O e-book “Negras que Movem: Olhares e Perspectivas das Líderes Aceleradas pelo Fundo Baobá” fortalece o protagonismo em diversos espaços de diálogo e debate
A revolução das mulheres negras através da escrita se iniciou a partir de uma necessidade de sanar diversos obstáculos enfrentados por elas. Em um contexto complexo e imersas em opressão, negligências e vulnerabilidades, foi na escrita que grandes estrelas da literatura brasileira se destacaram, como Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, entre outras, para reivindicar por seus direitos básicos de humanidade, dignidade e presença.
Tal prática se perpetua até hoje entre as mulheres negras, como é para Luciane Reis, uma das idealizadoras do livro “Negras que Movem: Olhares e Perspectivas das Líderes Aceleradas pelo Fundo Baobá”, que deve ser lançado em 10/08/2024, no formato virtual, com aproximadamente 80 artigos. A obra é uma chamada à ação para reconhecer e valorizar as contribuições negras, desafiar os paradigmas estabelecidos, e ampliar o entendimento sobre a riqueza e a complexidade das vozes negras.
São nos escritos que suas dores e reivindicações ganham força para romper séculos de silenciamento e expandir a necessidade de ascensão, protagonismo e representatividade feminina negra na comunicação opinativa e emancipatória. Seguindo o exemplo e inspiração das mais velhas, foi criado em 2019 o coletivo Negras que Movem, com o objetivo de dar representatividade e empoderamento às mulheres negras na comunicação e em todas as esferas da vida social.
Essa iniciativa se tornou viável com a união de 24 mulheres negras selecionadas no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, no qual o Baobá – Fundo para Equidade Racial proporcionou o desenvolvimento financeiro individual e organizacional de diversas lideranças, grupos e coletivos liderados por mulheres negras.
Luciane Reis, uma das contempladas, nasceu no bairro Saramandaia, em Salvador – BA, é especialista em Educação Online e mestre em Desenvolvimento e Gestão, e sempre foi apaixonada por livros desde a adolescência, então se conectar com a diáspora africana, os movimentos de resistência negra e os intelectuais que moldaram o pensamento afrocentrado não foi tão complicado. Pelo contrário, ela enxerga nesse percurso a possibilidade de encorajar outras mulheres negras a encontrar suas próprias vozes e a se tornarem agentes de mudança em suas comunidades.
“Na época em que recebi a doação, eu havia sido demitida do meu emprego. A doação foi essencial para que eu pudesse finalizar minha dissertação de mestrado com tranquilidade. Graças à bolsa, pude concluir meus estudos sem precisar me preocupar com minha sobrevivência básica”, afirma Luciane Reis, sobre o período da vida em que recebeu o recurso.
Ao participar das atividades propostas, Luciane observou a oportunidade de criar o coletivo Negras que Movem. O coletivo surgiu da vontade e necessidade de união dessas mulheres, que enxergaram a potência que havia ao se unirem para alcançar espaços antes intangíveis. Um dos resultados dessa potência foi a oportunidade de publicar seus artigos no portal Geledés, representando uma ampla gama de perspectivas e análises sobre questões sociais, políticas e culturais.
Sulamita Rosa da Silva, mestre em educação na Ufac de Rio Branco, e uma das 24 mulheres negras que compõem o Coletivo Negras que Movem, relata que a participação e os resultados que obteve no Programa fizeram muita diferença em sua vida e que estão gerando frutos que irão repercutir por toda a comunidade negra. “O que precisamos para nos mover é de oportunidades e vocês concederam ao fornecer apoio a muitas pessoas negras. Parabéns por fazerem a diferença na vida dos nossos”, afirma.
Cada texto que será publicado no e-book oferece uma visão única e poderosa, permeada pela vivência e pelo engajamento das líderes aceleradas com as comunidades e os movimentos sociais. Apoiadas pelo Fundo Baobá, essas mulheres inspiradoras têm se destacado em diversas áreas, incluindo ativismo social, empreendedorismo, jornalismo, educação e cultura. São mulheres que, apesar das adversidades, têm feito a diferença em suas comunidades e contribuído para a construção de um mundo mais justo e igualitário para todos.
Apesar da grandiosidade do projeto e da iniciativa, elas ainda encontram diversos obstáculos no caminho, como o financiamento do livro e a dificuldade de publicação dos textos, porque ainda são privadas de ter acesso a recursos econômicos e ao mercado editorial, como acontece com a população negra. Porém, o desejo e a esperança seguem presentes na vida delas e das demais mulheres negras que compõem o coletivo. O que elas realmente almejam é que seus escritos sejam propagados e suas vozes sejam ouvidas, ajudando a construir um mundo mais humano e afrocentrado.
Para mais detalhes e resultados do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas: Marielle Franco, acesse este link.
Por Fernanda Lopes, Diretora de Programa e Giovanni Harvey, Diretor Executivo no Baobá – Fundo Para Equidade Racial.
Uma tragédia brasileira que tomou conta da mídia nacional e internacional completa cinco anos: o ataque brutal que vitimou a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, ocorrido no bairro do Estácio, região central do Rio de Janeiro, na noite de 14 de março de 2018. Um crime hediondo, que causa repulsa na opinião pública até hoje, gerando a recusa de um libelo que não encontrou responsáveis até o momento. A sociedade exige que o crime seja solucionado. Marielle Franco tornou-se um símbolo da luta pelos direitos humanos e fonte inspiracional para um sem número de mulheres que, a partir do exemplo dela, estão mudando seus horizontes.
Euclides da Cunha escreveu que o sertanejo é forte. O favelado também o é. Marielle Franco cresceu como favelada na Maré, uma das comunidades que compõem o Complexo da Maré. Em suas aparições públicas ou no púlpito da Câmara do Rio de Janeiro, ela sempre se apresentava como mulher negra, mãe, socióloga e cria da Maré. Para ocupar o púlpito e um gabinete na Câmara, foi eleita em 2016 com 46.502 votos para um mandato de quatro anos que não chegou a concluir. Uma mulher negra eleita, parte da comunidade LGBTQIAP+.
