Dia da Trabalhadora Doméstica, celebrar a classe e reinvidicar melhorias

No dia 27 de abril é celebrado o Dia da trabalhadora Doméstica. No Brasil, um grande símbolo histórico da classe é Laudelina de Campos Melo. Nascida no dia 12 de outubro de 1904, na cidade mineira de Poços de Caldas, começou a trabalhar aos sete anos de idade como empregada doméstica. Ao longo de sua trajetória ela combateu a discriminação da sociedade em relação às empregadas domésticas, sempre exigindo melhor remuneração e igualdade de direitos sociais. Com 20 anos de idade, Laudelina chegou na cidade de Santos (SP), entrando para a Frente Negra Brasileira e criando, no ano de 1936, a Associação das Empregadas Domésticas do Brasil, que foi fechada pelo Estado Novo em 1942. Em 1961, ela fundou a Associação das Empregadas Domésticas, na cidade de Campinas (SP), a sua nova morada. A sua luta inspira a criação de associações em apoio às trabalhadoras domésticas no Rio de Janeiro e em São Paulo. A atuação de Laudelina foi fundamental na década de 1970 para a categoria conquistar o direito à carteira de trabalho e à previdência social. Em 1982, ela auxiliou a reestruturação da associação de Campinas, possibilitando a transformação da associação em sindicato, no dia 20 de novembro de 1988, dia da Consciência Negra. Laudelina de Campos Melo faleceu no dia 12 de maio de 1991, aos 86 anos, deixando sua casa para o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Campinas.

Laudelina de Campos Melo

A data de hoje é um sinal de resistência e luta para todos trabalhadores domésticos no país, considerando as situações nos quais muitos se encontram. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), no Brasil tem 6.158 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 92% são mulheres e 3,9 milhões são negras. No ano de 2015 foi sancionada a lei complementar que regula a PEC das domésticas, que apresentaria benefícios para a categoria, como o recolhimento obrigatório do FGTS por parte do empregador, seguro-desemprego, seguro contra acidentes de trabalho e indenização em caso de dispensa sem justa causa. Além de salário mínimo, jornada de trabalho, horário de almoço, férias e carteira assinada.

Porém, após seis anos da medida ser sancionada, os dados do IBGE mostram pouquíssimos avanços em termos de efetivação de direitos para a categoria. Neste período, apenas 32% das trabalhadoras domésticas possuem carteira de trabalho assinada. No Brasil ainda lidamos com a realidade do trabalho doméstico infantil. Em 2015, foram contabilizadas 156 mil crianças nessas condições, e trazendo esses números para o recorte de gênero e raça, a questão torna-se ainda mais desigual, considerando que 88,7% das trabalhadoras domésticas eram meninas e 71% eram negras.

No contexto da pandemia da covid-19, a categoria das empregadas domésticas foi uma das que não teve direito a um isolamento remunerado, não por acaso o primeiro caso de morte por covid-19 confirmado pelo Ministério da Saúde foi de uma diarista. No início da pandemia, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) promoveu a campanha “Cuida de Quem te Cuida”. A ação consistia em estimular os empregadores a deixarem as domésticas nas casas das famílias delas, com salários. E em casos onde não seria possível, como quando os empregadores trabalham no setor de saúde, por exemplo, a federação estimulou o transporte via aplicativos custeado pelo empregador. No dia 10 de abril, uma reportagem do jornal Correio 24 Horas, revelou que o  Sindicato de Empregadas Domésticas da Bahia recebeu pedido de socorro de 28 trabalhadoras que seguem por um ano em isolamento obrigatório, na casa dos patrões, vistas como ameaça de contaminação. Desses pedidos, 92% são de mulheres negras, moradoras de periferias e chefes de família. Diante desse fato, a presidente da FENATRAD, Luiza Batista, emitiu uma nota em nome da federação, protestando contra a ilegalidade do confinamento obrigatório de trabalhadoras domésticas, afirmando: “Se a trabalhadora não fez um contrato, onde essa assinou aceitando pernoitar no local de trabalho, ela não é obrigada a ficar. O empregador não pode determinar tal conduta”.

Em 2020, o Brasil ficou abalado com a trajetória de Mirtes Souza, a empregada doméstica de Pernambuco, que saiu para levar os cachorros dos patrões para passear e deixou o filho, Miguel, no apartamento sob os cuidados da  patroa e primeira-dama da cidade de Tamandaré (PE), Sari Corte Real. A criança foi direcionada por Sari até o elevador para que, sozinho, fosse ao encontro da mãe. A patroa, que mora no 5o andar, acionou a tecla do elevador que dá acesso à cobertura. Miguel parou no 9º andar, escalou um vão e alcançou uma unidade condensadora de ar, se desequilibrou e caiu do prédio, morrendo instantaneamente, aos olhos da mãe. A chocante história de Mirtes Souza foi contada pelas jornalistas Brenda Gomes e Thaís Vieira na matéria “Mirtes Souza e Danúbia Silva: Mães entre a saudade e a revolta”, que compõe o eBook “Narrativas Afirmativas em Tempos de Pandemia”, organizado pela Revista Afirmativa, em parceria com o Lab Afirmativa de Jornalismo, que narra as histórias e as dificuldades de outras trabalhadoras domésticas negras, e de trabalhadores de outras categorias, durante o período pandêmico.

Hoje, a FENATRAD reivindica prioridade para as trabalhadoras domésticas no Plano Nacional de Vacinação. O PL 1011/2020, tramita na Câmara dos Deputados e incluiu a categoria ao lado de outras 16 profissões consideradas essenciais e que podem ser consideradas no grupo prioritário, como caminhoneiros, trabalhadores de transporte coletivo rodoviário e metroviário, profissionais de limpeza pública, entre outros. 

Que possamos sempre lembrar dos dois pilares que sustaram a luta de Laudelina de Campos Melo: Um projeto voltado para a alfabetização das trabalhadoras domésticas, pois ela considerava que seria o primeiro passo para conscientização e entendimento da legislação trabalhista e consequentemente reivindicação dos direitos da classe; e a realização de atividades que tinham como objetivo estimular a solidariedade entre as trabalhadoras. Que essa data seja de luta, memória, resistência e solidariedade para todas as trabalhadoras domésticas do nosso país.

Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: conquistas coletivas e pessoais marcam o cotidiano de apoiadas no Norte do Brasil

A criação e implantação do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco tem feito emergir importantes lideranças femininas por todo o país. Na região norte do Brasil o fortalecimento dessas lideranças tem sido fundamental  na batalha pela conquista e proteção dos direitos das mulheres. A integração entre elas no campo das práticas e das ideias, na disseminação de informações nos territórios urbanos e no campo têm sido fundamentais para a difusão do conhecimento. 

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estado do Pará tem 7,8 milhões de habitantes. A população negra, que identifica os autodeclarados pardos e pretos, equivale a 76,5% do total, o correspondente a 5,9 milhões de pessoas.

Olhando pelo recorte do acesso aos cursos superiores, 156 mil pessoas têm ou estão fazendo um curso superior. Dessas, 95 mil são mulheres. Negras, 82 mil. Daí a importância de um programa como esse, que apoia o acesso à formação e  à boa qualificação.   

Conversamos com duas apoiadas pelo Programa para saber como a participação tem impactado suas vidas e impactado as vidas de muitas outras mulheres que estão ao redor delas. 

Dandara Rudsan Sousa de Oliveira é mulher trans. Com formação em Direito e especialização em Diálogos e Mediação de Conflitos, ela atua politicamente na formação e defesa de direitos para a Rede de Mulheres Negras Amazônicas, além de ser a coordenadora do Núcleo de Mobilização de Recursos dos Movimentos Negros e LGBTQI+ unificados em Altamira, cidade do estado do Pará. 

Dandara Rudsan Sousa de Oliveira, formada em Direito e com especialização em Diálogos e Mediação de Conflitos, atua na Rede de Mulheres Negras Amazônicas e no Núcleo de Mobilização de Recursos dos Movimentos Negros e LGBTQI+ unificados em Altamira, no Pará

Girlian Silva de Sousa tem graduação em Ciências Econômicas, doutorado em Desenvolvimento Socioambiental e pós-graduação em Influência Digital, curso que foi financiado pelo Fundo Baobá através do Programa de Aceleração. 

As conquistas pessoais de ambas impactam a vida de um grande número de mulheres no norte do país. “Ao longo de nosso trabalho conjunto, temos conseguido grandes avanços nas articulações com órgãos de Defesa de Direitos, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. Conseguimos trazer para a luta mulheres negras e LGBTQIA+ que sobrevivem em regiões isoladas ao longo do rio Xingu e da rodovia Transamazônica, assim como articular nossas pautas com as lutas regionais e nacionais. O nosso principal ganho tem sido a união entre mulheres cisgêneras e transgêneras na luta pela defesa da terra e do território, contra o racismo ambiental e todos os tipos de violência”, afirma Dandara Rudsan. 

Já Girlian, baiana da cidade de Itabuna, vivendo no Pará há oito anos e trabalhando em Santarém. Sua atuação fez com que a luta autônoma de algumas mulheres pela reivindicação de direitos ganhasse mais poder com a união de forças. “Sou integrante do Movimento das Mulheres Negras de Santarém. Trata-se de um grupo de mulheres que já exercia o ativismo, só que de forma autônoma. Após cruzarmos nossos caminhos em algumas ações, decidimos nos juntar. São mulheres  com diferentes tipos de formação e que atuam em várias áreas. Temos Promotoras Públicas, Pedagogas, Psicólogas, Antropólogas e Quilombolas”, diz. 

Girlian Silva de Sousa, graduada em Ciências Econômicas, doutorado em Desenvolvimento Socioambiental e pós-graduação em Influência Digital

A pandemia da Covid-19 e os percalços impostos às populações de todo o Brasil têm dificultado um pouco a realização de algumas metas. Mas dificultar não é impedir. Elas são resilientes. “Antes da pandemia, realizamos várias ações de combate ao racismo, em parceria com o Ministério Público e junto a escolas de cidades da região do Baixo Amazonas. Atualmente, com o financiamento do Fundo Baobá, estamos organizando a publicação de um livro sobre mulheres negras, escrito por mulheres negras cis e trans da Amazônia”, afirma a economista Girlian Sousa. 

Girlian Sousa passou por problemas de ordem pessoal. O pai dela sofreu um infarto e o fato de estar sendo financiada pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco propiciou a ela se deslocar de Santarém até Itabuna, na Bahia, e permanecer com ele. “O financiamento tem sido fundamental durante esse período muito difícil, que tem sido a pandemia. Me permitiu socorrer a minha família, me permitiu conquistar mais uma formação, que será importantíssima para a minha carreira profissional. Além disso, também tem sido fundamental para o aperfeiçoamento da minha prática ativista. Tenho aprendido muito. O projeto me promoveu um suporte multidimensional que tem me permitido enfrentar esse momento”, declara. 

Para Dandara Rudsan estar no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco abriu importantes portas.  “Passei a integrar o Grupo de Trabalho Interinstitucional de Enfrentamento ao Racismo Ambiental da Defensoria Pública do Estado do Pará. O mandato é de 4 anos. Estou professora convidada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) no curso de especialização em Relações Étnico-Raciais e Gênero. Também sou finalista no IX Prêmio República do Ministério Público Federal (MPF) na categoria Responsabilidade Social. Fui indicada para o processo seletivo de Bolsistas 2021 da Fundação Ford (que está em curso). Se tudo der certo, em breve estarei em mais este espaço”, afirma.

O Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco é uma iniciativa do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, Instituto Ibirapitanga, Fundação Ford e Open Society Foundations, cujo objetivo é ampliar a presença e participação de mulheres negras em espaços de poder e tomada de decisão. .

10 Anos do Baobá: Antes de ser batizado oficialmente, fundo dedicado à equidade racial era chamado de “Mecanismo”

Neste ano de 2021, mais precisamente no mês de outubro, o Fundo Baobá para Equidade Racial completa 10 anos de existência. Nesse período, constitui-se no único  fundo exclusivo para promoção da equidade racial para a população negra no Brasil. O Baobá trabalha com captação de recursos oriundos da filantropia e, através de seus editais, destina esses recursos para organizações, grupos, coletivos e lideranças negras que lutam contra o racismo e promovem a justiça social. 

Apesar da concentração de riqueza e dos impactos negativos acumulados, expressos em alguns dos piores indicadores socioeconômicos do país, a potencialidade criativa e a capacidade de superação, conferem à região grande potencialidade. Se os investimentos corretos forem feitos nos estados do nordeste, a equidade racial para a população negra poderá deixar de ser uma utopia. 

E é do nordeste a dupla que abre essa série que irá até outubro mostrando quem trabalhou e trabalha pela consolidação do Fundo Baobá para Equidade Racial como um dos protagonistas na luta contra o racismo e pela busca da equidade racial no Brasil. São eles a mestranda em Gestão Social e Desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tricia Calmon, e o historiador com pós-graduação em Política e Gestão Cultural, Lindivaldo Leite Júnior. 

Tricia Calmon é baiana e Lindivaldo Júnior, pernambucano. Ambos se lembram do forte envolvimento com a ideia de que algo fosse constituído para que o povo preto nordestino fosse apoiado. “Fui convidado a fazer um trabalho de identificação de lideranças negras em Pernambuco que pudessem contribuir com um debate sobre a criação de algo que fosse para o enfrentamento ao racismo no Brasil. Não havia um nome, então, chamávamos de  mecanismo”, afirma Lindivaldo. “Eu era membro do núcleo de estudantes negros da Bahia e militante do Movimento Negro. O ano era 2008. O board da Fundação Kellogg estava visitando o Brasil, pois já organizavam a saída do país e eram muito questionados sobre temas relativos  à equidade racial”, diz Tricia. 

Lindivaldo Leite Júnior, historiador com pós-graduação em Política e Gestão Cultural

A questão de como organizar o mecanismo foi ganhando corpo. Mas Bahia e Pernambuco não poderiam ser apenas os dois estados envolvidos, entre os nove que compõem a região nordeste. “Fizemos uma caravana. Durou um mês e meio e acontecia nos finais de semana. Visitamos vários estados do Nordeste, com figuras muito representativas como Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Magno Cruz, Lurdinha Siqueira, Luiz Alberto, todas as nossas lideranças. Acho que isso ocorreu em 2009”, relembra Tricia Calmon. Para Lindivaldo Júnior, a lembrança é da riqueza na troca de experiências: “Participei de um conjunto de diálogos sobre uma metodologia específica a ser utilizada para conversar com lideranças. Assim, realizamos encontros com grupos diferentes de lideranças negras: jovens,  veteranos, acadêmicos, gestores, quilombolas e grupos culturais”, afirma. 

O trabalho coordenado pelo pessoal do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceafro), da UFBA, foi ganhando corpo. Mas, como qualquer projeto envolvendo pessoas, com cada um tendo seu tipo de pensamento formador a respeito de um tema, as disputas acabaram aparecendo. “A proposta de surgimento do Baobá era vista como uma concorrência e não como colaboradora da agenda que havia sido proposta pela Fundação Kellogg. E isso não era dito de forma muito clara. Construir esse lugar de um fundo novo, com pauta específica e inédita, contar com todos esses parceiros e construir uma imagem de colaboração, e não de concorrência interna, foi um dos grandes desafios”, revela Calmon. No entender de Lindivaldo Júnior, a construção das relações internacionais foi o principal entrave do começo. “Havia uma dificuldade para compreender como se relacionar com órgãos internacionais de financiamento”, diz. A questão do trabalho com filantropia, incipiente no Brasil, também criava dificuldades: “Foi necessária a composição de um grupo de confiança para tratar de um tema ainda delicado junto ao movimento negro”, afirma Júnior. 

Tricia Calmon, cientista social e mestranda em Gestão Social e Desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

As dificuldades foram sendo vencidas com muitos quilômetros rodados pelo nordeste,  muita conversa e a prática de estratégias de convencimento. “São 10 anos de Baobá constituído. O Baobá se tornou e é uma organização única. O único fundo do Brasil de financiamento exclusivo de projetos e causas raciais. Sem subterfúgios. Isso se tornou realidade a partir de uma carteira de projetos interessantes, muito importantes, com boa flexibilidade e diálogo com organizações do Brasil inteiro”, declara Tricia Calmon. Lindivaldo Júnior enxerga o Baobá como projeto vitorioso: O Baobá ampliou sua relação com instituições financiadoras; manteve-se articulado com outros fundos de apoio, estruturou uma equipe e cumpriu com os compromissos assumidos com a Fundação Kellogg”, diz. 

Ainda há mais a conquistar, segundo Tricia Calmon: “O nosso sonho é que o Baobá alcance o que outras organizações negras não conseguem alcançar. Esteja onde outras organizações negras não conseguem estar. Financie autonomamente as pautas. E que o Baobá esteja na boca e nas mentes de todas as organizações negras brasileiras como um catalisador político forte e importante. O Baobá não é isso ainda. As pessoas não conhecem o Baobá como deveriam, ainda! Mas o Baobá está num caminho muito bom nesse sentido”.

As culturas no cenário dos exames seletivos

Para se sair bem em um exame vestibular é importante entender que os conteúdos importantes também estão fora dos livros

Por Eduarda Nunes, do Perifaconnection, em parceria com o Fundo Baobá para Equidade Racial

Dentre as dicas implacáveis para fazer uma boa prova de vestibular essa está sempre lá: ler muito, e sobre tudo. Em se tratando do Brasil, um país que tem perdido leitores e que tem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como principal processo seletivo de ingresso nas  universidades públicas e privadas, esse não poderia ser um conselho melhor.

Segundo a pesquisa Retratos do Brasil, a única que faz uma avaliação à nível nacional dos hábitos de leituras dos brasileiros, entre 2015 e 2019 o País perdeu 4,6 milhões de leitores, ou seja,  pessoas que não conseguiram terminar de ler um livro por ano. A cultura da leitura tem sido enfraquecida, e por mais que ela seja uma peça chave para obtenção de um bom resultado nos exames, existem outras culturas que também preparam o vestibulando para a prova.

Sociologicamente, o conceito de cultura é muito amplo. É o que determinados grupos vão comer, vestir, criar e consumir. “A cultura é tudo”, como afirma Lívia Estanislau, uma das selecionadas do “Já É”.

Por meio dela são tecidos padrões comportamentais e imaginários sociais diversos. E é baseado em muitas das culturas existentes que é elaborada uma prova como o Enem. As 90 questões objetivas são embaladas em contextos às vezes inimagináveis.

Como em 2018, quando fez brilhar em uma das questões o Pajubá. A linguagem desenvolvida e utilizada pela população LGBTQIA+ foi apresentada a milhões de jovens que ainda não faziam ideia da  existência do dialeto. O Enem é uma prova que demonstra o quanto é importante estar atento também ao que está fora dos livros didáticos.

