão de negros no país. “A proposta partia de uma premissa de que pessoas pobres e pretas presas também eram presos políticos. A proposta foi ridicularizada. Isso mostra como o pensamento negro foi descartado no âmbito da história brasileira”, disse o professor Freitas em recente depoimento em live realizada pela UnB durante o  ciclo Comunidades, Princípios e Processos Sociais de Exclusão, que discutiu o tema Entre Promessas de Paz e Sentenças de Guerra. 

O número de pessoas encarceradas no Brasil teve aumento percentual de 224,5% em 20 anos. O número saltou de 232.755 para 755.274. Num recorte por sexo, o relatório Mães Livres – A maternidade invisível no sistema de justiça, também elaborado  pelo IDDD em 2019, revela que, das 37,8 mil mulheres presas no Brasil, 63,5% são negras. Portanto 24 mil mulheres negras. “Seguimos desenhando um mundo onde não cabe a presença negra. Onde a presença negra não consegue sequer ser ilustrada como uma possibilidade nas nossas representações”, afirma Felipe Freitas.  Concluindo o quadro feminino dentro do sistema prisional, entre as 37,8 mil detentas, 47,3% são jovens entre 18 e 29 anos (17.879) , 51,9% possuem o ensino fundamental incompleto (19.618) e 60,1% são solteiras (22.717).

Em termos históricos, a população negra brasileira sempre tentou dialogar com as esferas do poder para o estabelecimento de uma política de tratamento igualitário e justo. Porém, segundo o professor Felipe Freitas, as inúmeras tentativas de aproximação sempre foram rechaçadas. “A relação do povo negro com a sociedade brasileira sempre foi uma relação de muita generosidade. A comunidade negra sempre ofereceu ao país o melhor: o melhor jogador de futebol; as vozes mais belas; as melhores propostas de políticas. A gente oferece ao Brasil pessoas como Benedita da Silva e Marielle Franco e a resposta da sociedade brasileira a estas ofertas generosas  são  tiros na cabeça e o massacre de crianças dormindo. Temos apostado no diálogo e a resposta do estado tem sido s violência.”, afirma. 

Os caminhos da justiça racial no Brasil, como demonstram as estatísticas, os dados históricos e as falas acima são muito sinuosos. A solução está no enfrentamento que a sociedade brasileira como um todo tem que promover.  O caminho passa pela luta. Mas a luta astuta. A luta inteligente, onde ações e palavras são os golpes mais contundentes contra o poder do racismo estruturado.

17 de maio: Dia Internacional Contra a LGBTQIA+fobia

Segundo o dicionário, a palavra “Fobia” tem dois significados, o primeiro vem de “medo exagerado”, o segundo está altamente atrelado a “falta de tolerância e aversão”. Hoje, dia 17 de maio, celebramos o Dia Internacional contra a LGBTQIA+fobia. A data é um marco, foi escolhida porque, neste dia, em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o “homossexualismo” da categoria de transtornos mentais. Passados 31 anos,  lésbicas, gays, travestis, transgeneres e outros grupos cuja identidade se constrói a partir das sexualidades, seguem reivindicando o direito de ter direitos.  O Brasil segue sendo o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo.

Um estudo de Isabella Vitral Pinto e colaboradores de diferentes instituições de ensino e pesquisa, membros de grupos temáticos da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), e funcionários do Ministério da Saúde, mostra que entre 2015 e 2017, foram registradas 24.564 notificações de violências contra a população LGBTQIA+ no Brasil, o que resulta, em média, quase uma notificação por hora, sendo a violência física equivalente a 75% dos casos. O mesmo estudo destaca que 50% das vítimas eram negras, destacando-se, entre elas, um elevado número de  mulheres lésbicas e mulheres trans.

Falando ainda de pessoas trans, estudo realizado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), em 2019, registrou naquele ano 124 assassinatos no Brasil. Do total de vítimas, 121 eram travestis e mulheres trans e outros 3 foram identificados como homens transgênero. Dessas vítimas, 82% eram negras. A Antra afirma em relatório que o perfilamento racial da violência contra pessoas trans se dá sob diversas formas e em diferentes contextos regionais.

Há 31 anos o “homossexualismo” foi retirado da categoria de transtornos mentais e isso é uma vitória, contudo, a transexualidade só foi retirada da mesma categoria em 2019.  