A opressão funciona como o lodo e suas impurezas, em meio às quais coisas boas podem florescer. Na natureza, a flor de lótus é um exemplo. Na história de Marielle, foi o assassinato da amiga Jaqueline que a fez decidir por um trabalho voltado à defesa e promoção dos direitos humanos, à vida digna e sem violência nas favelas e por uma crítica acirrada aos métodos e processos de trabalho das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. Ao decidir militar em prol dos direitos humanos, em ser a voz dos migrantes nordestinos menos favorecidos e peitar o sistema de discriminação e morte contra os que têm orientação sexual oposta àquela considerada norma, Marielle Franco sabia que teria que batalhar em inúmeros fronts. Mas ela era uma guerreira ímpar. Era figura que vergava, mas não quebrava, como o bambu. Ela se impunha, reivindicava e não descansava enquanto não obtinha resultados. Gente com esse perfil é taxada de incômoda. Marielle era a linguagem do povo, por ser sua representante legítima.
A representatividade de Marielle Franco ganhou corpo nas eleições municipais de 2020. A tradução do empenho das mulheres negras em ter suas vozes sendo ouvidas, suas ações definindo agendas e influenciando o cenário político, foi estampada em números: concorreram a postos nas Câmaras Municipais do país 84.418 mulheres negras, 856 concorreram ao cargo de prefeitas em suas cidades. O movimento Eu Voto Em Negra surgiu de articulações femininas e se baseou em uma frase dita por Marielle Franco: “podemos ser diversas, mas não somos dispersas!”. Os dizeres da vereadora geraram uma onda de afeto e solidariedade feminino-negra que, até então, não havia sido vista em termos de presença política.
O nome de Marielle já tinha alcançado projeção internacional por ser ela uma defensora dos direitos humanos. A sua morte, porém, o elevou a um fenômeno mundial. A repercussão internacional foi muito grande. Alguns dos principais veículos da imprensa mundial, como The New York Times, The Wall Street Journal e Washington Post (Estados Unidos), The Guardian e BBC (Inglaterra), Le Monde e Le Figaro (França), El País (Espanha) e Der Spiegel (Alemanha) abriram e abrem seus noticiários para falar do agressivo acontecimento com a vereadora e seu motorista. E a história não fica por aí: todos os anos esses veículos cobram um desfecho conclusivo da investigação criminal. Isso tornará a acontecer neste 2023.
O fenômeno no qual o seu legado se transformou é uma força da natureza, influenciando todo lugar por onde passa. Nos Estados Unidos, a Universidade Johns Hopkins, em sua Escola de Estudos Internacionais Avançados, criou a Bolsa Marielle Franco, após receber uma doação anônima. O programa é voltado aos estudos de relações internacionais, com foco na América Latina. O Marielle Franco Community-Design Award é um prêmio de 10 mil euros criado em Portugal para incentivar arquitetos que trabalham com favelas ou áreas em que vivem pessoas em vulnerabilidade social. Uneafro, Pré Vest Comunitário, Emancipa e outras iniciativas educacionais criaram cursinhos pré-vestibulares voltados a alunos, alunas e alunes negros, negras e negres visando facilitar o caminho de acesso ao ensino superior.
O Fundo Baobá para Equidade Racial, em 2019, baseou-se no impulso influenciador que a atuação da mulher negra, vereadora, favelada e LGBTQIAP+ havia deixado como legado e criou o Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Seu objetivo: ampliar e consolidar a participação de mulheres negras em posições de poder e influência, por intermédio de investimentos em seus planos de desenvolvimento individual, formações políticas e técnicas, além da promoção do fortalecimento das organizações, grupos e coletivos liderados por elas. Isso ressalta a importância do financiamento com foco no desenvolvimento social, cujo impacto está nas transformações pelas quais as pessoas passam e, por consequência, são transmitidas a outras pessoas de seus territórios. O programa, que está em andamento, tem como parceiros Kellogg Foundation, Ford Foundation, Instituto Ibirapitanga e Open Society Foundations. Na primeira edição, selecionou 59 mulheres e 14 organizações, sendo que cada uma recebeu diretamente R$ 40 mil para investir em seu projeto e cerca de R$ 20 mil em investimentos indiretos (assessorias, coach, apoio psicossocial, formação política). Considerando os apoios coletivos e individuais, foram cerca de 200 beneficiárias diretas, 520 mil pessoas indiretamente impactadas e R$ 4 milhões de investimento direto.
Organizações como a Abayomi – Grupo de Juristas Negras, de Pernambuco, por exemplo, têm o objetivo de ampliar a participação de mulheres negras no sistema nacional de Justiça. Hoje, após um início com cinco mulheres, já congrega quase uma centena de mulheres negras com atuação no Judiciário e lidera a mobilização nacional em defesa de mulheres negras no STF (Supremo Tribunal Federal). Esses espaços e cargos são, atualmente, ocupados por homens e mulheres brancos.
Pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Justiça em 2020 apontou a porcentagem de negros e negras nas diferentes esferas do Judiciário: entre os magistrados, a Justiça do Trabalho tem 15,9%; entre os servidores, a Justiça Eleitoral tem 34,7% e entre os estagiários, a Justiça Federal tem 59,4% de pessoas negras.
Clara Marinho, graduada em administração e mestre em Desenvolvimento Econômico, é outra profissional apoiada pelo Programa Marielle Franco. Ela elaborou o projeto Construindo a Liderança na Administração Pública Federal, recentemente foi convidada a assumir o cargo de Coordenadora-Geral de Estudos e Acompanhamento de Temas Transversais e Investimentos Plurianuais no Ministério do Planejamento e Orçamento. Outra que se inspirou nos ventos deixados por Marielle foi a jornalista Jaqueline Fraga, autora do premiado livro-reportagem “Negra Sou”, que narra a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho. O Instituto Marielle Franco foi criado por iniciativa da família da vereadora para manter acesa a chama de seu legado e ampliar o processo de valorização das vidas negras, femininas e periféricas e ainda funcionar como um espaço de educação transformadora onde também se oferece auxílio psicológico, legal, se promove arte e literatura, se realiza oficinas e outras ações voltadas para a herança de luta pelos direitos humanos deixada pela vereadora. Anielle Franco, irmã de Marielle e ministra da Igualdade Racial, Marinete da Silva, mãe de Marielle e Anielle, que é advogada popular, além de Luyara Santos, filha de Marielle, que é estudante de educação física, tiveram os projetos de ampliação de suas habilidades de liderança apoiados pelo Fundo Baobá.
A sociedade brasileira, e as mulheres em especial, está convicta do que quer, pode e deve fazer com o legado de Marielle Franco. Ela se foi, mas como herdeira de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Elza Soares, Benedita da Silva, Esperança Garcia, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e tantas outras, plantou sementes que germinaram, florescem e dão frutos. Permanece ativa, por intermédio de ideias e causas que defendia. Suas certezas e ideais seguem vivos em mulheres, homens e pessoas não binárias que ela inspira. Marielle está e estará, sempre, PRESENTE!