Lívia Estanislau, 19 anos

A escolha de Lívia pelo curso da faculdade, por exemplo, não veio dos assuntos tratados na escola, mas do que aprendeu e viveu dentro de casa. A jovem vem de uma família que tem elo no cuidado e na proteção uns com os outros.

Foi assim que surgiu seu interesse por estudar a mente humana. Desde criança ela convive com a mãe e o irmão que lidam com a depressão. Psicologia é sua primeira opção.

Erick dos Santos, de 18 anos, que cresceu bebendo da cultura do hip-hop através de sua mãe – uma artista da cena -, além de estar dando início à sua jornada de artista, também integra conquistas coletivas que levaram ao seus objetivos de vida.

“As culturas em que a gente cresce que faz a gente se interessar por determinadas coisas sim e outras não”, conta o jovem.

Tanto Lívia quanto Érick são estudantes que não tiveram grandes entraves nos estudos. São alunos medianos, que cultivaram boas relações com os professores e outros alunos durante toda a trajetória escolar.

Erick dos Santos, 18 anos

E mesmo assim, algumas das principais escolhas que estão prestes a fazer tiveram as suas bases criadas quase que independente desse contexto, dentro de museus e outros eventos culturais. Também devido ao contexto familiar em que os jovens estão inseridos. É importante estar atento à bagagem cultural para compreender quais são os caminhos, decisões e interpretações que ela pode induzir.

 

Dia do Índio, o ressignificar de uma data

O dia 19 de abril é conhecido no Brasil todo como o “Dia do Índio”, entretanto a origem dessa celebração remete a um protesto realizado pelos povos indígenas do continente americano na década de 1940, quando um congresso organizado no México se propôs a debater medidas para proteger os índios no território. O “1º Congresso Indigenista Interamericano”, realizado em Patzcuaro, no México, aconteceu entre os dias 14 e 24 de abril de 1940. Na ocasião, os representantes indígenas haviam se negado a participar do evento, achando que não teriam voz e representatividade nas reuniões, sendo estas comandadas por líderes políticos dos países participantes. Os índios, então, fizeram um boicote nos primeiros dias, mas, justamente no dia 19 de abril, decidiram aparecer no congresso para tomar parte nas discussões. Foi por conta disso que a data escolhida para celebrar o dia do índio acabou sendo essa.

No Brasil, o Dia do Índio entrou no calendário oficial nacional no ano de 1943. Atualmente encontramos no território brasileiro 256 povos indígenas, falantes de mais de 150 línguas diferentes. A população indígena no Brasil soma, segundo o Censo IBGE 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. Especificamente sobre questão territorial indígena, há no país 7 mil localidades distribuídas em 827 municípios, desse total, 632 são terras oficialmente delimitadas. Há ainda 5.494 agrupamentos indígenas, 4.648 dentro de terras indígenas e 846 fora desses territórios.

Os problemas enfrentados pelos povos indígenas ainda reverberam nos tempos atuais. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) a principal violação está  relacionada à invasão de terras. O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, traz dados alarmantes que demonstram que a intensificação das expropriações de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem e no loteamento, consolida-se de forma rápida e agressiva em todo o território nacional, causando uma destruição inestimável.

Entre os dados apresentados no relatório, em relação ao aumento de casos de violências sistematizadas contra os povos indígenas, a categoria “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” que no ano de 2018 teve 109 casos registrados, saltou para 256 casos em 2019. Nessa categoria entram as queimadas que devastaram a Amazônia e o Cerrado em 2019, com ampla repercussão internacional. 

Infelizmente, os conflitos territoriais não são os únicos fatores que aumentam a vulnerabilidade desta parte da população. Em um ano o registro de  ameaças de morte, aumentaram de 8 para 33 e quando o assunto é lesões corporais dolosas, o número  quase triplicou, passando de 5 para 13.

No ano de 2021, a luta indígena por sobrevivência ganha novos contornos. Com a pandemia da Covid-19 em curso, as comunidades indígenas estão ainda mais expostas ao vírus e vulneráveis ao adoecimento e morte por menos acesso à informações corretas e em linguagem adequada, aos insumos de proteção individual, ao teste diagnóstico, aos serviços e tratamento em tempo adequado. Segundo dados apresentados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em um ano de pandemia, foram 45.858 casos confirmados da doença. Já a estatística apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mostra que houve 1.023 óbitos, considerando também os óbitos de indígenas no contexto urbano.

Povos indígenas, assim como a população quilombola e ribeirinha, foram incluídos no grupo prioritário do plano nacional de vacinação contra a Covid-19. O ministério da saúde divulgou dados de que dos 247 mil indígenas vacinados, 86,8 mil já tomaram a segunda dose. Entretanto, a informação divulgada não vale para todos os estados do país e há contestações da população indígena referente a isso.  

O Fundo Baobá para Equidade Racial lançou no ano passado o edital Doações Emergenciais no contexto da Covid-19, financiando ações de prevenção ao novo coronavírus junto a grupos e comunidades vulneráveis. Na ocasião, iniciativas voltadas para povos indígenas, migrantes, refugiados, além de população negra, em situação de rua, periférica, eram priorizadas.  

Que o Dia do Índio não seja uma data para estereotipar as culturas e as tradições diversas dos muitos povos indígenas presentes no Brasil, mas que seja uma data de reflexão de como tem sido a nossa atuação pela defesa e preservação dos povos originários desse país. 

Desemprego, informalidade, estudos e pandemia

Como os jovens fizeram para driblar o atípico ano de 2020 para alcançar suas metas

Uma geração que cresceu incentivada a ter carteira de trabalho muito jovem vem enfrentando desde 2015 uma profunda crise em suas rendas, mas viu em 2020 o cenário se agravar pela crise sanitária. São Paulo, cidade que é referência nacional em empregos, têm seus jovens empurrados para o desemprego ou informalidade. Com a pandemia da Covid-19 e o fechamento de escolas e cursos, os estudos também ficaram comprometidos.

O coronavírus chegou de forma avassaladora e fez com que milhões de pessoas perdessem os seus empregos. Esse foi o caso de Karine Lopes dos Santos, 21, e moradora da Vila Brasilina, que até o início de 2020 trabalhava na empresa Clearsale Antifraude e se viu na busca por emprego em um dos piores momentos do mercado nos últimos anos. “Foi bastante complicado, porque as empresas estavam demitindo mais que contratando. A gente manda e-mail e não tem resposta, fazia entrevista e não tinha resposta”, desabafa.

Os jovens são os mais afetados pela crise. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD, no terceiro trimestre de 2020 a taxa de desemprego no país era de 14%, mas entre os jovens de 18 a 24 anos esse número mais que dobrou, chegando a 31%. Essa é a maior taxa de desemprego desde que os indicadores começaram a ser medidos em 2012.

O desemprego é historicamente maior entre os jovens, e muitos já vinham enfrentando dificuldades para conseguir entrar no mercado de trabalho. Além dessa dificuldade, outro fato que os jovens observam são os setores que contratam. Segundo a moradora da Vila das Belezas, Ana Julia Melo de Lucas, 18, o mercado de telemarketing segue como um dos poucos que contrata jovens com pouca ou nenhuma experiência.

“Estou em busca do primeiro emprego, o que mais me desanimou nessa busca são os empregos oferecidos para primeira oportunidade. Só oferecem cargos de telemarketing. Isso é muito errado, não deve ser o único setor que abre portas. Tantas vagas deveriam ser abertas para essa primeira oportunidade em outros setores. Ninguém nasce sabendo, precisamos de oportunidade para ter experiência”, diz

Ana Julia Melo de Lucas, 18 anos

Julia também observa que, por conta da pandemia, viu ainda o mercado de telemarketing se inchar de pessoas com experiências anteriores e que perderam seus empregos e cita como problema a questão salarial da função: “Também é muito ruim a pessoa trabalhar o dia inteiro para ganhar mil e pouco, um salário.” O setor de telemarketing cresceu 67% em 2020, segundo relatório do Linkedin.

Todos esses jovens mantinham a rotina de busca de emprego e estudos, mas Joyce Cristina Nogueira, 20, fez um movimento contrário. Após algum tempo fora do mercado, trabalhou como personal shopper na empresa de delivery Rappi, porém decidiu pedir demissão para  focar apenas nos estudos. “Antes eu trabalhava e estudava, mas tinha problema em focar nos estudos, cansaço por conta do trabalho  não conseguia me dedicar a nenhum”, relata.

Joyce Cristina Nogueira, 20 anos

João Pedro Araújo da Silva, 23, mora no Grajaú, onde de vez em quando trabalha com a sua mãe, Margarida Araújo, no brechó que ela tem na comunidade. Por conta da pandemia, o jovem passou a buscar emprego apenas de forma online. “Eu tenho buscado emprego, mas a pandemia dificultou demais e entreguei muito currículo pela internet. Tem uns sites muito bons, tipo o infojob, vagas, linkedin, mas ainda não rolou.”

João Pedro Araújo da Silva, 23 anos

Além das dificuldades na busca por emprego, Karine, Julia, Joyce e João também enfrentaram problemas com os estudos. Em uma realidade em que muitos cursos foram interrompidos e as aulas remotas apresentaram problemas.

Surgiu então para os esses jovens o edital Já É do Fundo Baobá como um grande impulsionador rumo ao sonho da graduação. “Depois que eu vi o meu nome na lista de selecionados no Baobá eu fiquei bem esperançosa e feliz”, comenta Karine.

O Programa Já É dará uma bolsa de estudos em um curso pré-vestibular e custeará as despesas dos jovens contemplados, além de oferecer outras atividades psicossociais e de mentoria com uma pegada antirracista. Um grande passo para ajudar na formação desses jovens e assim ampliar as suas chances no mercado de trabalho.

Diretora-executiva do Fundo Baobá é destaque em evento virtual sobre empreendedorismo e sustentabilidade

ESG é uma sigla em inglês que, para quem não é do ramo corporativo, não diz muita coisa. Mas trata-se de um conceito empresarial fundamental nos nossos tempos: Environmental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança). A primeira vez que ele foi utilizado foi no ano de 2005, em um relatório intitulado “Who Cares Wins” (Ganha quem se importa), sendo um resultado de uma iniciativa liderada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na ocasião, 20 instituições financeiras de nove países diferentes, incluindo o Brasil, se reuniram para desenvolver diretrizes e recomendações sobre como incluir questões ambientais, sociais e de governança na gestão empresarial. 

Foi sobre o tema ESG que a XP Investimentos realizou, entre os dias 2 a 5 de março, um evento virtual reunindo os principais experts do mercado financeiro para debater investimentos sustentáveis. Em quatro dias de debates virtuais, participaram Guilherme Benchimol (CEO e fundador do Grupo XP), o cientista Prof. Carlos Nobre, Denise Hills (Diretora Global de Sustentabilidade na Natura), José Alexandre Vasco (Superintendente da CVM), Liz Davidson (Ministra Conselheira do Governo Britânico no Brasil), Oskar Metsavaht (Fundador da Osklen e embaixador UNESCO para Sustentabilidade), o autor do livro “Cisnes Verdes”, John Elkington, Luiza Helena Trajano (Presidente do Conselho da Magazine Luiza), Liliane Rocha (Fundadora e CEO da Gestão Kairós), Rachel Maia (Fundadora RM Consulting e Presidente do Conselho Consultivo do UNICEF), DJ Bola (Fundador e Diretor da A Banca, produtora social cultural) e a diretora-executiva do Fundo Baobá para Equidade Racial, Selma Moreira, entre outros.

Selma Moreira participou do painel “Sustentabilidade Integrada à Governança: Estratégia e Transparência”, no dia 4 de março. Mediado pela analista de pesquisa ESG da XP Investimentos, Marcela Ungaretti, ele contou também com o fundador da Blockc/ZCO2, membro do comitê de sustentabilidade da Duratex e da Marfrig, presidente do conselho da D.R.I Brasil e membro da Conecta Direitos Humanos, Marcelo Furtado, e com a diretora ESG e relações com investidores do Grupo Cosan, Paula Kovarsky, que na ocasião substituiu o CEO da Cosan,  Luis Henrique Guimarães.

Painel “Sustentabilidade Integrada à Governança: Estratégia e Transparência”

Selma Moreira fez uma análise sobre o histórico de discussão envolvendo o conceito ESG: “É uma discussão que não é nova, a gente tem uma nova forma de se dirigir ao ESG.  A gente falava de Triple Bottom Line (que é o chamado tripé da sustentabilidade) há um tempo atrás, e já havia uma preocupação em se pensar muito além de compliance, em fazer o que é certo, da forma correta. Hoje quando eu observo a forma de operação das empresas privadas e dos fundos que propõe fazer investimentos nessas empresas para promoção de desenvolvimento, eu acho que a gente olha e consegue ter nitidez de uma consolidação de termos econômicos, de estratégias de gestão e de compliance, muito adequadas. A gente está começando a melhorar, mas ainda me parece que há que se desenvolver formas, métodos e ações, que permita que a parte do “S” e do “E” do ambiental, sejam avaliadas de uma maneira mais estratégica”. Ainda com a palavra, Selma fez uma importante análise contextual do Brasil contemporâneo: “Pensando no nosso contexto de país, a gente está aqui hoje em um dia de muita emoção, mas a gente olha para o nosso país em um dia de luto, um dia muito triste, e não dá para dissociar a empresa do contexto ao qual ela pertence. A gente está vivendo um contexto de tristeza e as empresas são formadas por pessoas, então, no fim do dia, quando a gente conecta tudo isso, conseguir colocar um olhar mais direcionado para que as decisões promovidas pelas empresas sejam éticas e justas, vai muito além da lei. No momento que a gente está pensando que as decisões são promovidas pelos conselhos, executadas pelos executivos, elas se coloquem, sejam passíveis de dúvidas. Quando a gente começa a repensar as nossas certezas, a gente começa a repactuar nosso pacto de gestão, com o ambiente no qual a gente pertence e com o planeta. Acho que é fundamental começar por aí”.   

Selma Moreira durante o painel “Sustentabilidade Integrada à Governança: Estratégia e Transparência”

Paula Kovarsky complementou o raciocínio: “Eu concordo muito com o que a Selma falou, que precisa ser uma coisa que está imbuída em todo o seu processo de tomada de decisão e, essencialmente, porque o mundo está caminhando nessa direção, então isso tem que ser por definição círculo virtuoso, eu preciso como companhia olhar para as tendências de mudanças climáticas, por exemplo, porque isso vai definir o portfólio de produtos que vai ter sucesso num horizonte de cinco a dez anos. Eu preciso ter uma empresa que é reconhecida e que tem, de verdade, um compromisso com a diversidade, porque se eu não tiver isso, eu não vou ser capaz de atrair os talentos que eu preciso para ter sucesso no futuro”.

Questionada sobre qual é a importância de ter a diversidade em diferentes níveis de governança, quais são os desafios dessa jornada e o que precisa ser feito de fato para atingir esse patamar, Selma Moreira fez questão de frisar a importância do diálogo em diferentes esferas: “A gente vive um momento onde o mundo está mais aberto para o diálogo. O que era uma barreira antes, e trazia aquela dificuldade de se expor e de estar em um ‘terreno difícil’, hoje há mais abertura e disposição para dialogar. O que é fundamental, se a gente não dialogar, estará alimentando um processo que é da construção da nossa sociedade desigual. Precisamos também qualificar esse diálogo. Hoje nós temos pesquisas que mostram que, com igualdade de gênero, a produtividade melhora em 15%, e que, quando é trabalhado questões raciais e étnicas, a produtividade melhora 35%.

Com esses dados apresentados, Selma Moreira aprofunda o debate do diálogo da diversidade, principalmente, nos níveis executivos: “Nós precisamos entender que diversidade é lucrativo, então a gente tem que pensar isso para todas as etapas, para todos os estágios de gestão de uma organização, na base, mas também no topo, também nos níveis executivos e nos conselhos. E justamente nos níveis executivos que a gente vai perceber os gargalos, no qual 4,9% é o número de executivos negros que participam de conselhos de administração e 4,7% é o número de executivos na gestão”. 

Selma Moreira (Fundo Baobá), Paula Kovarsky (Grupo Cosan) e Marcelo Furtado (Duratex, D.R.I Brasil e Conecta Direitos Humanos)  

Para Selma, é necessário reflexão e auto análise quando o assunto é diversidade de gênero e étnica: “A gente precisa refletir sobre todo o processo de desigualdade e gargalo acumulado no processo escolar e nas questões de acesso ao mundo do trabalho. Então precisamos criar processos que sejam de fato mais inclusivos e afirmativos também, até porque considerando o ritmo que a sociedade resolve os seus problemas, precisamos ser mais evidentes e mais convictos no que a gente quer fazer. O fato de, no Brasil a gente observar essas desigualdades todas, ter nitidez de tudo isso, é um momento de fazer auto análise, do viés inconsciente, de como a gente gosta de ficar com os nossos iguais, como é bacana falar com alguém em que as ideias e valores conectam com os nossos, mas isso nos leva a construir as mesmas soluções de sempre, baseado em seu mindset. A gente precisa se permitir diversificar, como fazemos com os investimentos, com os portfólios, é o que a gente faz com os produtos, mas a gente não vai conseguir diversificar se ficar procurando um currículo igualzinho ao nosso”.

Hoje, a população negra no Brasil, segundo dados do IBGE, equivale a 56%. Mesmo assim, pessoas negras são minorias em cargos de chefia. Selma aproveitou a oportunidade para compartilhar a sua própria experiência profissional: “Eu sou uma mulher negra de origem periférica e que trabalha com equidade racial, trata-se de um tema que não está longe do meu dia-a-dia, ele está no meu coração, é o que corre na minha veia, mas é um tema que é de muita resistência em muitos espaços. Então, o questionamento que eu trago é: como é que a gente se abre para o diálogo e como é que a gente constitui mais potência a partir das nossas diferenças? Esse é o caminho que vai fazer com que se constituam empresas e uma sociedade cada vez mais forte, diversa, brilhante, potente e respeitando as diferenças. A gente não inova se não olhar a partir de um outro ponto”.

Dentro do mesmo contexto, Selma Moreira falou sobre a importância da equidade: “Tem um ponto que a gente pouco usa nos diálogos no Brasil que é falar de equidade, que se trata de justiça. Quando a gente fala de olhar as populações, há que se pensar o quanto as empresas refletem, de maneira justa, a população das regiões onde elas estão inseridas. E nós estamos olhando para isso? A gente tem feito alguma ação que nos tira do lugar de conforto para produzir essa diversidade? Pode ser que tenhamos uma trilha de aprendizagem e aprender faz parte”. 