A própria ONU começou a se manifestar a favor dos direitos das pessoas LGBTQIA+ tardiamente. Assuntos como a inclusão de pessoas no mercado de trabalho, só foram discutidos pela organização no ano de 2010, quando do lançamento  da iniciativa “Construindo igualdade de oportunidades no mundo do trabalho combatendo a homo-lesbo-transfobia”, que se propôs a identificar situações de estigma e de discriminação no ambiente corporativo. Embora a iniciativa seja de suma importância, a inclusão no mercado formal ainda é um desafio.  Dados apresentados pela Antra sobre violência e morte contra transexuais, revelam que 67% dos assassinatos foram cometidos contra mulheres trans prostitutas e 64% dos casos aconteceram na rua, no exercício do trabalho informal.

Em quase uma década de atuação, o Fundo Baobá para Equidade já apoiou projetos e iniciativas de pessoas e organizações LGBTQIA+, como é o caso do Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria, fundado em 2002, na Paraíba, com o objetivo de combater a violência e o preconceito contra essas mulheres. Apoiadas no Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas: Marielle Franco, em 2019, o grupo lançou o projeto “Equidade sim! Racismo não!” que impulsionou e fortaleceu as lideranças internas, especialmente neste período de pandemia, em que as atividades se concentraram no mundo virtual: “O surgimento do Maria Quitéria é porque precisávamos de iniciativas que nos representassem além do HIV/Aids e que resgatasse nossa cidadania, promovendo a autoestima dessas mulheres”, revela Cryss Pereira, presidente do grupo, que afirma o avanço do grupo após o apoio do Fundo Baobá: “Visualizamos um avanço na disseminação de informações on-line, um maior envolvimento quanto às denúncias e quanto à propagação de postagens encorajadoras e empoderadoras para as mulheres”, completa.

Que neste dia de luta por direitos, possamos lembrar que amar em tempos de ódio é um ato revolucionário e que o Fundo Baobá, com a sua premissa de promover a equidade racial em todo território nacional, contribua para a construção de uma sociedade onde as vidas da população LGBTQIA+, as vidas negras e todas as vidas importem. 

10 Anos do Baobá: cineasta brasileiro e executiva mexicana têm passado e presente ligados à criação do Fundo Baobá

Neste ano de 2021, mais precisamente no mês de outubro, o Fundo Baobá para Equidade Racial completa 10 anos de existência. Nesse período, está consolidado como o maior fundo para promoção da equidade racial para a população negra no Brasil. O Baobá trabalha com captação de recursos oriundos da filantropia e, através de seus editais, destina esses recursos  para organizações e lideranças negras que implementam ações contra o racismo e promovem a justiça social. 

Como um fundo que promove a justiça social, o Baobá tem como diretrizes o trabalho com ética e transparência, baseado em boas práticas de gestão. A busca de mecanismos de enfrentamento ao racismo e ações pela equidade racial para o povo negro brasileiro colocam o Fundo Baobá como referência no segmento da luta contra a desigualdade social no Brasil. 

Ao longo deste ano, vamos apresentar aqui as pessoas que fizeram e fazem a história do Fundo Baobá. Todas têm importância ímpar no histórico de fundação do fundo. Algumas delas sequer se conhecem. É o caso da mexicana Alejandra Garduno Martinez e do brasileiro Joel Zito Araújo. Alejandra está vivendo e trabalhando em Nova York, nos Estados Unidos. Joel Zito tem como base a cidade do Rio de Janeiro, onde trabalha e mora. 

O Fundo Baobá atua nas mais diferentes frentes. Então, para a sua formação foram chamadas pessoas das mais distintas vertentes de trabalho. Joel Zito Araújo, por exemplo, tem seu nome ligado à produção cultural do audiovisual. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado em Rádio, TV e Cinema pela Universidade do Texas em Austin (EUA), Joel tem como obras principais  A Negação do Brasil, As  Filhas do Vento e Meu Amigo Fela. Alejandra Garduno Martinez tem formação voltada para a área de negócios, com graduação em Relações Internacionais e mestrado em  Negócios Internacionais pela Universidade Nacional Autônoma do México. Ela trabalha para a Fundação Kellogg, principal apoiadora do Baobá. 

Joel Zito iniciou seu contato com o Fundo Baobá após um convite feito pelo antropólogo Athayde Motta e hoje faz parte da governança como membro do Conselho Deliberativo. Para ele, fazer parte do Baobá é promover a conscientização do jovem povo negro nas questões relativas ao combate ao racismo e busca pela equidade racial.  “Creio que o grande demonstrativo disto é o rejuvenescimento da militância negra. Hoje temos milhares de jovens negros combatendo o racismo em centenas de frentes”, afirmou.  