Artigo originalmente publicado no Nexo em 13/03/2023
Fernanda Lopes é bióloga, mestre e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP). Co-coordenou o Programa de Combate ao Racismo Institucional, uma parceria entre o governo brasileiro, o governo britânico e a ONU Brasil. Por 11 anos compôs a equipe do Fundo de População das Nações Unidas, escritório Brasil. Desde 2019 lidera a área de programas e projetos do Fundo Baobá para Equidade Racial e foi a responsável pela elaboração da teoria da mudança que orienta a implementação do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.
Giovanni Harvey é diretor-executivo do Fundo Baobá para a Equidade Racial e tem 30 anos de experiência como executivo na iniciativa privada, na administração pública e no terceiro setor. Foi presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense (1988 a 1989), empresário no setor de seguros e previdência privada (1994 a 2004), fundador da Incubadora Afro-Brasileira (2004) e consultor do Programa de Incubadoras do Ministério da Economia de Cabo Verde (2007). Exerceu funções estratégicas nos três níveis da administração pública nas áreas de direitos humanos, trabalho, ciência e tecnologia, assistência social, governança e igualdade racial. Foi secretário nacional de Políticas de Ações Afirmativas (2008 a 2009) e secretário-executivo (2013 a 2015) da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
O Instituto de Mulheres Negras (IMUNE) do Mato Grosso completa neste ano 20 anos de trajetória na organização em torno das pautas das mulheres negras. O IMUNE, nome que faz referência à imunização, nasceu no início dos anos 2000 a partir da necessidade de ecoar e discutir as temáticas de raça e gênero que não encontravam espaço em outros movimentos sociais na época.
A organização foi uma das contempladas na primeira turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. O projeto “Voz IMUNE: 18 anos em movimento” teve como um dos principais objetivos registrar, divulgar e preservar a memória do primeiro grupo de mulheres negras do Mato Grosso, e culminou na produção de um livro que conta a história e as lutas do grupo.
A professora Antonieta Costa, conhecida como Nieta, é uma das fundadoras do IMUNE. Ela conta que as mulheres que fundaram o Instituto não visualizaram inicialmente onde iriam chegar. “A proposta realmente era fazer essa mudança, discutir mulheres negras na perspectiva de propor políticas públicas, ações afirmativas, de ter uma discussão no Mato Grosso, que até então não tinha nada direcionado para as mulheres negras. A gente já militava no movimento social, mas quando a gente ia discutir gênero e raça acabava a reunião”, diz.
Criado antes do IMUNE, o grupo de dança afro Filhas de Oxum também faz parte da história da organização. Cristina Benedita da Silva, professora da educação básica, relata que conheceu o IMUNE no grupo de dança. “Fiz parte do grupo Filhas de Oxum, com a professora Antonieta, a professora Lenis e o grupo tinha como objetivo maior a valorização de meninas em vulnerabilidade social. E nós trabalhávamos muitas coisas com elas” conta Cristina. Ela diz que pensando na valorização, saúde e educação, eram feitas visitas nas casas delas. “Tínhamos as parcerias das mães com a gente, que participavam no grupo, faziam parte das oficinas”, complementa.
Cristina afirma também que havia um acompanhamento também na escola destas meninas inicialmente atendidas pelo Instituto, visando a valorização da mulher negra enquanto sujeitas importantes para a sociedade. “Eu também não tinha muito essa consciência. E através do grupo aprendi muita coisa, consegui trabalhar, estudar, e fazer faculdade. Muitos não se reconhecem como negros e através do grupo de dança muitas meninas aprenderam. Algumas até estão sendo reprodutoras desse nosso trabalho”, comemora.
Nieta relembra que o cenário da época em que se deu o surgimento do grupo de dança era interessante, já que em Cuiabá havia muito preconceito com a religiosidade de matriz africana e o grupo levava o nome de um Orixá. “E a gente ousou, mesmo as meninas não sendo de Axé”. Conta ainda, que no livro, lançado como produto do projeto, há relatos das meninas que fizeram parte do grupo de dança e que elas se sentem parte dessa história. “O Filhas de Oxum chama atenção para a possibilidade de mudança das nossas crianças e adolescentes. Porque é importante você pegar aquela criança que está ali, fazer um trabalho, mostrar e valorizar o quanto ela é bonita, o quanto ela é inteligente. E hoje essas crianças, que a gente viu lá atrás, são advogadas, engenheiras, professoras. Isso para a gente não tem preço”, reforça Nieta.
Inicialmente o IMUNE tinha reuniões mensais que aconteciam alternadamente na casa das integrantes do grupo, já que elas não tinham uma sede. “A gente começou a fazer as reuniões de mulheres negras e essas reuniões eram encontros afetivos. A gente sempre se reunia para tomar um chá, fazer um almoço, um jantar e aproveitava esses momentos para discutir as questões que nos afetam”, conta Jackeline Silva. Ela é produtora cultural, trabalha com elaboração e gestão de projetos e faz parte do IMUNE desde a fundação.
Jackeline explica que esses encontros foram importantes para a consolidação do IMUNE. Ela lembra das feijoadas para arrecadar dinheiro e posteriormente o passo da institucionalização com a criação do CNPJ. “A gente entendeu que era importante dar um passo a mais de um coletivo para que ele se tornasse uma organização formal, e aí anos depois a gente se deparou com essas possibilidades de projetos. Para que a gente tivesse um fomento, para ter condições mínimas de trabalho, até para produzir materiais”, pontua.
Em duas décadas de existência, o Instituto tem na bagagem como primeira ação a produção do jornal Voz IMUNE, em 2003. “Nesse jornal nós buscamos o que as mulheres estavam fazendo, as mulheres que trabalhavam, o que estava acontecendo com elas naquele momento”, diz Nieta. Houve também a experiência com uma revista sobre saúde mental da mulher negra, que teve 200 exemplares. A revista foi fruto das rodas de conversa que tinham como tema saúde, educação, mercado de trabalho, emprego, renda e segurança pública. A revista foi sendo distribuída nos encontros nas comunidades.
Nieta relata que depois de um tempo o IMUNE cresceu e foi sendo reconhecido. A comunidade vinha chamando as mulheres do Instituto, ao invés delas irem. “A comunidade começou a reconhecer a importância desse trabalho. As secretarias de educação, de saúde, o poder público começou a conhecer, e o IMUNE começou a se inserir também nos conselhos de promoção da igualdade racial e saúde da população negra”, diz.