Para assistir a participação completa da Selma Moreira no painel “Sustentabilidade Integrada à Governança: Estratégia e Transparência”, basta se cadastrar gratuitamente aqui e acompanhar esse e outros painéis ocorridos no evento Expert ESG.

Com uma “Bike Sonora”, o Movimento Social Fome levou informações em tempos de fake news

Imagine um sistema de som ligado em uma bicicleta levando informações corretas  sobre a covid-19 e como se prevenir. Pois essa bicicleta existiu – e percorreu várias ruas de Sobral, no Ceará com o apoio do “Edital Apoio Emergencial para Ações de Prevenção ao Coronavírus” – uma iniciativa do Fundo Baobá em parceria com a Fundação Ford, para apoiar projetos de regiões e povos vulneráveis mais afetados pela pandemia da Covid-10 no Brasil.

“Projeto Bike Sonora” do Movimento Social Fome – Sobral (CE) – (Foto: arquivo pessoal)

Lançado no dia 5 de abril de 2020, em apenas 12 dias, o edital recebeu 1.037 inscritos de todas as regiões do país. Nesse total, 387 eram iniciativas de organizações sociais e 650, de indivíduos. Após uma análise minuciosa da organização, o Fundo Baobá divulgou em três listas um total de 350 projetos selecionados, sendo 215 de indivíduos e 135 de organizações. Cada iniciativa recebeu R$ 2,5 mil para ações de prevenção em comunidades periféricas ou de difícil acesso.

Entre essas iniciativas selecionadas estava o Movimento Social Fome, de Sobral (CE), com o seu ousado projeto da Bike Sonora: “A ideia surgiu como uma força de construir uma comunicação não violenta, onde não assustasse as pessoas num momento tão delicado que estamos passando. Era fundamental colocarmos nas ruas informações necessárias e cuidadosas a fim de atingir um público exclusivo que era a periferia”, diz a fundadora, produtora cultural e articuladora social do Movimento Social Fome, Raiana Souza.

“Projeto Bike Sonora” do Movimento Social Fome – Sobral (CE) – (Foto: arquivo pessoal)

Em tempos de fake news e desinformação, o trabalho do Movimento Social Fome na proliferação de informações sobre o novo coronavírus na comunidade carrega a alcunha de serviço essencial para a população: “Tivemos o cuidado de fazer frente a uma desconstrução de informações falsas advindas da produção de Fake News que se espalhavam nas mídias sociais e tomavam proporções de abrangências exorbitantes, desse modo, pensar uma estratégia de comunicação no combate e enfrentamento a covid-19 foi uma tarefa de luta coletiva que está simbolizando, até hoje, um marco na nossa trajetória enquanto moradores e militantes sociais”.

Muito antes da covid-19 ser decretada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Bike Sonora ser uma realidade em meio à crise da saúde pública, o Movimento Social Fome já fazia a diferença para a população vulnerável de Sobral. Fundado no ano de 2013, trata-se de um coletivo de jovens moradores da periferia sobralense, surgido nas calçadas, nas ruas e nas associações comunitárias do bairro Terrenos Novos, periferia da cidade de Sobral: “O surgimento do Movimento Social Fome se deu em meio aos ensaios de um grupo de teatro de rua que ensaiava durante a semana no período noturno ao lado da capela da igreja católica, hoje paróquia São Paulo Apóstolo. Foram quase três anos acompanhando as movimentações de amigos, conhecidos e colegas que faziam parte do grupo de teatro denominado ‘Amigos da Paixão’. O grupo só produzia e encenava no período da quaresma cristã, passando assim, o restante do ano, sem organizar ou produzir qualquer outro trabalho teatral”. E foi durante esse longo intervalo sem produzir, que Raiana e os seus amigos enxergaram a necessidade de criar algo que movimentasse a cultura entre os jovens daquele local, e assim nasceu o Movimento Social Fome: “A pretensão inicial do FOME era construir uma agenda de atividades artísticas e culturais como forma de ocupação direta do espaço público da periferia, tornando essas atividades uma maneira mais direta de chegarmos nas pessoas do bairro a fim de convidá-las para fazerem parte do coletivo, ou mesmo apoiar as ações que eram executadas”.

Raiana Souza, fundadora, produtora cultural e articuladora social do Movimento Social Fome – (Foto: arquivo pessoal)

Além de Raiana Souza, fundaram o Movimento Social Fome o educador social e produtor cultural Renan Dias, o artista e grafiteiro Thiago Tavares, o rapper e músico Frank Soares, os produtores culturais e Mc’s Leandro Guimarães e Wisley Nascimento, assim como a produtora cultural e social mídia Fran Nascimento: “Nossa primeira atividade na rua foi exatamente com a proposta de uma intervenção audiovisual com exibições de filmes e videoclipes de artistas locais. O Cine Comunitário foi uma atividade bem direta com a finalidade de explorar a reação das pessoas que até então não sabiam exatamente do que se tratava aquela intervenção audiovisual”, relembra Raiana. No ano de 2018, o Cine Comunitário se tornou Cine Mucambim em alusão ao açude histórico que fica localizado dentro do bairro Terrenos Novos: “para nós moradores do bairro, o Mucambinho tem um valor imaterial que se estende desde sua historicidade até mesmo o valor econômico e social que o mesmo traz para famílias de pescadores que tiram do açude a única renda para por em casa”.

Sessão do Cine Mucambim no bairro Terrenos Novos (Foto: arquivo pessoal)

Outras atividades artísticas e culturais foram organizadas pelo Movimento, como o Som na Praça, com o propósito de levar para as praças e calçadas dos bairros Terrenos Novos e Vila União, ações voltadas à música e leitura. Assim como aulas de música, o Sarau Força e Resistência na praça da juventude no bairro Vila União e o Miss Perifa, que consiste na formação, produção e desfile de mulheres cis, trans e travestis da periferia: “O Miss Perifa é um evento de desfile auto-organzado pelo núcleo feminista do Movimento Social Fome que se chama “Mulheres do Gueto que Lutam sem Medo”.

O Miss Perifa é um evento de desfile auto-organzado pelo núcleo feminista do Movimento Social Fome que se chama “Mulheres do Gueto que Lutam sem Medo” – (Foto: arquivo pessoal)

Em 2014, o grupo participou de duas ações integradas dos moradores da região, o Sopão Comunitário e o Natal Comunitário: “Eram atividades organizadas com o apoio dos moradores do bairro que contavam com o apoio do Fome para realizar outras ações integradas como levar oficinas de graffiti, oficinas de artesanato, oficina de desenho, exibição de filmes com o cine comunitário e organização de mutirões de limpezas nas áreas adjacentes onde ocorriam os eventos especiais”.

Com a chegada da covid-19, com as medidas de isolamento social para conter o avanço da doença e evitar um colapso no sistema de saúde, o Fundo Baobá lançou o edital Doações Emergenciais, e o Movimento Social Fome inscreveu o seu projeto Bike Sonora, sendo uma das 350 iniciativas selecionadas: “A relação do cuidado em tempos de pandemia também ressoou diretamente na renda básica familiar de moradores da periferia. Notamos que, com a pandemia, houve um crescente número de desempregados a nível nacional, e com nossa realidade aqui da periferia da cidade de Sobral/CE não foi diferente. Muitas famílias e jovens enfrentam as duras dificuldades para manter-se vivos e sobreviver ao vírus e a crise financeira que assola ainda hoje muitas pessoas”, e com o apoio dado pelo Fundo Baobá, houve uma transformação na realidade daquela região: “A partir do incentivo gerado pelo edital do Fundo Baobá, que nós do Movimento Social Fome pensamos estratégias de redistribuição da grana para um número maior de pessoas, fazendo assim circular um dinheiro dentro do próprio bairro”, afirma Raiana. “Conseguimos pagar um incentivo fixo para três jovens dos bairros onde o projeto Bike Sonora foi executado: Terrenos Novos, Vila União e Nova Caiçara, além é claro de distribuição de cesta básica de alimentos e produtos de higiene pessoal para famílias e crianças que participam da Biblioteca Comunitária Adalberto Mendes”. A biblioteca é um espaço em Terrenos Novos, onde o Movimento Social Fome executa atividades pedagógicas voltadas às crianças. O espaço se encontra fechado desde o início da quarentena em março de 2020.

Ao relembrar os momentos marcantes vivenciados com o projeto Bike Sonora, Raiana cita a experiência vivida pelo jovem Emanuel Nascimento, que “pilotou” a Bike Sonora pelas ruas de Sobral, e que se no começo ele despertou o estranhamento da população, que não estava acostumada com aquele tipo de novidade, no meses seguintes ele ganhou o carinho e consideração dos moradores locais: “No começo as pessoas estranhavam aquela ação e não entendiam ao certo o objetivo ou do que se tratava, causando assim pouca adesão por parte dos moradores. Com um tempo, Emanuel nos contou que os mesmos moradores agora já paravam ele para elogiar a iniciativa parabenizando-o pela coragem, pela luta e pelo cuidado coletivo. E a partir daquele momento muitos moradores já o esperavam no horário marcado que a Bike Sonora passava para lhe oferecer água, merenda e um cafezinho da tarde”. Raiana revela que depois que as ações do Bike Sonora chegaram ao fim, Emanuel relatou para a equipe do Movimento Social Fome que muitas pessoas do seu bairro tem perguntado porque parou e quando o Bike Sonora irá voltar.

“Projeto Bike Sonora” do Movimento Social Fome – Sobral (CE) – (Foto: arquivo pessoal)

Um ano depois de decretada pandemia de covid-19, hoje no Brasil nós vivemos o pior momento da doença, com média móvel de 71.739 novos casos e com 57 dias seguidos com a média móvel de mortes acima da marca de 1 mil. Mais de 300 mil vidas perdidas. Raiana Souza, destaca a importância do trabalho do Fundo Baobá com edital Doações Emergenciais e o impacto que ele causou na comunidade: “Os impactos centrais que podemos citar aqui se destacam entre duas linhas de campo principais que são: A informação e o cuidado coletivo dentro da periferia, e a distribuição de renda que foi ofertado pelo edital”.

Mesmo sem o trabalho da Bike Sonora, o Movimento Social Fome continua ativo no combate à covid-19 e colocando em prática as lições aprendidas com apoio do edital Doações Emergenciais: “Acredito que os vínculos que foram criados a partir do projeto apoiado pelo Fundo Baobá, o Bike Sonora, foram fortemente estabelecidos nos desejos de sempre insistir, resistir e não se entregar. Temos fome e ela não espera, quem tem fome tem pressa”.

Veja o vídeo da Bike Sonora em ação aqui

Entre expedientes longos e livros: a vida dos estudantes que trabalham e estudam

Atrás da tão sonhada vaga no Ensino Superior, alguns estudantes enfrentam jornadas longas de serviço

Das barreiras sociais à frente dos jovens que pretendem ingressar no Ensino Superior, a mais visível delas reflete sobre a dificuldade da conciliação das horas de expediente e a rotina de estudos. Para Beatriz Moreira Passos da Silva, de 22 anos e moradora do bairro Santana, na Zona Norte de São Paulo, os contratempos para enfrentar esses obstáculos são vários. Entre jornadas de trabalho longas, trajetos de ônibus, cadernos, livros e anotações, a jovem encara uma rotina agitada que exige uma determinação rígida para realizar suas metas.

“Nesse momento, eu trabalho 9h por dia como anfitriã de hospitalidade. Como é uma área que eu já tenho conhecimento e gosto bastante, pretendo estudar no campo da Gestão Hospitalar para contribuir mais e mais no meu trabalho. Por isso, a rotina de estudos acaba sendo divertida”, explica.

Beatriz Moreira Passos da Silva, 22 anos

Demonstrando determinação para suas metas, Beatriz revela que, além dessas barreiras sociais, ela também fez parte das estatísticas dos jovens negros que abandonaram os estudos por complicações com familiares ou outros motivos. O olhar atencioso para as questões que envolvem a saúde de uma pessoa tem relação com um pouco do seu passado: a mãe teve um câncer de mama.

“Infelizmente, eu parei de estudar por questões que vão muito além de mim. Minha mãe teve um câncer de mama e essa doença, com certeza, influenciou nas minhas decisões. Porém, mesmo longe da escola, eu não perdi a paixão e a curiosidade que todo estudante possui. Fico muito feliz pelo meu retorno”, desabafa.

Também da Zona Norte de São Paulo, Bianca Paixão da Silva, de 24 anos e moradora do bairro Jardim Princesa, comenta que a rotina agitada de trabalhos e estudos combina com o seu perfil que visa a constante mudança pessoal. De uma forma leve e divertida, a jovem, que trabalha como Auxiliar de SAC, brinca ao dizer que nem recorda da última vez que não precisou trabalhar enquanto estudava.

“É da minha personalidade mesmo (risos). Eu não consigo ficar parada, eu preciso estar sempre fazendo alguma coisa ou aprendendo algo novo”, afirma.

Bianca Paixão da Silva, 24 anos

Para ela, essa realidade coincide com a população negra e periférica no Brasil que desde cedo tem que realizar tarefas múltiplas e enxerga essa rotina como algo comum. Atualmente, Bianca trabalha cerca de 8 horas por dia. A estudante sonha com a vaga no Ensino Superior para estudar a área de comunicação social e se especializar em Publicidade e Propaganda.

“Ser uma garota de periferia mostra como o mundo é diferente em outras partes da cidade e em outras áreas, como no mercado de trabalho. Desde cedo, eu sempre lidei com a situação de ser a única negra nos ambientes que frequento”, analisa.

Da Zona Leste do mapa de São Paulo, Micheli Karoline da Silva Santos, de 24 anos e moradora da Vila Nhocune, também enxerga essa situação como corriqueira, pois ela trabalha e estuda há muito tempo. De acordo com a jovem, as jornadas de expediente acompanham os horários de estudos desde os 16 anos e, agora que trabalha 8h por dia na área comercial de uma empresa, ela não acredita que seja  um empecilho, mas sim, uma motivação extra para dar o melhor de si.

“Para mim, não é uma novidade trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Faço isso há muito tempo. Atualmente, eu trabalho na área comercial de uma empresa, de segunda a sábado, 8h por dia. Mas, como eu sempre fui ensinada a pensar como ’adulta’, eu lido bem com a situação. E o meu jeito curioso e focado sempre me faz querer estudar mais, saber mais”, detalha.

O norte de incentivo de Micheli aponta para o sonho de estudar Direito e abrir o seu próprio escritório de advocacia, que será especializado em consultoria cidadã. Ela explica que os serviços consistem na introdução dos direitos, as normas de relacionamento e obrigações legais do judiciário frente ao cidadão.

“Eu sempre gostei da ideia de cursar Direito. A minha expectativa com o Programa Já É, do Fundo Baobá, é me tornar uma referência dentro da área para auxiliar as causas femininas. Meu sonho é abrir um escritório de advocacia para mulheres, com consultas gratuitas sobre processos e questões burocráticas”, explica.

Programa de Recuperação Econômica apoia empreendedores negros em meio à pandemia

O Programa de Recuperação Econômica do Fundo Baobá para Equidade Racial, foi lançado no dia 11 de novembro de 2020 em uma iniciativa que contou com a parceria com a Coca-Cola Foundation, Instituto Coca-Cola Brasil, Banco BV e Instituto Votorantim.  O objetivo era apoiar pequenos empreendimentos liderados por pessoas negras em comunidades periféricas ou territórios em contexto de vulnerabilidade socioeconômica no país, que tenham pequenos negócios com faturamento de até R$ 6.750,00.

Em 39 dias de inscrições abertas, a organização recebeu 700 propostas de pequenos empreendedores. Na primeira fase de triagem, 598 inscrições foram validadas, passando para a fase de avaliação das propostas em si. Dessas, 273 seguiram para a etapa de entrevistas virtuais. Elas foram realizadas pela organização FA.VELA, parceira operadora do Fundo Baobá para este projeto. Segundo Ludmila Correa, representante da FA.VELA, as conversas foram fundamentais para seleção de iniciativas empreendedoras para o programa. “Durante as entrevistas pudemos conhecer diversas realidades, ramos e formas de empreender desenvolvidas nas diferentes regiões do Brasil, variando de entrevistas com empreendedores quilombolas, ribeirinhos, da zona rural e do meio urbano. Acreditamos que muitas iniciativas têm perspectiva de expansão, promovendo impacto territorial por meio da geração de renda, desenvolvimento sócio econômico, fortalecimento da atuação em rede, entre outros benefícios. O processo de entrevistas foi fundamental para o diálogo e entendimento da realidade de cada empreendedor, possibilitando verificar a adequação da iniciativa proposta para o programa, assim, colaboramos recomendando os participantes de forma mais assertiva e coerente”.

Ludmila Correa, gerente de projetos e programas do Fa.Vela

Após o processo de entrevistas, 141 iniciativas  foram recomendados ao comitê selecionador, que elegeu as 47, cujos nomes foram divulgados no dia 26 de fevereiro e serão contempladas com os recursos financeiros e de formação do programa. Uma das integrantes do comitê selecionador foi a consultora de negócios de diversidade e inclusão, Caroline Conceição Moreira: “Acredito que, por eu trabalhar com empreendedorismo, consegui contribuir com meu olhar de eterna captadora de talentos. Foi uma experiência incrível poder acessar tantos projetos potentes e saber que estas pessoas terão uma oportunidade incrível de potencializar seus empreendimentos”. 

Quem também utilizou a profissão ao seu favor, durante a sua participação no comitê selecionador, foi a psicóloga e diretora da Teçá Impacto, Marcela Bacchin: “Fiquei muito honrada de poder fazer parte do comitê de seleção do edital e trouxe meu conhecimento de 15 anos no apoio de empreendedores da base da pirâmide como estratégia de combate à pobreza, à serviço da definição de critérios para avaliação de maturidade das propostas e de um olhar propositivo de equilibrar a seleção com recorte de gênero, e territorialidade”. Marcela acredita que esse equilíbrio durante a seleção das iniciativas fez justiça aos selecionados: “Dessa forma, o grupo participante do comitê teve uma atuação de garantir o equilíbrio territorial dos investimentos e a prioridade para projetos do nordeste, liderados majoritariamente por mulheres e pessoas LGBTQI+”.

Marcela Bacchin, psicóloga e diretora da Teçá Impacto

Foi esse entendimento e processo coletivo entre os membros do comitê que ganhou elogios do diretor da Techsocial, conselheiro do Anjos do Brasil – um grupo de investidores anjo – e também conselheiro fiscal do Fundo Baobá para Equidade Racial, Marco Fujihara: “Eu gostei muito porque, principalmente, foi um processo coletivo, não foi a minha opinião sozinha que influenciou na escolha, mas todo processo coletivo é muito rico, porque você ouve a opinião das pessoas, elas ouvem a sua opinião, e você acaba achando um caminho do meio sempre, não tem aquele melhor ou pior”. Assim como também elogiou as iniciativas apoiadas: “Eu gostei muito das iniciativas empreendedoras inscritas pelo vínculo comunitário que elas tinham, o que tornou tudo bastante criativo e produtivo”. 