Alejandra Garduno, analisando os dez anos de surgimento do Baobá, concorda que houve muitos avanços na questão do combate às desigualdades no Brasil. “Definitivamente, fizemos progressos. A história da resistência ao autoritarismo, a abertura do espaço cívico, hoje muito ameaçada, a existência de fundos como o Baobá nos fala das conquistas e que hoje a conversa é diferente do que era há 10 anos”, afirmou. 

Alejandra Garduno, Diretora da Fundação Kellogg para América Latina

Fazendo uma volta no tempo, Alejandra relembra desafios enfrentados para a formação do Baobá. E quando há desafios no caminho de um sonho a ser alcançado, o negócio é enfrentá-los. “Existiram desafios de diferentes tipos. Há alguns anos, consolidar a estrutura da organização e garantir seu funcionamento foi um deles. Já hoje, são diferentes. Por exemplo, enfrentar o desafio de fazer investimentos coerentes com sua missão, fazer investimentos de grande valor nas comunidades e evoluir de acordo com as necessidades que surgem também em um ambiente social e financeiro instável”, disse a executiva da Fundação Kellogg. Para Joel, o maior desafio ainda está por vir. “Creio que a maior barreira é a falta de cultura de filantropia na  elite econômica brasileira. Não temos aqui o que vemos nos Estados Unidos, por exemplo: universidades com bibliotecas, centros de pesquisa, centros culturais com investimento particular de membros da elite norte-americana. Faz parte da cultura de elite de lá, “ostentar” o seu apoio a causas educacionais, de saúde, e em metas para diminuir as desigualdades sociais. A elite brasileira, que tanto copia os EUA, ignora tudo isto. Por outro lado também, a questão racial é ainda um tabu para 99% dos potenciais doadores para um fundo como o Baobá”, diz. 

Joel Zito Araújo, Cineasta e doutor em Ciências da Comunicação

A Fundação Kellogg (WK Kellogg Foundation) é a organização que propiciou a existência  do Fundo Baobá. O Fundo Baobá se constitui como o legado de trabalho e investimentos da WKKF no Brasil ao longo de décadas. Desde a sua criação, em 2011, o Fundo responde à demanda do movimento negro por ser uma instituição cuja atribuição exclusiva é apoiar iniciativas negras, ao mesmo tempo que é consistente com o compromisso da WKKF em promover a equidade racial e a saúde nas diferentes comunidades. Até 2026 a WKKF tem o compromisso de investir U$25 milhões no fundo patrimonial, criado para garantir a sustentabilidade e autonomia do Baobá. Importante destacar que, aos valores mobilizados pelo Fundo Baobá em moeda nacional a WKKF doa 3 vezes este valor para o fundo patrimonial. Quando a captação é em moeda estrangeira, a Fundação Kellog coloca duas vezes aquele valor no fundo patrimonial.

14 de maio e a sobrevivência do negro

“No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”

(14 de Maio – Lazzo Matumbi)

O trecho acima é da canção 14 de Maio, de autoria do cantor, compositor e ativista baiano Lazzo Matumbi. A letra traça um panorama do que aconteceu com a população negra um dia depois do 13 de maio de 1888, o dia em que foi assinada a Lei Áurea, que concedia a libertação dos escravos em território nacional.

Nessa data, em torno de 750 mil negros e negras foram mantidos fora da competência do Estado, sem qualquer tipo de amparo legal ou medida afirmativa por parte do Estado e das próprias pessoas que detinham o poder, esse sustentado pelo trabalho, até então imprescindível, desses negros e negras. Sendo assim, o dia 14 de maio se tornou um dia de reflexão para a população negra ex-escravizada, que não tinha o que comer, o que vestir e onde morar, como canta Lazzo Matumbi. A cultura negra continuou a ser marginalizada e leis foram criadas para proibir sua exibição em público. Dois anos depois de a  Lei Áurea entrar em vigor, a Lei dos Vadios e Capoeiragem, de 1890, determinava que pessoas maiores de 14 anos que não trabalhavam e ofendessem “a moral e os bons costumes”  poderiam ser detidas. Dentro da mesma lei havia um decreto que tornava crime a prática da capoeira e de rodas de samba em ruas e praças públicas, considerando as duas manifestações artísticas uma “perturbação social”. 