Com essa inserção, a organização também passou a articular em torno de outras frentes, como a de povos de matriz africana, através da parceria com a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO). E é aí que a história da professora Sônia Aparecida Silva se encontra com a do IMUNE. “Uma história de construção como mulher, como pessoa. Perceber-me como uma Sônia antes e outra Sônia depois. E eu gosto de dizer isso dentro do meu campo de visão, que é o Axé, que a gente encontrou dentro do IMUNE essa possibilidade de construir alguma coisa aqui em nosso estado”, relata Sônia.
Atualmente com 55 anos, Sônia diz que não tem vergonha de dizer que foi estando dentro do IMUNE que conseguiu ter essa visão de transformação. “Hoje eu vejo além muro, vejo a necessidade de conhecer o contexto histórico, de saber quem eu sou dentro de um Axé, e o que eu posso fazer como mulher, com as mulheres. A questão da consciência do que eu posso ajudar a transformar na minha comunidade, com as crianças”, afirma.
Sônia compartilha que gosta de estar na construção do IMUNE, nas rodas de conversa, que até seus filhos têm hoje uma outra consciência. Conta também sobre a importância de se sentir preparada para lidar com os desafios. “Saber me defender, saber me colocar dentro do meu âmbito de trabalho. Poder usar meu turbante, minhas contas. Hoje eu não choro mais. Eu sei me colocar nesse meio daí e fazer com que as pessoas me respeitem”, relata.
Lidia Djú, de Guiné-Bissau, é professora da educação básica. Ela conta que conheceu o IMUNE através da professora Nieta. “Antes de conhecer o Instituto, eu já conhecia a Nieta. E surgiu a oportunidade de conhecer o Instituto e lá se vão mais de sete anos. E a gente está ali, batalhando, fazendo o que a gente pode para apoiar as mulheres que precisam de apoio, qualquer tipo de apoio”, conclui.
Voz IMUNE: 18 anos em movimento
Jackeline explica que o edital de apoio do fundo Baobá foi uma oportunidade sensacional para o IMUNE. “Quando o Fundo Baobá se propôs a realizar o fortalecimento de grupos coletivos e lideranças, foi incrível porque nós já tínhamos uma história, algumas décadas de trabalho. E aí conversei com a Nieta, eu falei ‘olha, eu acho que é uma oportunidade incrível e a gente tem grandes chances de passar’”, relata.
Ela afirma que o apoio e o projeto foram importantes porque possibilitaram que o IMUNE se voltasse para a formação interna, já que as ações são muito para fora. “A gente pôde dedicar para olhar para dentro da organização, se organizar, colocar em dia os nossos papéis, a documentação e principalmente, que é o mais importante, contar a nossa história”, reforça Jackeline.
Nieta define a experiência de ser apoiada pelo Fundo Baobá como emocionante e que o fomento mudou a história do IMUNE. Já Sônia observa que existe o IMUNE antes e o IMUNE depois do Baobá. “O que era o IMUNE antes, a gente se reunia e compartilhava nosso saber e experiências nas nossas casas, com nossas irmãs. Compartilhava o alimento. O IMUNE depois do projeto apoiado se tornou uma construção forte. A gente precisava disso. Eu vejo esse momento com o Baobá, com o livro, de consolidação… A gente cresceu” pontua Sônia. Ela comenta ainda que hoje Cuiabá sente a força da organização. “Somos poucas, mas somos mulheres prontas para a transformação, eu acho que isso é forte dentro de nós, então a gente precisava desse boom”, complementa.
Cristina diz que só tem a agradecer ao Baobá pelo apoio. “Por ter consolidado a luta de muitos anos e ter mostrado ao mundo isso que nós fizemos e continuamos fazendo, e só temos a melhorar cada vez mais. A nossa história está presente na sociedade, no Brasil, para todos conhecerem”, reforça.
Pandemia de covid-19
A pandemia de covid-19, que impactou o mundo a partir de 2020, impôs desafios para as mulheres do Instituto de Mulheres Negras na adaptação à nova realidade. Nieta destaca entre os desafios lidar com o mundo virtual. “Essa questão do afeto que a Jacke colocou, a gente achava que só poderia ter se a gente estivesse junto, abraçado e conversando. A nossa reunião sempre foi uma reunião de confraternização. Então no momento que veio a pandemia a gente teve uma quebra. Porque a gente não podia mais abraçar e estar junto. E a maioria não conseguia mexer na ferramenta, que era um monstro, que era a internet”.
Além disso, Nieta diz que nem todas as mulheres estavam com acesso a celular, computador e internet, e o recurso do projeto deu a possibilidade de superar algumas dessas dificuldades. “Nós vimos a possibilidade de superação, que foi os instrumentos que conseguimos comprar, como computador, mais celular e pagar internet para que todo mundo tivesse acesso”, reitera.
Silvina Jana Gomes, professora, vinda de Guiné-Bissau, atualmente é tesoureira do IMUNE e já está na organização há mais ou menos nove anos. Ela conta que a pandemia tem sido um momento desafiador, mas que com o apoio do Fundo Baobá conseguiram aprender. “Hoje a gente tem mais conhecimento e consegue entrar online. No começo a gente sentiu falta da reunião presencial, que todo mundo já estava acostumada, mas com o passar do tempo isso melhorou também”, argumenta.
Sônia destaca que em meio a dificuldade de lidar com as reuniões online, seu filho a auxiliava. Ela aponta outro desafio que foi lidar com as consequências da covid-19 nas comunidades e o adoecimento das pessoas. “O que eu acho mais importante de tudo isso é que a gente conseguiu superar e fechar esse ciclo. Foi muito desafio lidar com tudo isso e tentar fazer as nossas rodas, ajudar os nossos e as comunidades aqui no meio da pandemia, perdendo pessoas, gente sofrendo. Foi muito difícil, a gente ainda está com essa dor aqui dentro da gente”.
O futuro: não andamos sós
Passada a execução do projeto, Nieta chama atenção para o quesito organização que a participação no edital do fundo Baobá proporcionou ao IMUNE. Desde a prestação de contas que as mulheres não estavam acostumadas a fazer, até uma divisão de tarefas melhor definida. Segundo ela, esse processo formativo gerou novas oportunidades. “O Baobá abriu o nosso olho nas formações para o diálogo que a gente tem hoje com o poder público, com estado, com o município”, relata. O IMUNE conseguiu construir uma afroteca comunitária com um projeto apoiado pela Lei Aldir Blanc, além de estarem preparadas para poder enfrentar outros editais. “Hoje temos a primeira biblioteca afro pública do estado do Mato Grosso, que é a biblioteca do Centro Cultural Casa das Pretas, a sede do Instituto Mulheres Negras; temos um um espaço destinado a trabalhar a questão da identidade de cabelo, nós temos um salão lá dentro, que a Silvina e a Lidia coordenam”, comemora Nieta.