Marco Fujihara, diretor da Techsocial e conselheiro fiscal do Fundo Baobá

Para a psicóloga e coordenadora de projetos de impacto em inclusão produtiva, Crisfanny Souza Soares, integrar o comitê foi um privilégio: “Estar em contato com ideias e iniciativas empreendedoras que virão a ser respostas efetivas na recuperação da economia e no desenvolvimento de modelos de negócios inovadores, trouxe para roda a visão de quem conhece, reconhece e apoia quem movimenta a economia brasileira: os 99% micro e pequenos empreendedores, e investiu no desenvolvimento de metodologias de apoio, parcerias de acesso para inclusão produtiva”. 

Outro membro do comitê foi Marcelo Rocha, mais conhecido como DJ Bola, um dos articuladores do coletivo A Banca. Para ele, integrar o comitê selecionador foi um grande aprendizado, além de uma imensa felicidade também: “Quando a Selma Moreira (diretora-executiva do Fundo Baobá) me disse que havia mais de 700 inscritos buscando apoio para tocar as suas iniciativas no Brasil todo, eu me senti muito feliz, porque isso é uma evidência do quanto o povo negro é potente e o quanto de mudança tem as quebradas”. Na visão do produtor cultural, a periferia tem uma enorme potência e bagagem, e iniciativas como o programa de Recuperação Econômica do Fundo Baobá, potencializa ainda mais os talentos existentes nesse meio: “A gente tem que sair dessa ótica da escassez, porque a periferia tem muito conteúdo, tem muito produto e tem muito serviço. Então, o Fundo Baobá conseguiu evidenciar mais uma vez a luta do povo preto, do pessoal LGBTQ+ e das mulheres, elas que sempre tiveram à frente iniciativas que trouxeram transformações dentro de casa, e agora elas estão à frente de iniciativas empreendedoras”.

Marcelo Rocha, DJ Bola, um dos articuladores do coletivo cultural A Banca

A pandemia da covid-19 ainda não chegou ao fim, pelo contrário: mesmo com a vacina aprovada em território nacional e com um plano de imunização que pretende vacinar toda a população ainda esse ano, apenas uma fatia minúscula da população recebeu a segunda dose da vacina até o momento, enquanto a média móvel diária de novos casos da doença atingiu patamares surpreendentes, com expectativa de chegarmos a meio milhão de mortes em breve. Com os governos estaduais implementando medidas sutis de isolamento para conter o avanço da doença e o colapso hospitalar, que acarreta  falta de leitos, estresse e exaustão de profissionais, os comércios e os pequenos empreendimentos voltam a fechar, o que resulta também em uma crise financeira. Entretanto, é preciso afirmar que os pequenos empreendimentos negros são de sobrevivência e existem, desde antes da crise sanitária, num contexto de desigualdade e racismo estrutural. Justamente dentro desse contexto que considera a relevância de ações como o Programa de Recuperação Econômica, considerando que a população negra, independente do cenário, é mais penalizada com as desigualdades: “A proposta do edital de recuperação econômica para empreendedores negros, busca atender uma demanda de pessoas vulnerabilizadas, de forma a fortalecer a sinergia entre empreendedores e ainda trazendo impacto positivos para os territórios ao qual eles fazem parte”, afirma Marcela Bacchin. “Sendo assim, essa é uma iniciativa que promove a dinamização econômica dos territórios, o desenvolvimento de novos negócios e a geração de renda através de atividades produtivas em diferentes setores. Serão produtos e serviços oferecidos por empreendedores negros para seus territórios, gerando o desenvolvimento local e valorização da comunidade negra”, completa.

Caroline Moreira frisa a importância de ações como essa, considerando o quadro desigual que o negro se encontra na sociedade brasileira: “É de extrema importância pensar nas questões raciais como foco, tendo em vista que os empreendedores negros são os que mais se prejudicam independente do cenário e falando em pandemia com certeza o fundo é uma possibilidade incrível de criar oportunidades para empreendedoras”.

Caroline Conceição Moreira, consultora de negócios de diversidade e inclusão

Crisfanny Soares afirma que o Programa de Recuperação Econômica movimenta dois pontos cruciais para a sustentabilidade das iniciativas: “O primeiro é o acesso ao capital financeiro e o segundo é a capacitação empreendedora que apoiará a estruturação e adaptação a dos negócios neste novo contexto que exige novas habilidades”, a gerente de projetos ainda confirma que o que mais lhe chamou a atenção neste edital foi a proposta de convergir negócios e suas propostas de valor para atuação em um mesmo território: “Além de inovadora, a proposta potencializa a visão de parcerias estratégicas comunitárias que podem fortalecer a economia local e mobilizar o surgimento de novos negócios ampliando o impacto”.

Crisfanny Souza Soares, psicóloga e coordenadora de projetos de impacto em inclusão produtiva

Ainda sobre a vacinação no Brasil, mas trazendo um inédito recorte racial, uma pesquisa feita pela Agência Pública, a partir dos dados de 8,5 milhões de pessoas que receberam a primeira dose da vacina, mostra que a cada duas pessoas brancas, apenas uma pessoa negra recebeu a vacina, o que equivale a 1,48% da população negra vacinada, contra 3,66% da população branca vacinada. Para Marco Fujihara, o racismo está enraizado em toda estrutura do país e medidas como essa do Fundo Baobá, ajudam a promover a equidade racial: “A questão da equidade racial tem que ser colocada na pauta do dia sempre. O racismo é uma coisa que existe, e a primeira maneira de combater o racismo é acreditar que ele existe. Portanto, esse trabalho do Fundo Baobá é necessário e tem que ser ampliado”.

Programa Já É, do Fundo Baobá, aproxima jovens pretos e periféricos da universidade

Com mais de 200 inscritos, o edital custeará não só os gastos em curso pré-vestibular, mas também despesas com transporte e alimentação

O Fundo Baobá para Equidade Racial busca a promoção da equidade racial para a população negra. No front desde 2011, a instituição não possui fins lucrativos e vem mobilizando recursos pelo Brasil e mundo afora, para apoiar organizações que atuam no enfrentamento ao racismo e promoção da equidade racial.

Na prática, o Fundo Baobá investe em ações por meio de editais, organizações e lideranças pretas, que se comprometem com o combate ao racismo e às desigualdades. Um dos grandes exemplos desse trabalho é o Programa Já É: Educação para Equidade Racial.

O edital foi criado a fim de impulsionar o ingresso de jovens pretos e periféricos nas universidades, através do custeamento dos gastos em um curso pré-vestibular, e também transporte e alimentação. Além de tudo, o edital prevê também atividades voltadas para o enfrentamento dos efeitos psicossociais do racismo e para a ampliação das habilidades socioemocionais e vocacionais, bem como mentoria com profissionais de diferentes formações acadêmicas e vivências.

Foram 245 inscritos no total, com a segunda etapa de seleção sendo uma entrevista com 120 desses candidatos. Ao total, 100 jovens foram aprovados para ingressar no programa e, entre eles, estavam Julia Camile Santos, 17, Julia Firmino, 18, e Carlos Eduardo Cerqueira, 19.

Julia Camile encontrou no Fundo Baobá uma oportunidade para conquistar sua independência profissional. A estudante teve uma infância curta, adquirindo responsabilidades já aos 8 anos de idade por conta de problemas familiares. Ela descobriu o edital enquanto navegava na internet em busca de cursos pré-vestibular.

Hoje, com os conflitos familiares já resolvidos,  Camile continua sendo independente e agora já pensa em se tornar universitária. A jovem sonha em ser bióloga por influência de seu ex-professor do ensino fundamental, e enxerga no Programa Já É a porta aberta para o mercado de trabalho. “O edital me abriu portas e hoje enxergo o potencial que antes eu achava que não tinha. Hoje vejo novas perspectivas”, conta.

Julia Camile Santos, 17 anos

Há muitos jovens que almejam ingressar na universidade, mas ainda não decidiram em qual curso pretendem se inscrever. Contudo, isso não é um impeditivo para já começar a se preparar para as provas. Carlos Eduardo é um exemplo. “Eu quero me especializar na área financeira, que é onde me dou bem”, explica. Carlos descobriu o edital através de um amigo, que sabia de sua procura por cursos preparatórios para vestibulares.

Ele acredita que a iniciativa do Fundo Baobá é uma oportunidade para chegar mais perto do seu sonho. “Apesar da pandemia ter atrapalhado os meus planos, pois é muito ruim estudar de casa, o caminho para chegar onde eu quero continua sendo através da educação”, afirma.

Carlos Eduardo Cerqueira, 19 anos

Os efeitos do racismo na vida de jovens negros

O racismo é um projeto genocida que funciona sem grandes falhas e o Fundo Baobá trabalha diariamente para a erradicação dessa estrutura. Apesar dos esforços, muitos jovens pretos ainda não estão livres de vivenciar situações racistas. É o caso de Julia Firmino, de 18 anos.

Julia concluiu o ensino médio em 2020, com formação técnica em Edificações. Apesar de gostar da área e querer cursar Arquitetura, a estudante recebeu pouco apoio dos colegas da escola. “Diziam que o curso técnico não era para mim, e que eu deveria procurar algo mais fácil”, desabafa.

Julia Firmino, 18 anos

Apesar disso, Julia não se abateu, porque vem de uma estrutura familiar fortalecida. “Nossa situação é apertada, pois minha mãe criou eu e meus 5 irmãos sozinha. Mas eu sempre soube que sofria racismo e aprendi a lidar. Fui bem instruída”.

Tais situações só fizeram a jovem ter ainda mais certeza de que poderia conquistar o que quisesse, e o Fundo Baobá colaborou para isso. O edital Já É foi importante para eu entender que, independentemente da minha cor, sou capaz de qualquer coisa”, diz.

Conheça a história do IMUNE, organização que se reinventa e faz ecoar a voz e as lutas das mulheres negras há duas décadas no Mato Grosso

Por Giovane Alcântara*

 

O Instituto de Mulheres Negras (IMUNE) do Mato Grosso completa neste ano 20 anos de trajetória na organização em torno das pautas das mulheres negras. O IMUNE, nome que faz referência à imunização, nasceu no início dos anos 2000 a partir da necessidade de ecoar e discutir as temáticas de raça e gênero que não encontravam espaço em outros movimentos sociais na época.

A organização foi uma das contempladas na primeira turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. O projeto “Voz IMUNE: 18 anos em movimento” teve como um dos principais objetivos registrar, divulgar e preservar a memória do primeiro grupo de mulheres negras do Mato Grosso, e culminou na produção de um livro que conta a história e as lutas do grupo.

A professora Antonieta Costa, conhecida como Nieta, é uma das fundadoras do IMUNE. Ela conta que as mulheres que fundaram o Instituto não visualizaram inicialmente onde iriam chegar. “A proposta realmente era fazer essa mudança, discutir mulheres negras na perspectiva de propor políticas públicas, ações afirmativas, de ter uma discussão no Mato Grosso, que até então não tinha nada direcionado para as mulheres negras. A gente já militava no movimento social, mas quando a gente ia discutir gênero e raça acabava a reunião”, diz.

Criado antes do IMUNE, o grupo de dança afro Filhas de Oxum também faz parte da história da organização. Cristina Benedita da Silva, professora da educação básica, relata que conheceu o IMUNE no grupo de dança. “Fiz parte do grupo Filhas de Oxum, com a professora Antonieta, a professora Lenis e o grupo tinha como objetivo maior a valorização de meninas em vulnerabilidade social. E nós trabalhávamos muitas coisas com elas” conta Cristina. Ela diz que pensando na valorização, saúde e educação, eram feitas visitas nas casas delas. “Tínhamos as parcerias das mães com a gente, que participavam no grupo, faziam parte das oficinas”, complementa.

Cristina afirma também que havia um acompanhamento também na escola destas meninas inicialmente atendidas pelo Instituto, visando a valorização da mulher negra enquanto sujeitas importantes para a sociedade. “Eu também não tinha muito essa consciência. E através do grupo aprendi muita coisa, consegui trabalhar, estudar, e fazer faculdade. Muitos não se reconhecem como negros e através do grupo de dança muitas meninas aprenderam. Algumas até estão sendo reprodutoras desse nosso trabalho”, comemora.

Nieta relembra que o cenário da época em que se deu o surgimento do grupo de dança era interessante, já que em Cuiabá havia muito preconceito com a religiosidade de matriz africana e o grupo levava o nome de um Orixá. “E a gente ousou, mesmo as meninas não sendo de Axé”. Conta ainda, que no livro, lançado como produto do projeto, há relatos das meninas que fizeram parte do grupo de dança e que elas se sentem parte dessa história. “O Filhas de Oxum chama atenção para a possibilidade de mudança das nossas crianças e adolescentes. Porque é importante você pegar aquela criança que está ali, fazer um trabalho, mostrar e valorizar o quanto ela é bonita, o quanto ela é inteligente. E hoje essas crianças, que a gente viu lá atrás, são advogadas, engenheiras, professoras. Isso para a gente não tem preço”, reforça Nieta.

Inicialmente o IMUNE tinha reuniões mensais que aconteciam alternadamente na casa das integrantes do grupo, já que elas não tinham uma sede. “A gente começou a fazer as reuniões de mulheres negras e essas reuniões eram encontros afetivos. A gente sempre se reunia para tomar um chá, fazer um almoço, um jantar e aproveitava esses momentos para discutir as questões que nos afetam”, conta Jackeline Silva. Ela é produtora cultural, trabalha com elaboração e gestão de projetos e faz parte do IMUNE desde a fundação.

Jackeline explica que esses encontros foram importantes para a consolidação do IMUNE. Ela lembra das feijoadas para arrecadar dinheiro e posteriormente o passo da institucionalização com a criação do CNPJ. “A gente entendeu que era importante dar um passo a mais de um coletivo para que ele se tornasse uma organização formal, e aí anos depois a gente se deparou com essas possibilidades de projetos. Para que a gente tivesse um fomento, para ter condições mínimas de trabalho, até para produzir materiais”, pontua.

Em duas décadas de existência, o Instituto tem na bagagem como primeira ação a produção do jornal Voz IMUNE, em 2003. “Nesse jornal nós buscamos o que as mulheres estavam fazendo, as mulheres que trabalhavam, o que estava acontecendo com elas naquele momento”, diz Nieta. Houve também a experiência com uma revista sobre saúde mental da mulher negra, que teve 200 exemplares. A revista foi fruto das rodas de conversa que tinham como tema saúde, educação, mercado de trabalho, emprego, renda e segurança pública. A revista foi sendo distribuída nos encontros nas comunidades. 

Nieta relata que depois de um tempo o IMUNE cresceu e foi sendo reconhecido. A comunidade vinha chamando as mulheres do Instituto, ao invés delas irem. “A comunidade começou a reconhecer a importância desse trabalho. As secretarias de educação, de saúde, o poder público começou a conhecer, e o IMUNE começou a se inserir também nos conselhos de promoção da igualdade racial e saúde da população negra”, diz. 

Com essa inserção, a organização também passou a articular em torno de outras frentes, como a de povos de matriz africana, através da parceria com a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO). E é aí que a história da professora Sônia Aparecida Silva se encontra com a do IMUNE. “Uma história de construção como mulher, como pessoa. Perceber-me como uma Sônia antes e outra Sônia depois. E eu gosto de dizer isso dentro do meu campo de visão, que é o Axé, que a gente encontrou dentro do IMUNE essa possibilidade de construir alguma coisa aqui em nosso estado”, relata Sônia.

Atualmente com 55 anos, Sônia diz que não tem vergonha de dizer que foi estando dentro do IMUNE que conseguiu ter essa visão de transformação. “Hoje eu vejo além muro, vejo a necessidade de conhecer o contexto histórico, de saber quem eu sou dentro de um Axé, e o que eu posso fazer como mulher, com as mulheres. A questão da consciência do que eu posso ajudar a transformar na minha comunidade, com as crianças”, afirma.

Sônia compartilha que gosta de estar na construção do IMUNE, nas rodas de conversa, que até seus filhos têm hoje uma outra consciência. Conta também sobre a importância de se sentir preparada para lidar com os desafios. “Saber me defender, saber me colocar dentro do meu âmbito de trabalho. Poder usar meu turbante, minhas contas. Hoje eu não choro mais. Eu sei me colocar nesse meio daí e fazer com que as pessoas me respeitem”, relata. 

Lidia Djú, de Guiné-Bissau, é professora da educação básica. Ela conta que conheceu o IMUNE através da professora Nieta. “Antes de conhecer o Instituto, eu já conhecia a Nieta. E surgiu a oportunidade de conhecer o Instituto e lá se vão mais de sete anos. E a gente está ali, batalhando, fazendo o que a gente pode para apoiar as mulheres que precisam de apoio, qualquer tipo de apoio”, conclui.

 

Voz IMUNE: 18 anos em movimento

Jackeline explica que o edital de apoio do fundo Baobá foi uma oportunidade sensacional para o IMUNE. “Quando o Fundo Baobá se propôs a realizar o fortalecimento de grupos coletivos e lideranças, foi incrível porque nós já tínhamos uma história, algumas décadas de trabalho. E aí conversei com a Nieta, eu falei ‘olha, eu acho que é uma oportunidade incrível e a gente tem grandes chances de passar’”, relata.

Ela afirma que o apoio e o projeto foram importantes porque possibilitaram que o IMUNE se voltasse para a formação interna, já que as ações são muito para fora. “A gente pôde dedicar para olhar para dentro da organização, se organizar, colocar em dia os nossos papéis, a documentação e principalmente, que é o mais importante, contar a nossa história”, reforça Jackeline.

Nieta define a experiência de ser apoiada pelo Fundo Baobá como emocionante e que o fomento mudou a história do IMUNE. Já Sônia observa que existe o IMUNE antes e o IMUNE depois do Baobá. “O que era o IMUNE antes, a gente se reunia e compartilhava nosso saber e experiências nas nossas casas, com nossas irmãs. Compartilhava o alimento. O IMUNE depois do projeto apoiado se tornou uma construção forte. A gente precisava disso. Eu vejo esse momento com o Baobá, com o livro, de consolidação… A gente cresceu” pontua Sônia. Ela comenta ainda que hoje Cuiabá sente a força da organização. “Somos poucas, mas somos mulheres prontas para a transformação, eu acho que isso é forte dentro de nós, então a gente precisava desse boom”, complementa.