Se Lazzo Matumbi canta que no dia 14 de maio o negro “subiu a favela pensando em um dia descer”, realmente, como completa a letra, ele nunca desceu. Não desceu por falta de políticas públicas que reintegrassem o negro, já não escravizado,  à sociedade. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o perfil da população das principais favelas do país, existe a predominância da população negra na periferia. O estudo mostra que 40,1% das casas são chefiadas por homens negros e 26% por mulheres negras, contra 21,3% por homens brancos e 11,7% por mulheres brancas. Os dados da Rede Nossa São Paulo, apresentados em 2019, mostram que 32% da população da cidade de São Paulo se identificam como negros, mas em bairros periféricos como o Jardim Ângela, na zona sul da cidade, a concentração dessa população chega a 60%. Em outros distritos da capital, como Capão Redondo, Parelheiros, Grajaú, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, a população negra chega a 56%. Na região considerada nobre da cidade, no bairro de Moema, por exemplo, apenas 5,82% se autodeclaram negros.

A não descida do negro também está relacionada com a política de segurança pública higienista que enxerga a população preta periférica como inimiga e pratica o extermínio sem culpa alguma, como aconteceu na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, na última semana. Para a jornalista, escritora e doutoranda em direitos humanos Maíra Brito, a polícia agir dessa forma com a população negra periférica é herança do período escravagista: “O historiador Luiz Antonio Simas explicou a razão da polícia assassinar civis, considerando que a função da instituição era defender propriedade de terras e seus donos – algo que acontece ainda no século 21. Ou seja, o problema das polícias não é ter dado errado, mas, sim, ter dado certo até hoje”, afirma.

O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão. Antes do dia 13 de maio, inúmeros protagonistas negros assumiram a luta abolicionista e atuaram pelo fim da escravidão do país, como Luís Gama (1830-1822), que nasceu livre e foi vendido como escravo pelo próprio pai. Ele foi alfabetizado aos 17 anos, conseguiu a sua própria alforria judicialmente, tornou-se advogado e passou a atuar como defensor dos próprios escravos. Ao lado de Gama, nomes como José do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, entre outros, reforçaram a luta abolicionista, muito antes da assinatura da Lei Áurea. Mas um epistemicídio apagou esses nomes da história do nosso país, tirando qualquer tipo de protagonismo negro diante do feito da abolição da escravatura.

A historiadora Flaviane Ribeiro Nascimento, integrante da Rede de Historiadorxs Negrxs, em seu artigo O trânsito para a liberdade e a precarização do trabalho livre no final do século XIX, publicado pelo site do Instituto Geledés da Mulher Negra, explica a precarização que levou ao processo de abolição, muito diferente da suposta compaixão que a história nos fez acreditar que a Princesa Isabel teve dos negros escravizados por três séculos: “A abolição vai acontecer apenas no final do século XIX, respaldada por legisladores, depois de um conjunto de normas jurídicas que pretendiam uma ‘transição’ para o trabalho livre mediante a indenização das elites escravistas, do controle e da disciplina dessas trabalhadoras e trabalhadores que passariam a ter liberdade para negociar a força de trabalho”. Flaviane cita também outra historiadora, Wlamyra Albuquerque, para explicar o porquê da demora da abolição da escravatura em nosso país: “A resistência à abolição da escravidão foi justificada pela dependência do trabalho cativo e pela racialização do comportamento em liberdade dessas mulheres e desses homens, que seria marcada por insubordinação, desordens e perversão moral”.

É importante lembrar que antes da assinatura da Lei Áurea, o país teve outras duas leis abolicionistas assinadas: a Lei do Sexagenário, assinada no dia 28 de setembro de 1885, que libertava escravos com mais de 60 anos e considerada, por muitos, a grande “gargalhada nacional” pelo fato de praticamente nenhum escravo conseguir chegar vivo aos 60 anos. E antes, em 1871, houve a Lei do Ventre Livre, determinando que filhos de mães escravizadas fossem libertos – como se recém nascidos tivessem autonomia para seguirem suas vidas longe de suas mães escravizadas.

Completando 10 anos em 2021, o Fundo Baobá tem como missão promover a equidade racial em nosso país, investindo em iniciativas de organizações, grupos e coletivos negros, alinhados aos seus  eixos programáticos prioritários, entre eles o Viver com Dignidade. Se a escravidão retirou a dignidade do povo negro e, mesmo após a abolição, ele se viu sem trabalho, sem casa, sem saúde, sem direitos, levando a senzala na alma, como diz a canção de Lazzo Matumbi, o Fundo Baobá existe para transformar realidades, promover resistência, resiliência e reiterar que a sociedade brasileira não será uma sociedade justa, enquanto não houver liberdade e equidade racial para a população negra.