Jackeline acredita ser difícil pensar os próximos períodos com pandemia, porque as mulheres negras ainda são o elo frágil das desigualdades. “Em termos de sonhos, eu imagino o IMUNE uma grande potência. Não só no centro-oeste, mas até a nível de América do Sul. Quem sabe a gente consiga se articular também com as redes latino-americanas e caribenhas”. Outro ponto levantado pela produtora cultural é a continuidade da luta. “Acho que o nosso primeiro passo é firmar sede, formar novas lideranças que possam dar continuidade a luta. A juventude negra precisa se apropriar da luta e seguir em frente”, finaliza.
Nieta cita o trecho do poema presente no livro do IMUNE, de uma poetisa que é a primeira mulher negra a compor a Academia Mato Grossense de Letras. “A gente se assume, a gente se assina, mulheres meninas, somos IMUNE / trocando com negras / mostrando as negras/ chamando mais negras para novas certezas / são tantos saberes / são tantas belezas / que o nosso peito bate ao saber que percorremos / com 18 anos sendo estandarte da negra voz, da negra arte, da negra cor”. Ela diz que o IMUNE quer dar essa continuidade, manter a sede, ser o estandarte que sempre carregaram e fazer ecoar a voz e salvar mulheres negras da vulnerabilidade.
“Nós não temos dúvida de que sairão outras Sônias, Cristinas, Jackelines, Lídias, Silvinas, Carols, Maristelas, outras Agathas e todo mundo que está no IMUNE. Uma coisa a gente tem certeza: que a nossa voz não vai silenciar. Como a voz da Marielle não silenciou, quando pensaram que ela sumiu, ela ressurge em muitas Marielles”, reitera Nieta.
A professora acredita que é preciso semear as lutas, bem viver, semear toda forma de respeito e compromisso com a pauta. “O IMUNE plantou muitas sementes nesses dezenove anos. E nós vamos continuar colocando as sementes e regando a semente”.
Para concluir, Nieta faz um pedido: “Que o Deus da vida nos abençoe para que a gente possa fazer isso. Que todas as nossas ancestrais, que estão em cada uma de nós, nos dêem força para enfrentar essa adversidade que é ser uma mulher preta num país extremamente racista, machista e excludente. Mas a gente não anda só, né? Isso é o mais importante, nós não andamos sós”.
O grupo, que há 9 anos ocupa a internet com narrativas de mulheres negras, ganhou fôlego com o Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras do Fundo Baobá
Por Giovane Alcântara*
Mesmo com dados evidenciando que as pessoas negras são a maioria no país, ainda pouco se vê desse grupo ocupando espaço nas mídias tradicionais, nas redações e nas TV’s. Isso porque estruturalmente a comunicação é dominada por grandes empresas, grupos e famílias brancas. Pensar na democratização, no acesso e em outras narrativas é uma tarefa histórica dos movimentos negros.
O lançamento do pasquim que oficialmente deu origem à imprensa negra, “O Homem de Côr” (1883), inicia uma história que, apesar de invisibilizada, se confunde com a história da mídia brasileira. Nos dias atuais muitas redes desenvolvem um trabalho pautado em visibilizar narrativas negras e dialogar a partir de um outro lugar, vestindo a bandeira do que é, e sempre foi, muito caro no debate sobre raça, gênero e sexualidades. Redes como Revista Afirmativa, Negrê, Correio Nagô, Geledés, Alma Preta, Blogueiras Negras, Notícia Preta, Portal Mundo Negro, dentre outras, vem abrindo caminhos para novas perspectivas dentro da comunicação nacional.
Atualmente, como ao longo da história, essas mídias encontram diversos problemas para a sua manutenção e sustentabilidade. Como afirma Larissa Santiago, representante do portal Blogueiras Negras: “eu também acredito que, para as mídias contra-hegemônicas, é necessário haver investimento financeiro. A gente precisa ganhar dinheiro pelo trabalho que a gente faz. Esse reconhecimento precisa vir também financeiramente, mas não só”. A blogueira negra acredita que é preciso que o trabalho das pessoas negras comunicadoras precisa ser reconhecido também entre os seus pares e que é preciso criar redes. “Eu acho que é muito importante que os movimentos sociais e os movimentos negros, os quais caminham aí do lado das mídias negras, estejam atentos a esse processo e que a gente se retroalimente né?! Nós, as mídias, criando conteúdo para os movimentos, os movimentos criando conteúdo para as mídias negras”, defende.
O Blogueiras Negras, da qual Larissa é integrante, é uma das contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Essas mídias negras, alternativas, comunitárias, disseminam e amplificam outras vozes se relacionando com os movimentos sociais e os tempos históricos instituídos. São herança de um passado não tão distante, e muito presente.
Outras vozes: Blogueiras Negras
Criado em 2012, o Blogueiras Negras surge de uma provocação “Onde estavam as blogueiras negras brasileiras?”. Reunidas em novembro daquele ano, as mulheres a partir de uma blogagem coletiva, desenvolveram textos sobre a relação interseccional entre raça e gênero, levando em consideração duas datas importantes do calendário brasileiro: o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e o 25 de novembro (Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres).
A princípio o projeto tinha como objetivo amplificar as vozes de mulheres negras, mas essa missão mudou. Segundo Viviane Gomes, coordenadora do Blogueiras Negras, atualmente a organização quer inspirar mulheres negras a contarem suas próprias histórias na internet. “Veja que a missão muda um pouquinho, porque a gente entendeu que dar visibilidade a gente já conseguiu fazer. Então, a gente quer inspirar outras mulheres a continuarem contando suas histórias na internet”, afirma. O apoio do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras: Marielle Francopermitiu a continuidade do projeto, mas não era esse o principal objetivo da comunidade de autoras que compõem o Blogueiras Negras.