Cristina diz que só tem a agradecer ao Baobá pelo apoio. “Por ter consolidado a luta de muitos anos e ter mostrado ao mundo isso que nós fizemos e continuamos fazendo, e só temos a melhorar cada vez mais.  A nossa história está presente na sociedade, no Brasil, para todos conhecerem”, reforça.

 

Pandemia de covid-19

A pandemia de covid-19, que impactou o mundo a partir de 2020, impôs desafios para as mulheres do Instituto de Mulheres Negras na adaptação à nova realidade. Nieta destaca entre os desafios lidar com o mundo virtual. “Essa questão do afeto que a Jacke colocou, a gente achava que só poderia ter se a gente estivesse junto, abraçado e conversando. A nossa reunião sempre foi uma reunião de confraternização. Então no momento que veio a pandemia a gente teve uma quebra. Porque a gente não podia mais abraçar e estar junto. E a maioria não conseguia mexer na ferramenta, que era um monstro, que era a internet”. 

Além disso, Nieta diz que nem todas as mulheres estavam com acesso a celular, computador e internet, e o recurso do projeto deu a possibilidade de superar algumas dessas dificuldades. “Nós vimos a possibilidade de superação, que foi os instrumentos que conseguimos comprar, como computador, mais celular e pagar internet para que todo mundo tivesse acesso”, reitera.

Silvina Jana Gomes, professora, vinda de Guiné-Bissau, atualmente é tesoureira do IMUNE e já está na organização há mais ou menos nove anos. Ela conta que a pandemia tem sido um momento desafiador, mas que com o apoio do Fundo Baobá conseguiram aprender. “Hoje a gente tem mais conhecimento e consegue entrar online. No começo a gente sentiu falta da reunião presencial, que todo mundo já estava acostumada, mas com o passar do tempo isso melhorou também”, argumenta.

Sônia destaca que em meio a dificuldade de lidar com as reuniões online, seu filho a auxiliava. Ela aponta outro desafio que foi lidar com as consequências da covid-19 nas comunidades e o adoecimento das pessoas. “O que eu acho mais importante de tudo isso é que a gente conseguiu superar e fechar esse ciclo. Foi muito desafio lidar com tudo isso e tentar fazer as nossas rodas, ajudar os nossos e as comunidades aqui no meio da pandemia, perdendo pessoas, gente sofrendo. Foi muito difícil, a gente ainda está com essa dor aqui dentro da gente”.

 

O futuro: não andamos sós

Passada a execução do projeto, Nieta chama atenção para o quesito organização que a participação no edital do fundo Baobá proporcionou ao IMUNE. Desde a prestação de contas que as mulheres não estavam acostumadas a fazer, até uma divisão de tarefas melhor definida. Segundo ela, esse processo formativo gerou novas oportunidades. “O Baobá abriu o nosso olho nas formações para o diálogo que a gente tem hoje com o poder público, com estado, com o município”, relata. O IMUNE conseguiu construir uma afroteca comunitária com um projeto apoiado pela Lei Aldir Blanc, além de estarem preparadas para poder enfrentar outros editais. “Hoje temos a primeira biblioteca afro pública do estado do Mato Grosso, que é a biblioteca do Centro Cultural Casa das Pretas, a sede do Instituto Mulheres Negras; temos um um espaço destinado a trabalhar a questão da identidade de cabelo, nós temos um salão lá dentro, que a Silvina e a Lidia coordenam”, comemora Nieta.

Jackeline acredita ser difícil pensar os próximos períodos com pandemia, porque as mulheres negras ainda são o elo frágil das desigualdades. “Em termos de sonhos, eu imagino o IMUNE uma grande potência. Não só no centro-oeste, mas até a nível de América do Sul. Quem sabe a gente consiga se articular também com as redes latino-americanas e caribenhas”. Outro ponto levantado pela produtora cultural é a continuidade da luta. “Acho que o nosso primeiro passo é firmar sede, formar novas lideranças que possam dar continuidade a luta. A juventude negra precisa se apropriar da luta e seguir em frente”, finaliza.

Nieta cita o trecho do poema presente no livro do IMUNE, de uma poetisa que é a primeira mulher negra a compor a Academia Mato Grossense de Letras. “A gente se assume, a gente se assina, mulheres meninas, somos IMUNE / trocando com negras / mostrando as negras/ chamando mais negras para novas certezas / são tantos saberes / são tantas belezas / que o nosso peito bate ao saber que percorremos / com 18 anos sendo estandarte da negra voz, da negra arte, da negra cor”. Ela diz que o IMUNE quer dar essa continuidade, manter a sede, ser o estandarte que sempre carregaram e fazer ecoar a voz e salvar mulheres negras da vulnerabilidade.

“Nós não temos dúvida de que sairão outras Sônias, Cristinas, Jackelines, Lídias, Silvinas, Carols, Maristelas, outras Agathas e todo mundo que está no IMUNE. Uma coisa a gente tem certeza: que a nossa voz não vai silenciar. Como a voz da Marielle não silenciou, quando pensaram que ela sumiu, ela ressurge em muitas Marielles”, reitera Nieta. 

A professora acredita que é preciso semear as lutas, bem viver, semear toda forma de respeito e compromisso com a pauta. “O IMUNE plantou muitas sementes nesses dezenove anos. E nós vamos continuar colocando as sementes e regando a semente”. 

Para concluir, Nieta faz um pedido: “Que o Deus da vida nos abençoe para que a gente possa fazer isso. Que todas as nossas ancestrais, que estão em cada uma de nós, nos dêem força para enfrentar essa adversidade que é ser uma mulher preta num país extremamente racista, machista e excludente. Mas a gente não anda só, né? Isso é o mais importante, nós não andamos sós”.

 

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Portal Blogueiras Negras se reinventa para contar as histórias das mulheres negras

O grupo, que há 9 anos ocupa a internet com narrativas de mulheres negras, ganhou fôlego com o Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras do Fundo Baobá

Por Giovane Alcântara*

 

Mesmo com dados evidenciando que as pessoas negras são a maioria no país, ainda pouco se vê desse grupo ocupando espaço nas mídias tradicionais, nas redações e nas TV’s. Isso porque estruturalmente a comunicação é dominada por grandes empresas, grupos e famílias brancas. Pensar na democratização, no acesso e em outras narrativas é uma tarefa histórica dos movimentos negros. 

O lançamento do pasquim que oficialmente deu origem à imprensa negra, “O Homem de Côr” (1883), inicia uma história que, apesar de invisibilizada, se confunde com a história da mídia brasileira.  Nos dias atuais muitas redes desenvolvem um trabalho pautado em visibilizar narrativas negras e dialogar a partir de um outro lugar, vestindo a bandeira do que é, e  sempre foi, muito caro no debate sobre raça, gênero e sexualidades. Redes como Revista Afirmativa, Negrê, Correio Nagô, Geledés, Alma Preta, Blogueiras Negras, Notícia Preta, Portal Mundo Negro, dentre outras, vem abrindo caminhos para novas perspectivas dentro da comunicação nacional.

Atualmente, como ao longo da história, essas mídias encontram diversos problemas para a sua manutenção e sustentabilidade. Como afirma Larissa Santiago, representante do portal Blogueiras Negras: “eu também acredito que, para as mídias contra-hegemônicas, é necessário haver investimento financeiro. A gente precisa ganhar dinheiro pelo trabalho que a gente faz. Esse reconhecimento precisa vir também financeiramente, mas não só”. A blogueira negra acredita que é preciso que o trabalho das pessoas negras comunicadoras precisa ser reconhecido também entre os seus pares e que é preciso criar redes. “Eu acho que é muito importante que os movimentos sociais e os movimentos negros, os quais caminham aí do lado das mídias negras, estejam atentos a esse processo e que a gente se retroalimente né?! Nós, as mídias, criando conteúdo para os movimentos, os movimentos criando conteúdo para as mídias negras”, defende.

O Blogueiras Negras, da qual Larissa é integrante, é uma das contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.  

Essas mídias negras, alternativas, comunitárias, disseminam e amplificam outras vozes se relacionando com os movimentos sociais e os tempos históricos instituídos. São herança de um passado não tão distante, e muito presente. 

 

Outras vozes: Blogueiras Negras

Criado em 2012, o Blogueiras Negras surge de uma provocação “Onde estavam as blogueiras negras brasileiras?”. Reunidas em novembro daquele ano, as mulheres a partir de uma blogagem coletiva, desenvolveram textos sobre a relação interseccional entre raça e gênero, levando em consideração duas datas importantes do calendário brasileiro: o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e o 25 de novembro (Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres).

A princípio o projeto tinha como objetivo amplificar as vozes de mulheres negras, mas essa missão mudou. Segundo Viviane Gomes, coordenadora do Blogueiras Negras, atualmente a organização quer inspirar mulheres negras a contarem suas próprias histórias na internet. “Veja que a missão muda um pouquinho, porque a gente entendeu que dar visibilidade a gente já conseguiu fazer. Então, a gente quer inspirar outras mulheres a continuarem contando suas histórias na internet”, afirma.
O apoio do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco permitiu a continuidade do projeto, mas não era esse o principal objetivo da comunidade de autoras que compõem o Blogueiras Negras. 

 

Legado e continuidade

O principal objetivo da comunidade de autoras do Blogueiras Negras, com o apoio do Fundo Baobá, era estruturar um planejamento estratégico da organização. A ideia era pensar e viabilizar, primordialmente, a preservação e a memória dos textos que já estavam publicados. Até então, a intenção era o encerramento do projeto. Ainda de acordo com Viviane Gomes, o projeto permaneceu no ar porque elas compreenderam que ele não era apenas mais delas e representavam uma outra cadeia produtiva de mulheres e da sociedade em geral. “A gente compreendeu também que esse projeto não era mais só nosso, não era só das pessoas que cuidavam dele diretamente, imagina se a gente tirar [do ar]. A gente é referência de pesquisa acadêmica também, se a gente retira esse blog do ar a gente também retira esses textos do ar. Entendemos que o projeto não era mais nosso, o projeto era da comunidade que fazia ele”, afirma. 

Nesse sentido, o Fundo Baobá foi fundamental para a continuidade do Blogueiras Negras, no que tange estruturar um ambiente mais seguro para a comunidade de autoras e do próprio blog. “Até pra ele ser deixado sem atualização precisa de uma estrutura. Não apenas para a sua manutenção e disponibilização em local seguro. Mas, a gente decidiu, também, que nós deveríamos atualizar essa missão inspirando outras mulheres negras a contar suas próprias histórias na internet. Continuando esse legado, deixando esse legado para as futuras gerações”, complementa. 


Pandemia e planos

A pandemia de covid-19 pegou todo mundo de surpresa e com as lideranças do Blogueiras Negras não foi diferente. Durante esse período, alguns planos tiveram que ser alterados: “A gente transformou muito o projeto com a chegada da covid-19. Tínhamos 100% das atividades presenciais, encontros planejados, milhares de atividades que seriam presenciais”, comenta Larissa. Ela afirma que as blogueiras negras já vislumbravam em fevereiro os indícios de um momento bastante duro no Brasil. “E nesse percurso, de 2020 pra cá, nós tivemos perdas irreparáveis. Nós tivemos mortes de familiares dentro do grupo, tinham as pessoas doentes dentro do grupo. Nós também adoecemos nesse processo, mentalmente, fisicamente… Então isso tudo dificultou a execução 100%, mas nós fomos capazes de produzir as coisas que a gente se comprometeu” relata Larissa.

Viviane diz que esse adoecimento foi o estopim para que as autoras envolvidas no projeto procurassem ajuda psicológica. “Esse tempo teve um preço muito alto pra nossa saúde mental porque a gente trabalhou o triplo. Quando você tem poucas pessoas e uma delas não consegue fazer as coisas, é óbvio que as outras ficam sobrecarregadas. E é óbvio que algumas coisas podem sair do lugar nesse processo e saíram, a gente simplesmente paralisou”, comenta. Viviane aponta que, apesar de iniciar as atividades propostas e de já ter feito o planejamento estratégico, havia uma dificuldade em converter isso nos produtos que elas queriam. 

A coordenadora ainda nos revelou que o fato de não ter conseguido levar o número de pensadoras, autoras, que haviam pensado para o planejamento estratégico, fez  sobrar recurso que foi investido em terapia. “E a gente finalmente teve a coragem de pedir ajuda. Hoje a gente faz um acompanhamento com a Amma Psique, com a Lucinha, Maria Lúcia da Silva. Conseguimos concretizar, finalizar os objetivos, e tá conseguindo também trabalhar questões que são muito específicas da população negra no que se refere ao trabalho, ao sucesso, ao nosso desenvolvimento intelectual. Coisas que a gente encolhia, não trabalhava e não pensava”.

 

Efeito Multiplicador

O financiamento do Fundo Baobá foi importante para o Blogueiras Negras porque permitiu a continuidade, o acesso e a multiplicação dos conhecimentos adquiridos. Além da sistematização de planejamento estratégico da instituição. Desses encontros nasce uma cartilha (ainda em fase de conclusão) que ajudará outras instituições a se organizarem. Como afirma Ana Mesquita, responsável pelo desenvolvimento do planejamento estratégico: “Uma das qualidades desse projeto foi ter pensado que essas oficinas não iriam ficar somente internas para Blogueiras. A sistematização é justamente para se criar uma publicação e para que essa publicação seja uma multiplicadora dos conhecimentos adquiridos ao longo do processo de formação e do processo de planejamento”.
Mesquita, que é especialista em planejamento e gestão territorial, afirma que não se recorda de uma publicação desse formato para área de comunicação com foco em organizações sociais pequenas. “Então eu acho que vai ser um documento muito inédito. Porque esses processos de planejamento estratégico são muito caros, né? Eles são caros e eles têm uma elite que domina esses conhecimentos e as populações negras de baixa renda, periféricas, indígenas, não têm acesso ao conhecimento”, afirma. Ana diz ainda que  esse conhecimento é importante para, por exemplo, pleitear verbas públicas, conseguir financiamentos e se posicionar frente a outras organizações. “Quando você cria uma cartilha para multiplicar esses conhecimentos, você amplia o escopo de atuação daquela organização para outras organizações que vai ter contato com a cartilha”, finaliza.

Ainda não há data marcada para o lançamento da publicação, mas grupos, coletivos e organizações sociais da comunicação de todo país podem esperar que vem coisa boa por aí!

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Coletiva NegrasFotosGrafias desenvolve projetos visuais com foco no protagonismo de mulheres negras

Apoiada pelo Fundo Baobá, a organização alcançou visibilidade local, nacional e internacional

Por Danielle Souza*

 

Apesar de representarem 52,2% da população brasileira (IBGE – 2020), as mulheres ainda são subrepresentadas em espaços de poder e liderança. No mercado fotográfico, isso não é diferente. A grande maioria dos profissionais de fotografia são homens. Segundo pesquisa feita pela Women Photograph, iniciativa online com mais de 850 fotógrafas documentais ao redor do mundo, a representatividade de mulheres nos cliques das principais agências de notícias internacionais em 2018 foi inferior a 10%. Se feito um recorte racial, as mulheres negras têm ainda menos oportunidades de mostrarem os seus trabalhos e de ocuparem espaços historicamente negados como este.

Em contrapartida a essa realidade, surge em 2016 a Coletiva NegrasFotosGrafias, através do movimento e articulação de fotógrafas negras do circuito carioca, a fim de apresentar novas narrativas produzidas por e para mulheres negras. NegrasFotosGrafias foi uma das coletivas  apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Intitulada no feminino, a Coletiva realiza exposições, rodas de conversa, debates e lives que colaboram com a educação visual, a interlocução de linguagens, ensino de fotografia, criação e memória viva. O objetivo é utilizar isso como instrumentos afirmativos para equidade racial e de gênero. Sua missão é fomentar a visibilidade das mulheres negras e suas produções, assim como a consciência de afrovisualidade brasileira a partir de narrativas visuais afirmativas, antirracistas e antissexistas. O nome evidencia o protagonismo de mulheres negras que, ao registrar imagens, escrevem narrativas e grafam seus nomes na embranquecida fotografia e visualidade brasileira”, afirma Adriana Medeiros, organizadora do Projeto Olhar e Escuta em Rede de Criação. 

A iniciativa tem por objetivo estimular as mulheres negras ao desafio de se reconectarem aos territórios de afeto internos e externos, através da reflexão, aprimoramento e publicização de suas trajetórias e ações diante do mundo e da localidade. A Coletiva atua em regiões periféricas do Rio de Janeiro, como Duque de Caxias, zona norte e oeste da cidade, verdadeiros ‘berços de formação, produção e circulação visuais’. “Esses territórios são guardiões da história, cultura e saberes populares, reinventores cotidianos da identidade viva brasileira. Também são palco de negligência e violação de direitos pelo poder público e privado, que se aprofundam, adoecem e matam nossos povos”, declara Adriana. 

Atuação em meio a pandemia

Assim como outras organizações, antes da pandemia, as atividades do grupo eram desenvolvidas de forma presencial. Mas, a perda do contato físico não impediu que elas avançassem em suas conquistas no espaço acadêmico, escolar, entre coletivos e lideranças. Com o apoio do Fundo Baobá foi possível aprimorar conhecimentos em gestão, elaboração de projetos, planejamento, gestão financeira, marketing digital, comunicação interna e externa, além de ajustar as novas capacidades tecnológicas, atraindo mais seguidores nas mídias sociais. Essa migração para o digital possibilitou conexões com outros coletivos no Rio de Janeiro, em outros lugares do Brasil, países da América Latina e Estados Unidos, evidenciando a atuação da Coletiva em âmbito local, nacional e internacional. 

Segundo Adriana, essa rede de criação já era um dos objetivos almejados pela Coletiva há algum tempo. “Estamos finalizando novos conteúdos com novas conexões e parcerias com potencial alcance. Essa rede busca intervir artisticamente na produção de sentidos com efeito político para preservação da memória das mulheres negras e na construção de identidades referenciadas em nossa ancestralidade, atualizando a própria identidade brasileira”, afirma a coordenadora. Adriana ressalta também o quanto esse processo tem sido rico e prospectivo, não só na busca por novas parcerias, mas também no fortalecimento das antigas. 

A Coletiva NegrasFotosGrafias tem, atualmente, 9 membras. Ao longo do projeto foi possível conectar-se a mais 25 profissionais envolvidas nas capacitações e produções, além de grupos de estudantes e projetos atendidos pela Coletiva, onde são aplicados os aprendizados. Só nas mídias sociais da instituição, foram mais de 400 pessoas impactadas com as lives e aulas promovidas, sendo a grande maioria mulheres negras.

A professora Simone Ricco faz parte da Coletiva desde o início e confessa que esta é uma experiência desafiadora, que envolve esforço mas que resulta em fortalecimento. “Conciliar a vida profissional com as ações da Coletiva me tira da zona de conforto, pois as demandas envolvem criação artística e criação de meios para transformar os projetos em ações concretas”, afirma.

Simone reforça ainda que o formato de atuação colaborativa da Coletiva foi de suma importância para sua atuação no projeto, beneficiando-a e a todas as membras, com a ampliação de conhecimentos. Para ela, os relatórios de avaliação também foram importantes no processo, pois ensinaram sobre organização, apontando questões técnicas e estruturais que as fizeram aprender sobre pontos fortes e fracos presentes no percurso da Coletiva. “Também vale destacar os aprendizados sobre autocuidado e psicologia, resultantes dos encontros com o Instituto  AMMA Psique e Negritude e do curso de Comunicação Não Violenta, além de todas as mudanças aplicadas em nossa prática a partir das oficinas. A aprovação no edital é uma aprendizagem sobre conquistas possíveis a partir da mobilização de mulheres negras. Aprendi a acreditar mais em nós”, finaliza a professora.

Outra membra que também está presente na Coletiva NegrasFotosGrafias desde a sua idealização é a antropóloga e professora universitária, Bárbara Copque. Para ela, neste espaço é possível estar em irmandade, refletindo sobre os regimes de visualidades e representações que envolvem as mulheres negras. “As imagens pretas são violadas, controladas e,constantemente, demandam questões. Se antes pensar tais questões eram individuais, pessoais, hoje toma-se outra dimensão. É uma questão política que precisamos enfrentar e confrontar”, afirma. Bárbara ressalta ainda que, ao participar do Programa, pôde pensar em conjunto na estruturação das ações da Coletiva, como: cursos de formação sobre diversas áreas pertinentes à organização; produção de uma memória e sua preservação, bem como seu compartilhamento.

 

Olhar e escuta para o futuro 

A Coletiva NegrasFotosGrafias se prepara para fazer o lançamento do seu website, além de também ter criado o seu canal no YouTube, outra ferramenta de divulgação das suas ações. A logomarca da organização também mudou e hoje, ressignificada, está mais alinhada às premissas do grupo. Ela enfatiza agora o compromisso político com a ancestralidade, o feminino e a fotografia a serviço da igualdade. Foram feitos investimentos na infraestrutura, com equipamentos para armazenamento, e banco de imagens, para gerar conteúdos narrativos visuais em abrangência estadual. 

A Coletiva NegrasFotosGrafias também recebeu convites para participar de reflexões na pesquisa e no meio fotográfico diante de outros coletivos negros e feministas. A organização desenvolveu reportagens através de memórias locais e a série Ciranda das Rainhas, com lideranças negras, onde cada ativista reconheceu a luta uma da outra, mesmo em territórios e campos de atuação diversos. 

Em termos de perspectivas para o futuro, a Coletiva pretende atuar na produção de microreportagens; séries de conversa audiovisuais; oferecimento de curso de formação visual antirracista e antissexista, trazendo referências femininas pretas e ancestralidade; e inserção no mercado de acervos fotográficos. Além disso, elas também aguardam pelo resultado de projetos submetidos a editais artísticos com outros coletivos e estudam a criação de uma rede de corresponsabilidade com acervos locais e visualidades produzidas por pessoas negras.

Com o foco no olhar sobre as mudanças nos territórios segundo as dificuldades na pandemia, a Coletiva fez a preservação de acervos particulares, histórias de grande impacto da imaginária local. Segundo a coordenadora Adriana Medeiros, aprender a governança em grupo também as potencializou a realizar seus sonhos e projetar o futuro sem restrições, inspirando outras lideranças e outros projetos. Além da técnica, as formações auxiliaram na visão política do mundo relacionada aos aprendizados internos como autocuidado, paciência, coragem, autoestima, sabedoria, autoconhecimento e confiança no grupo, proporcionando valorização de cada membra e equilíbrio interno.

“Estamos mais instrumentalizadas para produzir novas visualidades e produzir alicerces de formação visual e fotográfica, que incluam a perspectiva histórica local e política, técnica decolonial. Esse período representou um desfecho de tudo o que provocamos e buscamos por um ano e hoje podemos tornar visível. Aprendemos a resistir e acreditamos”, conclui Adriana.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Nas ruas e nas redes: Marcha das Mulheres Negras de São Paulo segue em passos firmes

Organização apoiada pelo Fundo Baobá precisou se adaptar em meio a pandemia do coronavírus

Por Morgana Damásio*

 

Pela tela do computador, Mara Lúcia da Silva, a Omara, se apresenta. É lésbica, feminista e seus cabelos grisalhos também nos contam sobre os anos na luta antirracista. Mais tarde descubro que ela também carrega o samba no coração. Na janela ao lado, com um sorriso, Eliane Almeida conta que é jornalista, tem 50 anos e é mãe de Isabela, de 20 anos, e de Vitória, de 8 anos. Na sequência, conheço Fernanda Chagas, jovem, socióloga e pesquisadora. Mulheres negras: Omara, Eliane e Fernanda; partilham os passos na Marcha das Mulheres Negras de São Paulo (MMNSP). Juntas, ajudam na construção da organização, de uma maneira horizontal e coletiva com outras mulheres negras. 

“O que tem de maravilhoso dentro da Marcha é a pluralidade” conta Omara. “Existem mulheres que são partidárias, mulheres que não são partidárias, mulheres que estão ali autonomamente, que fazem parte de outros coletivos  e que se somam  para fortalecer. Somos Marcha, mas também somos outras coisas, então somos múltiplas”, completa. Para ela é justamente essa multiplicidade que faz a Marcha ter força e conseguir todos os anos trazer mais gente para continuidade do processo de luta.

A Marcha das Mulheres Negras de São Paulo é uma das sementes da Marcha de Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência, e pelo Bem Viver, realizada em novembro de 2015, em Brasília. Um marco histórico, em que mais de 100 mil mulheres negras de todo Brasil ocuparam a Esplanada dos Ministérios, pautando um novo projeto de sociedade para o Brasil. Além de São Paulo, outros estados como a Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Pará seguiram com ações estaduais. “É um espaço onde nós mulheres negras conseguimos refletir, lutar, pensar na criação de políticas públicas e debater as nossas especificidades a partir da questão racial, que na verdade é a nossa luta desde sempre […] Essa caminhada já vem de muito mais tempo e de uma forma bem descentralizada”, conta Fernanda Chagas.

A MMNSP foi uma das iniciativas apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. “Nós mergulhamos, foram dias e dias de reuniões no SESC, café, fala e debate. Foi muito rico esse processo, porque mobilizou nossas mulheres. Só que juntamente com a aprovação do projeto veio o corona, né? Ficamos paralisadas, a gente pensou tudo no físico e tivemos que transformar para o virtual”, explica Fernanda, que também destaca que muitas companheiras não tinham celular ou acesso a internet.

Assim nasceu o “Projeto Aquilombar e Ampliar Universos – formação política para mulheres negras”, que entre março de 2020 e julho de 2021 impulsionou a formação das mulheres do MMNSP para atuação política e compreensão da realidade social. O objetivo do projeto foi fortalecer estratégias de comunicação e ampliar o alcance da luta antirracista para as redes sociais. Foram 12 formações com diferentes temáticas; cerca de 50 atividades relativas ao Julho das Pretas e a Marcha do 25 de julho em 2020 e 2021; além da reativação do site, criação do canal do Youtube e otimização do uso estratégico do Facebook e Instagram. “Acontecia uma formação política e uma técnica, intercaladas, e isso foi de um grau muito enriquecedor. Hoje a gente consegue perceber, inclusive, qual o potencial temos de utilização dessa ferramenta para as próximas marchas”, exemplifica Eliane. Ela pontua que a Marcha entendeu que, apesar da preferência pelo presencial, há a possibilidade de que mulheres que não estejam em São Paulo participem das reuniões por outros canais. Eliane destaca que se apropriar dos conhecimentos técnicos é também uma ferramenta política.

Nas formações, temas como: segurança digital, artivismo, produção de conteúdo para redes sociais, violência política contra mulheres negras e os impactos da pandemia para mulheres negras foram trabalhados. Além dos processos formativos, as mulheres da Marcha seguiram com os outros projetos, articulações políticas e se engajando nas questões trazidas ou agravadas pela pandemia e que afetam, sobretudo, as comunidades negras. Tais como: projeto político e representatividade nas eleições, vacinação, moradia, emprego, genocidio, demarcação de terras quilombolas e indígenas e auxílio emergencial. “Todo dia tem alguma coisa, todo dia é um sete a zero. Nós perdemos algumas companheiras e também tem os meninos que elas deixaram, né? A gente tenta, dentro do possível, também fazer um acompanhamento desses jovens. É correr atrás de  terapia, escola, é muita demanda”, partilha Omara. Ela rememora o quanto a rede de apoio se intensificou entre as mulheres da Marcha durante o período de isolamento social.

 

“Nenhum passo atrás” 

No primeiro ano de experiência do projeto, o Julho das Pretas realizou trinta dias ininterruptos de atividades, alcançando mais de um milhão de pessoas na internet. No dia 25 de Julho foram doze horas de programação aberta online. “ A sobrecarga foi  uma loucura, porque a gente não tinha realmente dimensão dessa coisa, né?”, comenta Omara sobre a adaptação da programação para o espaço virtual.  “ Quando acabou estávamos esgotadas”.

Na edição deste ano de 2021, as mulheres refletiram sobre a sobrecarga e o autocuidado e reduziram a quantidade de ações durante o mês. “A formação sobre autocuidado foi um momento muito importante para nós, de fortalecimento mesmo. Pra que a gente conseguisse ver e entender tudo que estava acontecendo”, comenta.

A marcha virtual, das 16h às 20h, foi mantida. Projeções e faixaços em 5 regiões de SP (capital) e mais 4 cidades paulistas (Santos, Osasco, Santana de Parnaiba e Mauá) foram realizados.

As mulheres da Marcha destacam que a formação sobre planejamento estratégico e governança, oferecidas pelo Baobá, também foram fundamentais para esse realinhamento. A formação trouxe reflexões importantes sobre a missão da organização,  a visão e o planejamento a curto, médio e longo prazo. “ A Marcha cresceu em qualidade e alcance”, finaliza Omara.

Trecho do Manifesto MNNSP

E como fazemos em São Paulo desde 2016, demonstramos nossa indignação e força. Milhares de mulheres negras e indígenas, lésbicas, bissexuais, trans e travestis, quilombolas, ativistas e ciberativistas, jovens, idosas, estudantes, educadoras, donas de casa, militantes, artistas, desempregadas, profissionais liberais, profissionais do sexo, servidoras públicas, comunicadoras, professoras, catadoras de recicláveis, profissionais da saúde, defensoras de direitos humanos, parlamentares, jornalistas, católicas, protestantes, de terreiro, sem religião, com fé na força de cada uma de nós, seguimos avançando e movendo o Brasil pelo Bem Viver.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Mulheres negras periféricas de Recife (PE) se reinventam em projeto de formação política feminista e antirracista

A Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Espaço Mulher e Cidadania Feminina promoveram em conjunto formações com mulheres de bairros da capital pernambucana, além de se fortalecerem institucionalmente

Por Jamile Araújo*

 

Com o objetivo de fortalecer lideranças negras, femininas e periféricas de Recife (PE) e região metropolitana, o “Projeto Olori: mulheres negras e periféricas construindo lideranças” foi um dos projetos apoiados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Executado coletivamente pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Espaço Mulher e Cidadania Feminina, o projeto realizou formações com mulheres de bairros da capital pernambucana, e ações de fortalecimento das três organizações que construíram a iniciativa. A trajetória de Ediclea Santos, Liliana Barros e Rosa Marques, coordenadoras do projeto Olori, mostra a resistência e reinvenção das mulheres negras nas estratégias de combate ao racismo e ao machismo. 

Liliana Barros faz parte do coletivo Cidadania Feminina, uma organização de mulheres negras periféricas sediada no Córrego Euclides, em Recife. Liliana explica que os principais eixos de atuação do Cidadania é o enfrentamento da violência contra as mulheres e o combate ao racismo.  “Eu comecei pelo Cidadania Feminina, depois integrei o Fórum de Mulheres de Pernambuco, e em 2016 nasceu a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e comecei uma aproximação. Hoje eu integro a Rede de mulheres Negras, trabalho na sala da rede”, diz. Liliana também integra a Articulação de Mulheres de Bairros, composta por nove entidades que se organizam para se manterem na atual conjuntura.

O Espaço Mulher é um grupo de mulheres negras, periféricas, feministas e antirracistas, que tem 22 anos de história, seu nascimento data de 22 de janeiro de 1999, na comunidade de Passarinho em Recife. “Começou com um grupo de trabalhadoras domésticas. Eu vim do Morro da Conceição, lá eu já fazia parte do grupo de mulheres do Morro, já fazia teatro e já conhecia o fórum de mulheres”. Clea, como Ediclea é chamada por suas companheiras, relata que entrou para a militância nos anos 80. “E até hoje a gente faz a resistência diária, pela falta de políticas públicas. Além de ser um grupo de mulheres negras que luta por várias coisas aqui na comunidade, como saúde e educação, porque é uma comunidade pequena, que a escola e a saúde que tem não agrega todos os moradores”. Assim como Clea, Evandra Dantas, conhecida como Vânia, também faz parte do Espaço Mulher e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. “Eu e Clea estamos desde o começo do Espaço Mulher, porque nós éramos trabalhadoras domésticas”, diz.

Desde 2015 o Espaço Mulher realiza uma ação chamada “Ocupe Passarinho”. Antes da pandemia as mulheres faziam palanque feminista na rua, carta política, feira agroecológica e oficinas para mulheres. Clea conta ainda que em Passarinho falta lazer e esporte para os jovens, por isso a comunidade tem realizado diversas reuniões com secretarias em torno dos temas segurança pública, lazer e esporte. 

Com uma trajetória em movimentos sociais desde a década de 80 entre movimentos de juventude e movimento negro, Rosa Marques hoje é militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Rosa relata que a Rede foi fruto do processo de construção da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo à Violência e pelo Bem Viver. A Marcha aconteceu em 2015 e reuniu em Brasília mais de 100 mil mulheres negras de todo o Brasil. “Quando a Marcha das Mulheres Negras iniciou sua construção, a gente foi sendo convidada para articular as mulheres negras nos estados. Então se formou um comitê impulsor de Pernambuco e cada uma, a partir do seu local, de suas possibilidades financeiras, pois não tínhamos recurso mesmo de mobilizar, foi juntando essas mulheres”, afirma.

Segundo Rosa, fizeram parte dessa construção diversas mulheres, organizadas em coletivos ou não. “E a gente foi construindo essa marcha nos processo de formação política. Porque a gente não queria que as mulheres fossem para a Marcha por irem, a gente queria que elas soubessem porque estávamos indo, porque estávamos marchando contra o machismo, contra o racismo e pelo bem viver”, ressalta. 

Rosa conta que elas saíram da Marcha com dois compromissos, o primeiro foi realizar a Marcha em Recife, depois de Brasília, para as mulheres que não foram. E “o segundo foi o fechamento do comitê. E aí nasce a Rede, porque a gente fechou o comitê, mas as mulheres disseram ‘nós não queremos mais voltar para as nossas casas e dormir’”, diz Rosa.

 

Formação política e fortalecimento das organizações

De acordo com Rosa, a ideia do projeto surgiu para fortalecer umas às outras enquanto segmento de mulheres negras, pois a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco já possui uma inserção no campo da mobilização de recursos e já teve outros projetos financiados, mas o Espaço Mulher e o Cidadania Feminina possuem menos estrutura e necessitavam bastante de apoio financeiro. “Quando a gente viu esse edital a gente pensou: ‘é agora’”, afirma.

O Projeto Olori contou com formação política virtual para mulheres negras periféricas organizadas e não organizadas em coletivos, beneficiando cerca de 200 pessoas. Mas, possibilitou também que fossem adquiridos equipamentos, que houvesse a sistematização das histórias das organizações, a catalogação dos livros da Biblioteca Maria Antônia, do Cidadania Feminina, entre outras coisas.

“Nosso projeto foi muito interessante porque foi um trabalho de formação com mulheres da articulação de bairros de várias periferias da cidade do Recife e região metropolitana. Ele foi voltado para a questão da formação, e iria ser feito presencialmente, aí chegou a pandemia, foi todo mundo naquela loucura, sem saber como iria acontecer”, relata Liliana.

Ela conta que houve muitas formações e diálogos com as pessoas do Fundo Baobá para organizar como seria a execução do projeto nesse período. “Então a gente começou o grande desafio de fazer as formações online, com mulheres que muitas vezes tinham muita dificuldade com o acesso, porque para a gente é tudo muito novo. A Rede disponibilizou crédito para os celulares das mulheres para contribuir, fez orientações de como entrar”, relata.

Mesmo com os desafios impostos, Liliana compartilha que as formações tiveram participação constante. “As mulheres estavam acompanhando ali com toda dificuldade. Teve um fato que muito me surpreendeu e não esqueci: foi a Elisângela Lopes, que ela estava no quintal de casa e com ela tinha mais quatro pessoas assistindo a formação’”, conta. 

Clea diz que o projeto veio também para dar visibilidade e contribuir com equipamentos para o Espaço Mulher. “Ajudou a gente a comprar vários equipamentos que a gente não tinha, computador, telão, caixa de som, veio muita coisa pra gente. Nós também somos artesãs, o dinheiro dos artesanatos que  a gente vende é para um lanche, para pagar uma água ou luz. Então a gente só tem a agradecer”.

Liliana ressalta que além da catalogação da biblioteca e de materiais, a sistematização da história das organizações foi muito importante. “O Cidadania Feminina começou num quintal de uma casa, mulheres tomando cerveja e foi aumentando o número de mulheres. A gente sabe da história, mas a gente não tinha isso registrado”, descreve. A militante afirma ainda que o projeto deixou frutos não só no Cidadania, mas por onde ele passou com a formação. 

O Espaço Mulher deu um grande passo a partir do projeto: a produção do estatuto da organização. “A gente tinha um problema seríssimo porque a gente não tinha grana,  e esse projeto deu a oportunidade de estarmos fazendo nosso estatuto, está no cartório”, relata Clea. Ela diz ainda que as mulheres permanecem no grupo da formação e que estão animadas para saber se terá continuidade. “Foi um projeto diferente porque nem todas as mulheres sabiam abrir o aplicativo, e a maioria que se inscreveu permaneceu do início até o fim. Foi um projeto que deixou frutos e, para gente, foi muito rico”, reforça.