Legado e continuidade
O principal objetivo da comunidade de autoras do Blogueiras Negras, com o apoio do Fundo Baobá, era estruturar um planejamento estratégico da organização. A ideia era pensar e viabilizar, primordialmente, a preservação e a memória dos textos que já estavam publicados. Até então, a intenção era o encerramento do projeto. Ainda de acordo com Viviane Gomes, o projeto permaneceu no ar porque elas compreenderam que ele não era apenas mais delas e representavam uma outra cadeia produtiva de mulheres e da sociedade em geral. “A gente compreendeu também que esse projeto não era mais só nosso, não era só das pessoas que cuidavam dele diretamente, imagina se a gente tirar [do ar]. A gente é referência de pesquisa acadêmica também, se a gente retira esse blog do ar a gente também retira esses textos do ar. Entendemos que o projeto não era mais nosso, o projeto era da comunidade que fazia ele”, afirma.
Nesse sentido, o Fundo Baobá foi fundamental para a continuidade do Blogueiras Negras, no que tange estruturar um ambiente mais seguro para a comunidade de autoras e do próprio blog. “Até pra ele ser deixado sem atualização precisa de uma estrutura. Não apenas para a sua manutenção e disponibilização em local seguro. Mas, a gente decidiu, também, que nós deveríamos atualizar essa missão inspirando outras mulheres negras a contar suas próprias histórias na internet. Continuando esse legado, deixando esse legado para as futuras gerações”, complementa.
Pandemia e planos
A pandemia de covid-19 pegou todo mundo de surpresa e com as lideranças do Blogueiras Negras não foi diferente. Durante esse período, alguns planos tiveram que ser alterados: “A gente transformou muito o projeto com a chegada da covid-19. Tínhamos 100% das atividades presenciais, encontros planejados, milhares de atividades que seriam presenciais”, comenta Larissa. Ela afirma que as blogueiras negras já vislumbravam em fevereiro os indícios de um momento bastante duro no Brasil. “E nesse percurso, de 2020 pra cá, nós tivemos perdas irreparáveis. Nós tivemos mortes de familiares dentro do grupo, tinham as pessoas doentes dentro do grupo. Nós também adoecemos nesse processo, mentalmente, fisicamente… Então isso tudo dificultou a execução 100%, mas nós fomos capazes de produzir as coisas que a gente se comprometeu” relata Larissa.
Viviane diz que esse adoecimento foi o estopim para que as autoras envolvidas no projeto procurassem ajuda psicológica. “Esse tempo teve um preço muito alto pra nossa saúde mental porque a gente trabalhou o triplo. Quando você tem poucas pessoas e uma delas não consegue fazer as coisas, é óbvio que as outras ficam sobrecarregadas. E é óbvio que algumas coisas podem sair do lugar nesse processo e saíram, a gente simplesmente paralisou”, comenta. Viviane aponta que, apesar de iniciar as atividades propostas e de já ter feito o planejamento estratégico, havia uma dificuldade em converter isso nos produtos que elas queriam.
A coordenadora ainda nos revelou que o fato de não ter conseguido levar o número de pensadoras, autoras, que haviam pensado para o planejamento estratégico, fez sobrar recurso que foi investido em terapia. “E a gente finalmente teve a coragem de pedir ajuda. Hoje a gente faz um acompanhamento com a Amma Psique, com a Lucinha, Maria Lúcia da Silva. Conseguimos concretizar, finalizar os objetivos, e tá conseguindo também trabalhar questões que são muito específicas da população negra no que se refere ao trabalho, ao sucesso, ao nosso desenvolvimento intelectual. Coisas que a gente encolhia, não trabalhava e não pensava”.
Efeito Multiplicador
O financiamento do Fundo Baobá foi importante para o Blogueiras Negras porque permitiu a continuidade, o acesso e a multiplicação dos conhecimentos adquiridos. Além da sistematização de planejamento estratégico da instituição. Desses encontros nasce uma cartilha (ainda em fase de conclusão) que ajudará outras instituições a se organizarem. Como afirma Ana Mesquita, responsável pelo desenvolvimento do planejamento estratégico: “Uma das qualidades desse projeto foi ter pensado que essas oficinas não iriam ficar somente internas para Blogueiras. A sistematização é justamente para se criar uma publicação e para que essa publicação seja uma multiplicadora dos conhecimentos adquiridos ao longo do processo de formação e do processo de planejamento”. Mesquita, que é especialista em planejamento e gestão territorial, afirma que não se recorda de uma publicação desse formato para área de comunicação com foco em organizações sociais pequenas. “Então eu acho que vai ser um documento muito inédito. Porque esses processos de planejamento estratégico são muito caros, né? Eles são caros e eles têm uma elite que domina esses conhecimentos e as populações negras de baixa renda, periféricas, indígenas, não têm acesso ao conhecimento”, afirma. Ana diz ainda que esse conhecimento é importante para, por exemplo, pleitear verbas públicas, conseguir financiamentos e se posicionar frente a outras organizações. “Quando você cria uma cartilha para multiplicar esses conhecimentos, você amplia o escopo de atuação daquela organização para outras organizações que vai ter contato com a cartilha”, finaliza.
Ainda não há data marcada para o lançamento da publicação, mas grupos, coletivos e organizações sociais da comunicação de todo país podem esperar que vem coisa boa por aí!
Apoiada pelo Fundo Baobá, a organização alcançou visibilidade local, nacional e internacional
Por Danielle Souza*
Apesar de representarem 52,2% da população brasileira (IBGE – 2020), as mulheres ainda são subrepresentadas em espaços de poder e liderança. No mercado fotográfico, isso não é diferente. A grande maioria dos profissionais de fotografia são homens. Segundo pesquisa feita pela Women Photograph, iniciativa online com mais de 850 fotógrafas documentais ao redor do mundo, a representatividade de mulheres nos cliques das principais agências de notícias internacionais em 2018 foi inferior a 10%. Se feito um recorte racial, as mulheres negras têm ainda menos oportunidades de mostrarem os seus trabalhos e de ocuparem espaços historicamente negados como este.
Em contrapartida a essa realidade, surge em 2016 a Coletiva NegrasFotosGrafias, através do movimento e articulação de fotógrafas negras do circuito carioca, a fim de apresentar novas narrativas produzidas por e para mulheres negras. NegrasFotosGrafias foi uma das coletivas apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Intitulada no feminino, a Coletiva realiza exposições, rodas de conversa, debates e lives que colaboram com a educação visual, a interlocução de linguagens, ensino de fotografia, criação e memória viva. O objetivo é utilizar isso comoinstrumentos afirmativos para equidade racial e de gênero. Sua missão é fomentar a visibilidade das mulheres negras e suas produções, assim como a consciência de afrovisualidade brasileira a partirde narrativas visuais afirmativas, antirracistas e antissexistas. “O nome evidencia o protagonismo de mulheres negras que, ao registrar imagens,escrevem narrativas e grafam seus nomes na embranquecida fotografia evisualidade brasileira”, afirma Adriana Medeiros, organizadora do Projeto Olhar e Escuta em Rede de Criação.
A iniciativa tem por objetivo estimular as mulheres negras ao desafio de se reconectarem aos territórios de afeto internos e externos, através da reflexão, aprimoramento e publicização de suas trajetórias e ações diante do mundo e da localidade. A Coletiva atua em regiões periféricas do Rio de Janeiro, como Duque de Caxias, zona norte eoeste da cidade, verdadeiros ‘berços de formação, produção e circulação visuais’. “Esses territórios são guardiões da história, cultura e saberespopulares, reinventores cotidianos da identidade viva brasileira. Também são palcode negligência e violação de direitos pelo poder público e privado, que se aprofundam, adoecem e matamnossos povos”, declara Adriana.
Atuação em meio a pandemia
Assim como outras organizações, antes da pandemia, as atividades do grupo eram desenvolvidas de forma presencial. Mas, a perda do contato físico não impediu que elas avançassem em suas conquistas no espaço acadêmico, escolar, entre coletivos e lideranças. Com o apoio do Fundo Baobá foi possível aprimorar conhecimentos em gestão, elaboração de projetos, planejamento, gestão financeira, marketing digital, comunicação interna e externa, além de ajustar as novas capacidades tecnológicas, atraindo mais seguidores nas mídias sociais. Essa migração para o digital possibilitou conexões com outros coletivos no Rio de Janeiro, em outros lugares do Brasil, países da América Latina e Estados Unidos, evidenciando a atuação da Coletiva em âmbito local, nacional e internacional.
Segundo Adriana, essa rede de criação já era um dos objetivos almejados pela Coletiva há algum tempo. “Estamos finalizando novos conteúdos com novas conexões e parcerias com potencial alcance. Essa rede busca intervir artisticamente na produção de sentidos com efeito político para preservação da memória das mulheres negras e na construção de identidades referenciadas em nossa ancestralidade, atualizando a própria identidade brasileira”, afirma a coordenadora. Adriana ressalta também o quanto esse processo tem sido rico e prospectivo, não só na busca por novas parcerias, mas também no fortalecimento das antigas.
A Coletiva NegrasFotosGrafias tem, atualmente, 9 membras. Ao longo do projeto foi possível conectar-se a mais 25 profissionais envolvidas nas capacitações e produções, além de grupos de estudantes e projetos atendidos pela Coletiva, onde são aplicados os aprendizados. Só nas mídias sociais da instituição, foram mais de 400 pessoas impactadas com as lives e aulas promovidas, sendo a grande maioria mulheres negras.
A professora Simone Ricco faz parte da Coletiva desde o início e confessa que esta é uma experiência desafiadora, que envolve esforço mas que resulta em fortalecimento. “Conciliar a vida profissional com as ações da Coletiva me tira da zona de conforto, pois as demandas envolvem criação artística e criação de meios para transformar os projetos em ações concretas”, afirma.
Simone reforça ainda que o formato de atuação colaborativa da Coletiva foi de suma importância para sua atuação no projeto, beneficiando-a e a todas as membras, com a ampliação de conhecimentos. Para ela, os relatórios de avaliação também foram importantes no processo, pois ensinaram sobre organização, apontando questões técnicas e estruturais que as fizeram aprender sobre pontos fortes e fracos presentes no percurso da Coletiva. “Também vale destacar os aprendizados sobre autocuidado e psicologia, resultantes dos encontros com o Instituto AMMA Psique e Negritude e do curso de Comunicação Não Violenta, além de todas as mudanças aplicadas em nossa prática a partir das oficinas. A aprovação no edital é uma aprendizagem sobre conquistas possíveis a partir da mobilização de mulheres negras. Aprendi a acreditar mais em nós”, finaliza a professora.
Outra membra que também está presente na Coletiva NegrasFotosGrafias desde a sua idealização é a antropóloga e professora universitária, Bárbara Copque. Para ela, neste espaço é possível estar em irmandade, refletindo sobre os regimes de visualidades e representações que envolvem as mulheres negras. “As imagens pretas são violadas, controladas e,constantemente, demandam questões. Se antes pensar tais questões eram individuais, pessoais, hoje toma-se outra dimensão. É uma questão política que precisamos enfrentar e confrontar”, afirma. Bárbara ressalta ainda que, ao participar do Programa, pôde pensar em conjunto na estruturação das ações da Coletiva, como: cursos de formação sobre diversas áreas pertinentes à organização; produção de uma memória e sua preservação, bem como seu compartilhamento.
Olhar e escuta para o futuro
A Coletiva NegrasFotosGrafias se prepara para fazer o lançamento do seu website, além de também ter criado o seu canal no YouTube, outra ferramenta de divulgação das suas ações. A logomarca da organização também mudou e hoje, ressignificada, está mais alinhada às premissas do grupo. Ela enfatiza agora o compromisso político com a ancestralidade, o feminino e a fotografia a serviço da igualdade. Foram feitos investimentos na infraestrutura, com equipamentos para armazenamento, e banco de imagens, para gerar conteúdos narrativosvisuais em abrangência estadual.
A Coletiva NegrasFotosGrafias também recebeu convites para participar de reflexões na pesquisa e no meio fotográfico diante de outros coletivos negros e feministas. A organização desenvolveu reportagens através de memórias locais e a série Ciranda das Rainhas, com lideranças negras, onde cada ativista reconheceu a luta uma da outra, mesmo em territórios e campos de atuação diversos.
Em termos de perspectivas para o futuro, a Coletiva pretende atuar na produção de microreportagens; séries de conversa audiovisuais; oferecimento de curso de formação visual antirracista e antissexista, trazendo referências femininas pretas e ancestralidade; e inserção no mercado de acervos fotográficos. Além disso, elas também aguardam pelo resultado de projetos submetidos a editais artísticos com outros coletivos e estudam a criação de uma rede de corresponsabilidade com acervos locais e visualidades produzidas por pessoas negras.