Além do grande desafio imposto pela pandemia de covid-19, as mulheres apontam que coordenar um projeto coletivamente foi algo novo para elas. “A gente não tinha feito isso ainda, a gente faz cada uma no seu segmento ou organização. Então foi um grande desafio coordenar um projeto juntas. Buscando outras mulheres que não estavam nem na rede, nem no Espaço Mulher, e nem no Cidadania Feminina, para somar nesse processo de formação política e a gente teve muitos aprendizados”, destaca Rosa.

 

O processo em meio a pandemia 

As coordenadoras do projeto consideram que a pandemia foi o pico da surpresa desagradável. “A gente estava com o projeto presencial, mas quando chegou a pandemia a gente se deparou com as nossas mulheres em processo de fome, depressão, inquietação, de doenças, e a gente no início não olhou muito para o projeto, fomos cuidar de nós mesmas. Porque ou a gente cuidava ou a gente ia se perder”, explica Rosa. 

Rosa afirma ainda que a pandemia também trouxe mudanças de comportamento e novos conhecimentos: “Agora, minha filha, pede para Ediclea, Vânia, e Liliana organizarem uma live aí. Daqui há um dia elas estão fazendo webnário. Isso foi um aprendizado. A gente não tinha acesso a essas informações, mas a gente buscou e executou o projeto lindamente”, aponta. Vânia reage ao comentário de Rosa sobre o webnário: “Não sei fazer ainda, mas se me botar para fazer eu faço”, diz de forma descontraída. 

Um dos aprendizados com o projeto que Liliana pontua foi o de fazer planejamento.  “Para nós que somos de organizações periféricas, a gente não pensa muito no planejamento, a gente planeja, mas o dia a dia da gente é nos ‘corres’ mesmo. Então, parar para pensar como ia ser, planejar essas ações foi uma parte da formação que nós tivemos”.

 

“Enquanto eles pensam em nos matar, coletivamente a gente resiste para não morrer”

“Eu acho que o Fundo Baobá poderia proporcionar novamente esse tipo de projeto, e também proporcionar que outras organizações possam fazer. O Espaço Mulher agora com o estatuto em mão, ele pode ter um espaço de onde buscar recursos”, pontua Rosa.

Liliana reflete sobre o futuro na perspectiva do momento atual que o Brasil atravessa: “Quando você pergunta o que esperamos para frente, não consigo pensar. Porque para nós que somos de bairros populares, a situação não está fácil, está extremamente difícil”. Ela acredita que é preciso continuar fortalecendo as lideranças que estão na base. “Porque muitas de nós já não conseguimos reunir tantas mulheres porque as dificuldades estão deixando as mulheres sem acreditar, o sentimento do descrédito começa a aflorar com muita força”, reitera. Ela diz ainda que sonha com projetos mais acessíveis para quem é da base. 

Fico pensando como fortalecer esses grupos. A gente só entrou nesse projeto porque a gente estava em grupo, no coletivo. Porque a maioria das organizações pedem que os grupos tenham CNPJ, os grupos periféricos de mulheres negras ‘dançam’, todas as vezes que a gente escreve”, diz Clea sobre os desafios para o futuro. Clea conta que o Espaço Mulher resiste porque possui grandes parceiras que “chegam junto em termos de alimentação, de doação, dando oficina, então a gente tem uma grande parceria que nos fortalece. E a gente só se fortalece quando está no coletivo. Porque se a gente estivesse sozinha aqui em Passarinho, pode ter certeza, a gente não tinha saído do canto”.

Clea finaliza reforçando sua gratidão ao Fundo Baobá e ao projeto. “Só tenho a agradecer a esse projeto, por esse apoio, por fazer tanta gente se reconhecer como mulher negra, porque a gente precisa falar de racismo. A gente tem que sustentar que é mulher negra, periférica, e a gente resiste. Enquanto eles pensam em nos matar, coletivamente a gente resiste para não morrer”, conclui.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Fundo Baobá apresenta as 47 iniciativas empresariais escolhidas para serem apoiadas pelo seu edital de Recuperação Econômica

Em evento virtual ocorrido no dia 24 de março, o Fundo Baobá para Equidade Racial reuniu os selecionados para serem apoiados pelo edital de Recuperação Econômica, lançado em novembro de 2020. Estiveram presentes na live de lançamento membros das 47 iniciativas apoiadas, além de representantes da Coca Cola Foundation, do Instituto Coca Cola Brasil, Banco BV e Instituto Votorantim. 

A situação de pandemia que acontece em todo mundo levou o Fundo Baobá a lançar em 11 de novembro de 2020 o edital de Recuperação Econômica para Micro e Pequenos Empreendedores (as) Negros (as). Um rigoroso processo de seleção foi iniciado e concluído no dia 25 de fevereiro, com a divulgação da lista dos escolhidos. O edital teve 700 inscrições, 598 foram validadas, 273 foram para a entrevista, 141 receberam a recomendação para avaliação e, como determinavam as regras, 47 iniciativas foram selecionadas para  receber aporte de R$ 30 mil. As iniciativas teriam que ter composição societária de três empreendedores negros ou negras. 

Na abertura do evento, a diretora de Programas do Fundo Baobá, Fernanda Lopes, destacou a importância do programa de Recuperação Econômica. “Esse programa é parte da resposta do Fundo Baobá, frente aos impactos da emergência sanitária na vida da população negra. Sabemos que a pandemia do coronavírus acentuou as desigualdades socioraciais no nosso país. Sabemos como o empreendedorismo negro foi afetado, que a saúde financeira dessas empreendedoras e empreendedores foi afetada. Esse programa tem o objetivo de fortalecer o ecossistema de apoio ao emprendedor negro, envolvendo diversos atores que atuam nesse campo, Esse programa se insere dentro de um eixo prioritário de investimento do Fundo Baobá,  que é o desenvolvimento econômico”, disse. 

O presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá, Giovanni Harvey, enalteceu o espírito das pessoas empreendedoras e chamou a atenção para o incentivo que elas precisam ter. “De forma geral as pessoas acham que aqueles que empreendem não precisam de investimento. E é com muita alegria que vejo instituições como Coca Cola e BV se juntarem a esse tipo de iniciativa. Mais do que ter tido coragem de apoiar essa pauta está a coragem de apoiar uma pauta para os invisíveis. São os mais invisibilizados com o discurso ilusório de que quem empreende não precisa de investimento. A ação de empreendedores negros e negras acontece desde antes da abolição”, concluiu. . 

Giovanni Harvey, presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá

Membro do Conselho Fiscal do Baobá, Marco Antônio Fujihara usou uma analogia para se referir ao espírito empreendedor dos apoiados pelo Programa de Recuperação Econômica. 

“Empreender é como soltar uma pipa. A gente vai soltando corda e ela vai voando. E se a gente tiver muita corda, ela vai voando sempre. Façam essa sua pipa voar muito alto. Mas tenham os pés no chão. Só pelo fato de terem participado desse processo vocês já são liderança”, afirmou

Marco Antônio Fujihara, membro do Conselho Fiscal do Baobá

Heloisa Binello, gerente de Comunicação do Instituto Coca Cola Brasil, e Tiago Silva Soares, gerente de Marketing e Sustentabilidade do Banco BV, falaram respectivamente sobre o que motivou a ideia do edital e a determinação que os apoiados terão que ter. “Nós tínhamos que olhar para o que viria com a pandemia, que era a necessidade de recuperação econômica. Então, espero que essa jornada seja tão importante para vocês como está sendo pra gente”, afirmou.

Heloisa Binello, gerente de Comunicação do Instituto Coca Cola Brasil

Tiago Soares, abordando a determinação, lembrou a trajetória de seus pais como empreendedores. “Minha mãe teve uma banca de jornal, uma pequena livraria e vendeu roupa.  Meu pai foi dono de farmácia. Então, cresci vendo os prazeres e as dificuldades que o empreendedor tem. Parabéns por continuarem em um momento tão difícil pelo qual o Brasil e o mundo estão passando. Espero que seja um caminho muito positivo para todo mundo”, afirmou Tiago Soares. 

Tiago Silva Soares, gerente de Marketing e Sustentabilidade do Banco BV

Representando o FA.Vela, parceiro operacional do Fundo Baobá, estavam presentes João Souza, diretor de Futuros Inclusivos, e  Ludmilla Correa, diretora de Projetos e Programas. “Tivemos a oportunidade de conhecer muitas histórias de resiliência. Particularmente, li, vi e ouvi mais de 200 histórias. Conseguimos desenhar várias experiências e necessidades a partir das escutas que realizamos. Agora, começamos uma jornada incrível para o desenvolvimento de vocês”, disse Ludmilla.

Ludmilla Correa, diretora de Projetos e Programas do FA.Vela

A voz das pessoas apoiadas

Entre as histórias de resiliência vistas  por Ludmilla Correa está a de Ana Verônica Isidorio, do Ceará, da iniciativa Atitudes & Negritudes Cariri, juntamente com Luziana Souza e Antonio Carlos Dias de Oliveira. Mulher lésbica, ela falou da satisfação em ter sido selecionada pelo edital de Recuperação Econômica. “Sou preta, pobre, lésbica e moro longe. A sensação de participar desse projeto é inexplicável. Acreditávamos que seríamos escolhidas. Confiávamos muito no nosso trabalho. Somos de uma região que tem o maior índice de feminicídio do Ceará. Estar aqui é uma grande vitória”, disse Ana Verônica.

Ana Verônica Isidorio, da iniciativa Atitudes & Negritudes Cariri (CE)

Tayná Maysa Passos, do Afroitas – Arte,  estética e gastronomia preta, de Pernambuco, falou da sua esperança de vencer com seu próprio negócio, ao lado de Lucilene Ferreira e Maíra de Melo. “É difícil viver de empreendedorismo. Viver do seu próprio negócio. Mas eu tinha muita esperança de vencer. Agradeço Iansã, que jogou um vento para que a gente ganhasse”, agradeceu.

Tayná Maysa Passos, do Afroitas (PE)

Do Amapá, Rejane Soares e suas parceiras Alcimar Guedes e Nadia Correa formaram o Afrolab Virtual. “É gratificante mostrar que o Norte tem população preta. Que tem mulher preta à frente dos negócios. Que tem gente na nossa luta”, disse Rejane Soares. 

Rejane Soares, Afrolab Virtual (AP)

Encerramento

Coube à diretora executiva do Fundo Baobá, Selma Moreira, encerrar o evento com uma exaltação aos parceiros do Baobá e um pedido para que incentivem novos parceiros. “O que estamos vendo aqui é o resultado de uma história com muitas intersecções. Esses parceiros têm histórico de trabalho e investem na temática do empreendedorismo há longa data. Quero agradecer a eles, que acreditaram e investiram. Peço que busquem outros parceiros para que a gente possa fazer esse tipo de projeto acontecer. Vamos fazer as placas tectônicas se moverem. Quando a gente fala em empreender trata-se de como vamos mover nossa teia. Trata-se de justiça também. Acreditamos muito na potência desses conjuntos. No poder desses trios de empreendedores e empreendedoras”, afirmou.

Esperança Garcia: Iniciativa de coletivo piauiense forma mulheres negras como lideranças

O resultado foram organizações de mulheres locais com maior participação em editais, conselhos, sindicatos e liderando as entidades de que participam

Por Andressa Franco*

 

A necessidade de fortalecer a luta pelo combate ao racismo, ao sexismo, por um modelo de democracia plurriracial e para construção de uma sociedade centrada no bem viver, pede por novas lideranças determinadas a ocupar espaços decisórios fundamentais. Nesse sentido, a capacitação e a formação política e organizacional são instrumentos para percorrer esse caminho.

Possibilitar que novas lideranças femininas tenham habilidade de incidir politicamente em suas entidades ou locais de atuação, através de formações internas e externas, foi uma das motivações do Ayabás – Instituto da Mulher Negra do Piauí para escrever o projeto “Esperança Garcia – Conhecimento de Resistência”. A proposta foi contemplada na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. 

O título do projeto faz alusão a Esperança Garcia, mulher negra escravizada do Piauí, que foi considerada a primeira mulher advogada do estado. Em 1770 ela enviou ao presidente da Província uma petição denunciando os maus tratos que ela e seu filho sofriam na fazenda onde trabalhavam. 

 

Equipe Ayabás

 

O Projeto 

O Instituto Ayabás nasceu com o propósito de debater as implicações do racismo e do sexismo na sociedade, além de lutar pela eliminação das desigualdades e pela valorização e promoção das mulheres negras. Luzilene de Sousa e Silva, conhecida como Leninha, atualmente faz parte da coordenação da organização, e está presente desde a sua fundação. Ela  é bióloga, especialista em cultura afrodescendente e educação brasileira.

Leninha conta que dedicou um dia inteiro à escrita do projeto ao lado da contadora do instituto. Uma vez aprovadas, começaram a desenvolver as atividades, que precisaram ser adaptadas para o contexto da pandemia de covid-19. “Não tínhamos nenhuma habilidade com tecnologia. Mas dissemos: ‘vamos meter a cara e fazer’, e ao meu ver foi um sucesso”, avalia. O resultado foram organizações de mulheres locais com maior participação em editais, conselhos, sindicatos e liderando as entidades que participam. Além disso, ela cita também como resultado o fortalecimento interno da instituição, e maior visibilidade alcançada pelo grupo. 

“É isso que a gente quer, mais lideranças femininas à frente de organizações, porque somos nós, mulheres negras, que carregamos o Brasil nas costas”, acrescenta. Pessoalmente, Leninha, que nem mesmo se considerava uma liderança, destaca as habilidades que adquiriu na área das mídias sociais, e no desenvolvimento de projetos com as consultorias oferecidas pelo Fundo Baobá. “Além do dom da fala. Eu sou envergonhada demais, e com os depoimentos das meninas que disseram que eu fazia parte das mudanças de vidas delas, eu me encorajei mais a falar”, relata.

Para dar início às ações desenvolvidas pela iniciativa, o instituto começou com uma enumeração de entidades e movimentos sociais relacionados com a temática de racismo e gênero no Piauí, para realizar a inscrição dessas mulheres nas oficinas. A partir daí, os resultados se manifestaram a partir da elaboração do site da organização; do primeiro projeto aprovado por uma das entidades participantes das formações; e da produção de um documentário sobre sua realização.

As Ayabás também foram responsáveis pela realização de eventos como a Feira Preta no Julho das Pretas e o III Encontro Estadual de Mulheres Negras, que desencadeou na formalização da Rede de Mulheres Negras do Piauí. Além de aumentar as participações em lives nacionais, regionais e locais falando sobre feminismo negro, enfrentamento ao feminicídio e participação de mulheres negras na política.

 

Nascem novas liderança

Participar dos cursos promovidos pelo instituto afetou a vida de dezenas de mulheres. É o caso da quilombola Marcília Rodrigues, de 31 anos, conhecida como Chitara. Ela enviou um depoimento em vídeo para as mulheres do instituto agradecendo a iniciativa. Professora de capoeira, militante negra rural, quilombola do Grupo Cultural Capoeira de Quilombo do município de São João do Piauí e descendente do território Riacho dos Negros, Chitara participou das formações no intuito de aprender do zero a prática de designer para desenvolver artes para os movimentos sociais em que atua.

“Eu não sabia nada do trabalho de um designer, e hoje posso criar artes de divulgação dos nossos trabalhos. Nos nossos movimentos hoje o dinheiro que a gente gastaria para fazer banners, cartazes e camisetas, conseguimos desenvolver atividades para os próprios movimentos, o que era um dos meus sonhos”, relata. Chitara também é técnica agrícola, comunicadora social, mobilizadora sociocultural, membra no Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de São João do Piauí e fundadora do Coletivo de Mulheres Quilombolas Descendentes do Território Riacho dos Negros. 

“O depoimento dela é maravilhoso, fiquei muito feliz porque o projeto deu ciência às lideranças não só daqui de Teresina, que é a capital do estado, mas também do interior bem longínquo”, pontua Leninha. 

Para a jovem quilombola, os desafios que se seguem são enormes porque ainda são poucos os espaços ocupados por seus pares. “Lidamos com o não acesso às políticas públicas voltada para nós, as retiradas do direito de manter a educação nos nossos territórios e acesso negado ao trabalho para que possamos viver, ter o que comer, conseguir nos manter na roça produzindo”, desabafa Chitara.

Assim como Chitara, Maria das Mercedes Alves de Souza, de 39 anos, também decidiu contribuir para sua comunidade depois de participar das oficinas do projeto. Assim, participou das eleições para coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Piauí, e foi eleita. “Eu acho que foi o máximo dos nossos objetivos”, afirma Luzilene satisfeita.

Também conhecida como Cesinha, Maria das Mercedes é pedagoga, especialista em educação do campo e indígena da etnia Gamela. A entidade que hoje coordena tem por objetivo contribuir com os povos do campo na luta pelo acesso à terra, água e direitos na construção de uma vida digna para comunidades, territórios e trabalhadores e trabalhadoras rurais. Ela afirma que o Instituto da Mulher Negra do Piauí teve uma grande influência na sua formação política, e como liderança dentro de uma instituição. “O Instituto despertou muito em mim a busca pelo meu lugar enquanto mulher no meio social, a lutar pelos meus direitos, a ver que o espaço da mulher é onde a gente deseja estar”, conta. 

 

Obstáculos e Estratégias 

Ocupar uma cadeira de liderança, sendo uma mulher, traz consigo muitos obstáculos. “A gente enfrenta uma sociedade muito cruel, machista e um patriarcado muito forte quando ocupa uma coordenação. Mesmo encontrando no órgão que a gente está atuando o fortalecimento, a sociedade em si ainda é preconceituosa”, destaca Cesinha. Ela acredita que as capacitações como as promovidas pelo Ayabás são, de fato, a melhor alternativa para se enfrentar esses desafios e fazer com que as mulheres se sintam confortáveis quando ocupam essas posições.

Mas, antes de enfrentar esses problemas, os processos de capacitação que influenciaram nas formações dessas mulheres também tiveram suas próprias adversidades. Com a chegada da pandemia, todos os cursos foram adaptados para o formato online, e o acesso à internet foi a dor de cabeça número um. Para isso, algumas das saídas foram as gravações das aulas, e a criação de trabalhos fora do meio virtual para serem realizados entre um encontro e outro.

Lucineide Medeiros, professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), educadora popular, militante feminista e integrante da Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio, ficou responsável por ministrar a oficina de Gestão e Liderança. Ela conta que houve um envolvimento importante de todas as mulheres que participaram.

“No final os testemunhos foram de que o processo trouxe um estímulo para pensar o desafio de ocupar espaços na sociedade e gestar a sociedade que a gente quer, começando pelos lugares em que estamos”, relata a professora. Ela explica que, para além de ocupar esses espaços, foi passado que é preciso fazer isso a partir de princípios que não reproduzem os valores patriarcais e colonialistas, raiz de uma série de problemas sociais.

De acordo com Lucineide, todas as aulas tinham em média 45 mulheres. De diferentes faixas etárias, territórios, rurais, urbanas, mulheres que já eram militantes, ou que ainda não eram. Assim como mulheres de diferentes escolaridades. Por isso, ela teve o cuidado de organizar estratégias que alcançassem o máximo possível essas diferenças. Algumas atividades que implicam escrita, por exemplo, foram adaptadas para as várias formas de expressão que não somente a escrita, como também as expressões artísticas.

“Também haviam as questões de conciliar esses processos de participação com outros afazeres. Para uma parte das mulheres isso não é fácil, considerando que estão em múltiplas tarefas, como as domésticas. Também penso que tem o desafio de, estando nesse espaço virtual, ter condições adequadas para participar, como um ambiente silencioso, ventilado, que dê uma tranquilidade para se concentrar”, acrescenta.

 

Projetos Futuros

De olho no futuro, o projeto que as integrantes do Ayabás vislumbram no horizonte é a Escola de Formação de Lideranças de Mulheres Negras no Piauí. “Esse é nosso projeto maior, assim como trabalhar com crianças e adolescentes, incentivar porque eles são o futuro, os próximos líderes”, enfatiza Leninha. 

O grupo também pretende organizar mais uma edição do Encontro Estadual de Mulheres Negras, já que em 2021 não foi possível. A coordenadora, além disso, idealiza desenvolver oficinas de empoderamento e capacitação dentro do Memorial Esperança Garcia. “A gente também quer trabalhar a questão do afro empreendedorismo, está em alta e diz muito sobre a subsistência das mulheres negras”, finaliza.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Juristas negras criam metodologia de aprendizagem para viabilizar maior acesso e ocupação do Sistema de Justiça

A coletiva de Pernambuco apoiada pelo Fundo Baobá, Abayomi – Juristas Negras, desenvolveu uma metodologia própria com o objetivo de incidir e transformar o Sistema Nacional de Justiça

Por Brenda Gomes*

 

Ao longo do tempo, pessoas negras foram afetadas pelas estruturas racistas do país. Mesmo com recentes avanços relacionados a acessos e ampliação da escolaridade, ainda existem grandes desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Para as mulheres negras, afetadas pela discriminação de raça e gênero, a situação é ainda mais difícil. Essas desigualdades podem ser visualizadas nas diversas áreas, principalmente, nos espaços de poder. 

No Brasil, na maior parte dos ambientes de liderança e cargos de direção que são ocupados por mulheres, são por mulheres brancas. Somente 0,4% são pretas, segundo dados do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. No sistema judiciário, a presença dessas mulheres muitas vezes está apenas representada na base, enquanto homens ocupam os espaços de destaque. Pensando na diminuição dessas desigualdades que a Coletiva Abayomi – Juristas Negras tem realizado ações a fim de impulsionar a carreira de profissionais negras nesta área. 

De acordo com a advogada Débora Vanessa Gonçalves, uma das co-fundadoras da coletiva, a missão do grupo é combater de forma estratégica o racismo estrutural. O foco da organização é ocupar cargos nos órgãos que compõem o Sistema de Justiça Brasileiro. “Vivemos dentro de uma estrutura de poder que é originalmente racista e sexista, o que faz com que as mulheres negras sejam prejudicadas em todos os sentidos. Nossa missão, como coletiva de mulheres negras, é levantar nossas pautas nos espaços que estamos inseridas e levar também outras mulheres negras conosco”, afirma. 

O nome “Abayomi”, de origem yorubá, significa “encontro precioso”. O que diz muito sobre o grupo, que foi formado em 2019, em Pernambuco, após um encontro de juristas negras. O evento foi realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, seção Pernambuco (OAB/PE) no Dia  Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. 

 

Abayomi Juristas Negras em primeiro eventos na OAB Pernambuco

 

A coletiva é um dos grupos apoiados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Com o apoio do Fundo Baobá, um dos investimentos da coletiva foi no aperfeiçoamento da Metodologia Abayomi da Aprendizagem – MADA, que tem como proposta utilizar outras áreas de conhecimento para impulsionar o ensino e as aprendizagens. 

Desenvolvida pela Procuradora Federal e co-fundadora da Abayomi, Chiara Ramos, a metodologia envolve atividades como mentoring, coaching, treinamento estratégico e estudo em grupo afrocentrado. “Diferente dos cursos tradicionais, a técnica leva em consideração quatro pilares: o intelectual, que é toda a teoria exigida nos exames; o mental, que considera as nossas experiências psicológicas; o físico, e o espiritual, onde buscamos resgatar a identidade e autoestima das participantes e colaborar para o rompimento de diversas crenças limitantes”, afirma Débora. 

Com a pandemia de Covid-19, os encontros presenciais das turmas MADA deram espaço a turmas virtuais, o que permitiu a inclusão de alunas de outros estados, ao todo foram 102 pessoas matriculadas. Durante a formação, as alunas tiveram acesso a cronogramas de estudos semanais; encontros on-line para debate de metas; aulas e palestras; atendimentos individuais e simulações de provas objetivas e dissertativas online. Além da formação referente aos temas tratados nos concursos, as participantes são provocadas a ampliarem a capacidade de leitura política a respeito de temas fundamentais para a compreensão do racismo no Brasil.  “Nós não queremos entrar nos espaços apenas para ter números de mulheres negras, queremos estar nesses espaços para fazer diferença. Então, ter esse aquilombamento, onde a gente faz o reconhecimento da nossa negritude e o reconhecimento do nosso espaço, faz com que a gente ocupe os espaços de poder com um outra visão” declara Débora. A advogada ainda afirma que após muita luta, conseguiram na OAB/PE a cota de 30% para advogadas negras dentro do sistema. “Hoje nossa meta é ocupar espaços dentro da diretoria, e só chegaremos lá através de formas estratégias e nos articulando como quilombo”, completa.

Apesar da trajetória das mulheres negras juristas, apesar do empenho de coletivas como as Abayomis, o cenário da magistratura ainda é marcado por sub-representatividades. Segundo o censo divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021, apenas 15,6% dos magistrados do país se autodeclaram como pessoas negras. Quando é feita a segmentação entre sexo e raça, as mulheres negras ocupam apenas 5% dos cargos de juízes do Brasil, 553 dos 10.782. Menos de 5% de mulheres negras exercem os cargos de Procuradoras Federais, Juízas Federais, Procuradoras da Fazenda Nacional, Juízas estaduais, Procuradoras do Trabalho, Advogadas da União e Juízas do Trabalho. Em alguns órgãos, como a Justiça Militar, os conselhos superiores da magistratura e a Procuradoria da República, não possuem mulheres negras enquanto membros. Números que, para Débora, são frutos do racismo estrutural.

“Eu consigo identificar as sutilezas do racismo hoje. Quando a gente consegue entrar nos espaços para exercer a advocacia, é muito visível a falta de diversidade. E o que podemos fazer quando pegamos a nossa OAB? Sermos autônomas? Estamos a serviço da comunidade? Tudo isso são caminhos possíveis, mas não queremos só estes”. Para a advogada é preciso de fato incidir dentro dos ditos espaços de poder para transformá-los. “Os espaços são mínimos para as mulheres negras. Sozinhas não temos como equiparar a carreira com mulheres brancas que possuem privilégios financeiros e/ou familiares em carreira jurídica. Muitas vezes, dentro das nossas famílias, somos as primeiras a nos formar, ou fazemos parte da primeira geração que conseguiu chegar a ter um curso superior”, completa.

A pernambucana, Maria José de Oliveira,  sempre sonhou em seguir a carreira jurídica, e foi com a ajuda da MADA que ela conseguiu a tão esperada aprovação na OAB. “Conheci a Abayomi através de uma colega de faculdade. Quando iniciamos a formação com a MADA eu fiquei maravilhada, pois tudo aquilo era algo novo para mim, apesar de sempre ter tido uma proximidade com as questões sociais”. A advogada, agora licenciada, afirma que  nenhum outro curso preparatório abriria tantos horizontes como o oferecido pela coletiva. “Antes eu não acreditava tanto em mim, aí veio a primeira fase da OAB, depois a segunda fase e depois o resultado. Esse mês ainda [outubro de 2021] estarei lá fazendo meu juramento, para poder em breve dar a minha contribuição para as próximas que virão. A gente precisa estar lá para mudar a estrutura por dentro”, descreve Maria José.

 

Uma proposta de mentoria enegrecida

Uma outra realização possível com o apoio do Fundo Baobá, foi o desenvolvimento do programa Black Coach Abayomi. A partir de técnicas de autoconhecimento e de desenvolvimento pessoal e profissional, o programa tem como proposta resgatar a identidade e a autoestima do povo negro a fim de desenvolver competências para ocupar “espaços de poder”. 

“Os pilares da MADA são utilizados para a formação dessas profissionais, pois acreditamos que é uma metodologia que fala sobre nós enquanto quilombo. É um curso de coach afrocentrado. Para além das técnicas de coach, a gente inclui os quatro pilares da MADA, para que as profissionais que estão sendo formadas possam aplicar esses pilares em seus ambientes de atuação”, conta Débora Gonçalves.

A proposta inicial da formação era atender cinco lideranças, mas com o recurso foi possível atender 20 lideranças. Dentre elas a pedagoga, Viviane Carneiro, que encontrou na mentoria a possibilidade de aperfeiçoar os atendimentos que já realizava. “Em um determinado momento da minha vida eu achei que poderia encorajar outras mulheres com as minhas vivências, e passei a utilizar as redes sociais para disseminar esse trabalho. Mas, nada que eu pudesse comparar com a aplicação da MADA. Após a formação, eu me sinto com maior capacidade técnica para atender outras mulheres”, afirma.

A trajetória das mulheres juristas Abayomis também passou a ser registrada através de artigos no site da coletiva e no Anuário Abayomi Juristas Negras, materiais também produzidos com o apoio do Fundo Baobá. Foi possível incentivar a produção de 50 artigos, com temas relacionados a questões raciais, gênero e o meio jurídico. Uma espécie de registro da luta da coletiva para a incidência no Sistema Judiciário brasileiro.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Mulheres Negras Decidem: Um novo projeto de democracia

Organização do Rio de Janeiro tem o objetivo de promover maior participação de mulheres negras na política institucional e já conta com articuladoras em 19 estados

Por Andressa Franco*

 

Fundada em 2018, a organização Mulheres Negras Decidem (MND), tem como objetivo promover a maior participação de mulheres negras nas decisões do Estado e acompanhar a atuação daquelas que estão na disputa da política institucional. A organização é uma das contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations

“O Fundo Baobá foi primordial nesse processo [de desenvolvimento institucional, comunicação, e ações de incidência da organização], porque desde o início do movimento a gente tem feito muitas ações, mas foram ações que tinham nosso investimento pessoal financeiro”, conta Diana Mendes, de 30 anos, uma das co-fundadoras, e coordenadora de monitoramento e avaliação do movimento.

O que os números dizem

O Brasil tem hoje um cenário de sub-representação das mulheres na política partidária institucional. De acordo com estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), o Brasil é o antepenúltimo país da América Latina em um ranking de paridade política entre homens e mulheres. Quando essas mulheres são negras, grupo que representa 27,8% da população brasileira segundo o IBGE, o quadro se agrava. 

Em 1934, o Brasil elegeu a primeira mulher negra para uma Assembleia Legislativa: Antonieta de Barros. Em 2020, informações da Agência Câmara de Notícias mostraram que, nas últimas eleições, 6,3% das cadeiras nas Câmaras Municipais do país foram para mulheres negras. Curitiba, Vitória e Goiânia, por exemplo, elegeram suas primeiras vereadoras negras. No Congresso Nacional esse grupo representa apenas 2,36%, sendo no Senado 1,2% e na Câmara dos Deputados são menos de 2,5%.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma eleitoral, promulgada em setembro deste ano pelo Congresso Nacional, trouxe uma novidade. Agora, a distribuição do fundo partidário vai privilegiar os partidos que fortalecerem candidaturas de mulheres e pessoas negras. Para efeito da distribuição dos recursos, que leva em conta a quantidade de votos recebidos pelo partido, os votos em mulheres e pessoas negras será contado em dobro. A regra é transitória e tem previsão para durar até 2030.

 

Projeção de lideranças políticas 

É nesse contexto, visando superar a sub-representação feminina negra na política, que a organização Mulheres Negras Decidem atua, e pôde expandir a partir do financiamento do Fundo Baobá, avançando na formação de lideranças políticas que possam representar as demandas das mulheres negras nestes espaços. 

Entre as ações realizadas durante o período do apoio, destacam-se: o lançamento do livro “A Radical Imaginação Política das Mulheres Negras Brasileiras”; o Comitê Marielle Franco de Prevenção e Enfrentamento à Violência Política Contra as Mulheres; e o lançamento da Rede Nacional de Mulheres Negras na Política, que busca mobilizar mulheres negras para alterar a atual situação de baixa representação deste segmento nas esferas decisórias. “Com o apoio do Baobá foi possível a gente se consolidar enquanto movimento nacional, hoje temos articuladoras em 19 estados, quando a gente começou tínhamos 5″, explica Diana Mendes, que é da área de políticas públicas e relações internacionais. Ela trabalha há 6 anos na área social, e acredita que o aumento de mulheres negras candidatas nas últimas eleições foi fruto de articulações e ações pensadas em conjunto.

Benny Briolly (PSOL-RJ), primeira vereadora transexual eleita em Niterói (RJ), comunicadora popular e ativista de direitos humanos, é uma das lideranças que teve apoio da organização. Para a vereadora, o nosso senso de se organizar e coletivizar organizações é o maior avanço que as mulheres negras têm hoje no Brasil.

“A nossa auto-organização proporciona que hoje a gente esteja ocupando, liderando e disputando espaços com a velha política, com a branquitude”, afirma. “Eu costumo dizer que nós, mulheres negras, não nos tornamos militantes, nascemos militantes e somos condicionadas à militância no decorrer da vida. Porque é cada vez mais necessário e urgente lutar pelos marcos da nossa sobrevivência, cidadania e resistência”.

Um dos papéis que a instituição teve para Briolly, além de apoiar sua candidatura, foi também o apoio em relação ao processo de segurança da vereadora, que hoje é uma parlamentar ameaçada no Brasil. “Foram uma das grandes apoiadoras nesse processo de entender a importância do meu corpo, de serem grandes aliadas na construção da minha trajetória política”, conta a vereadora que acredita que a MND é um marco muito importante na construção política social, econômica e de projeto de sociedade. “Elas têm cumprido um papel excelente na estrutura de outras mulheres e, principalmente, nesses processos de formação, de apoio, de se aquilombar para que a luta possa ter eficácia”, acrescenta.

O planejamento estratégico com maior geração de resultados também foi um avanço para a organização, tanto na comunicação, quanto na forma institucional e nas articulações. O diálogo com outras organizações através do Programa foi um dos saldos positivos para o movimento.

“A possibilidade do recurso também ser sobre o fortalecimento do desenvolvimento organizacional dos coletivos que foram contemplados é muito raro dentro do campo social. A ação ou projeto você pode entregar depois do ciclo de um ano, mas a estrutura que você deixa para o ciclo da organização é muito forte, fica a longo prazo”, ressalta Diana.

 

Para Onde Vamos?

É a pergunta que intitula a minissérie documental dirigida por Cláudia Alves, que apresenta o movimento de mulheres negras no Brasil através da história de ativistas que vêm liderando revoluções no modo de fazer e pensar políticas públicas para o país. A produção foi realizada em parceria com o Instituto Marielle Franco, Canal Brasil e FLUXA Filmes.

Para Tay Cabral, ilustradora do produto audiovisual, foi gratificante “ajudar a contar um pouco do legado que as protagonistas da série têm construído e trazer o rosto de mulheres que elas também reverenciam ao longo dos episódios”.  A artista visual, de 25 anos, tem um trabalho voltado para reverenciar mulheres negras que fizeram das suas vidas instrumento de luta, por meio de ilustrações que buscam olhar para esse passado. 

“A série é um instrumento de denúncia e de disputa narrativa, mas também cumpre um papel muito importante de renovar nossa esperança. No sentido de que as coisas estão muito puxadas agora, mas têm mulheres se movimentando na construção de um futuro que a gente acredita e não vão desistir disso”, pondera a jovem que se orgulha de fazer parte do trabalho. A série teve 80% de mulheres negras representando toda a produção no set. 

“Para Onde Vamos” é também o nome da pesquisa feita pela MND com 245 ativistas, mulheres negras de todas as regiões do país. A pesquisa foi feita para que a organização mapeasse essas mulheres, tanto para entender quais ações elas estavam fazendo a respeito da pandemia nos seus territórios, quanto para diagnosticar se elas iam se candidatar, se eram lideranças que recuaram suas candidaturas, entre outros pontos.

 

Pandemia e Desafios Futuros

Os planejamentos iniciais no projeto estavam focados em sistematizar a metodologia da organização enquanto formação, a partir de encontros com as articuladoras em diferentes estados. Sendo assim, a chegada da pandemia de covid-19 impediu que as viagens fossem possíveis.

Algumas atividades, no entanto, não precisaram ser recalculadas, como a atualização da plataforma, e o investimento na comunicação. Mas tudo que foi imaginado enquanto presencial, precisou se adaptar. “Para nossa grata surpresa, isso fez na verdade com que o movimento alcançasse mais mulheres. Nossos encontros pensados de forma online possibilitaram que, nos seis primeiros meses, a gente conseguisse articuladoras em 16 estados, depois cresceu para 19”, comenta Diana.

Com toda a migração para o online, segurança digital também se tornou um tema a ser pensado pelas coordenadoras. “Nos nossos encontros presenciais a gente já tinha todo um cuidado com as articuladoras, com a segurança delas, e pensando isso online, como tiveram várias invasões e tudo mais, a gente também teve todo esse cuidado”.

Para Diana, ainda há muito pela frente, principalmente no próximo ano, que considera desafiador pelo desenho da conjuntura atual, que além de todos os problemas estruturais, trouxe ainda mais desgaste à saúde mental das mulheres negras ativistas. Nesse sentido, aprecia o cuidado e as experiências de troca com as demais lideranças que conheceu a partir do Fundo Baobá.

Também entre os desafios para o próximo ciclo, Mendes pensa métodos para a escuta comunicativa da organização se consolidar também na região Norte do país. A MND tem articuladoras na região, porém elas enfrentam dificuldades, por exemplo, no acesso à internet. “Queremos equalizar lá as ações que a gente consegue fazer no Sudeste. Como é que a gente consolida melhor a nossa articulação e trabalho nesses territórios?”, pontua.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.