Com o foco no olhar sobre as mudanças nos territórios segundo as dificuldades na pandemia, a Coletiva fez a preservação de acervos particulares, histórias de grande impacto da imaginária local. Segundo a coordenadora Adriana Medeiros, aprender a governança em grupo também as potencializou a realizar seus sonhos e projetar o futuro sem restrições, inspirando outras lideranças e outros projetos. Além da técnica, as formações auxiliaram na visão política do mundo relacionada aos aprendizados internos como autocuidado, paciência, coragem, autoestima, sabedoria, autoconhecimento e confiança no grupo, proporcionando valorização de cada membra e equilíbrio interno.
“Estamos mais instrumentalizadas para produzir novas visualidades e produzir alicerces de formação visual e fotográfica, que incluam a perspectiva histórica local e política, técnica decolonial. Esse período representou um desfecho de tudo o que provocamos e buscamos por um ano e hoje podemos tornar visível. Aprendemos a resistir e acreditamos”, conclui Adriana.
Organização apoiada pelo Fundo Baobá precisou se adaptar em meio a pandemia do coronavírus
Por Morgana Damásio*
Pela tela do computador, Mara Lúcia da Silva, a Omara, se apresenta. É lésbica, feminista e seus cabelos grisalhos também nos contam sobre os anos na luta antirracista. Mais tarde descubro que ela também carrega o samba no coração. Na janela ao lado, com um sorriso, Eliane Almeida conta que é jornalista, tem 50 anos e é mãe de Isabela, de 20 anos, e de Vitória, de 8 anos. Na sequência, conheço Fernanda Chagas, jovem, socióloga e pesquisadora. Mulheres negras: Omara, Eliane e Fernanda; partilham os passos na Marcha das Mulheres Negras de São Paulo (MMNSP). Juntas, ajudam na construção da organização, de uma maneira horizontal e coletiva com outras mulheres negras.
“O que tem de maravilhoso dentro da Marcha é a pluralidade” conta Omara. “Existem mulheres que são partidárias, mulheres que não são partidárias, mulheres que estão ali autonomamente, que fazem parte de outros coletivos e que se somam para fortalecer. Somos Marcha, mas também somos outras coisas, então somos múltiplas”, completa. Para ela é justamente essa multiplicidade que faz a Marcha ter força e conseguir todos os anos trazer mais gente para continuidade do processo de luta.
A Marcha das Mulheres Negras de São Paulo é uma das sementes da Marcha de Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência, e pelo Bem Viver, realizada em novembro de 2015, em Brasília. Um marco histórico, em que mais de 100 mil mulheres negras de todo Brasil ocuparam a Esplanada dos Ministérios, pautando um novo projeto de sociedade para o Brasil. Além de São Paulo, outros estados como a Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Pará seguiram com ações estaduais. “É um espaço onde nós mulheres negras conseguimos refletir, lutar, pensar na criação de políticas públicas e debater as nossas especificidades a partir da questão racial, que na verdade é a nossa luta desde sempre […] Essa caminhada já vem de muito mais tempo e de uma forma bem descentralizada”, conta Fernanda Chagas.
A MMNSP foi uma das iniciativas apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.“Nós mergulhamos, foram dias e dias de reuniões no SESC, café, fala e debate. Foi muito rico esse processo, porque mobilizou nossas mulheres. Só que juntamente com a aprovação do projeto veio o corona, né? Ficamos paralisadas, a gente pensou tudo no físico e tivemos que transformar para o virtual”, explica Fernanda, que também destaca que muitas companheiras não tinham celular ou acesso a internet.
Assim nasceu o “Projeto Aquilombar e Ampliar Universos – formação política para mulheres negras”,que entre março de 2020 e julho de 2021 impulsionou a formação das mulheres do MMNSPpara atuação política e compreensão da realidade social. O objetivo do projeto foi fortalecer estratégias de comunicação e ampliar o alcance da luta antirracista para as redes sociais.Foram 12 formações com diferentes temáticas; cerca de 50 atividades relativas ao Julho das Pretas e a Marcha do 25 de julho em 2020 e 2021; além da reativação do site, criação do canal do Youtube e otimização do uso estratégico do Facebook e Instagram. “Acontecia uma formação política e uma técnica, intercaladas, e isso foi de um grau muito enriquecedor. Hoje a gente consegue perceber, inclusive, qual o potencial temos de utilização dessa ferramenta para as próximas marchas”, exemplifica Eliane. Ela pontua que a Marcha entendeu que, apesar da preferência pelo presencial, há a possibilidade de que mulheres que não estejam em São Paulo participem das reuniões por outros canais. Elianedestaca que se apropriar dos conhecimentos técnicos é também uma ferramenta política.
Nas formações, temas como: segurança digital, artivismo, produção de conteúdo para redes sociais, violência política contra mulheres negras e os impactos da pandemia para mulheres negras foram trabalhados. Além dos processos formativos, as mulheres da Marcha seguiram com os outros projetos, articulações políticas e se engajando nas questões trazidas ou agravadas pela pandemia e que afetam, sobretudo, as comunidades negras. Tais como: projeto político e representatividade nas eleições, vacinação, moradia, emprego, genocidio, demarcação de terras quilombolas e indígenas e auxílio emergencial. “Todo dia tem alguma coisa, todo dia é um sete a zero. Nós perdemos algumas companheiras e também tem os meninos que elas deixaram, né? A gente tenta, dentro do possível, também fazer um acompanhamento desses jovens. É correr atrás de terapia, escola, é muita demanda”, partilha Omara. Ela rememora o quanto a rede de apoio se intensificou entre as mulheres da Marcha durante o período de isolamento social.
“Nenhum passo atrás”
No primeiro ano de experiência do projeto, o Julho das Pretas realizou trinta dias ininterruptos de atividades, alcançando mais de um milhão de pessoas na internet. No dia 25 de Julho foram doze horas de programação aberta online. “ A sobrecarga foi uma loucura, porque a gente não tinha realmente dimensão dessa coisa, né?”, comenta Omara sobre a adaptação da programação para o espaço virtual. “ Quando acabou estávamos esgotadas”.
Na edição deste ano de 2021, as mulheres refletiram sobre a sobrecarga e o autocuidado e reduziram a quantidade de ações durante o mês. “A formação sobre autocuidado foi um momento muito importante para nós, de fortalecimento mesmo. Pra que a gente conseguisse ver e entender tudo que estava acontecendo”, comenta.
A marcha virtual, das 16h às 20h, foi mantida. Projeções e faixaços em 5 regiões de SP (capital) e mais 4 cidades paulistas (Santos, Osasco, Santana de Parnaiba e Mauá) foram realizados.
As mulheres da Marcha destacam que a formação sobre planejamento estratégico e governança, oferecidas pelo Baobá, também foram fundamentais para esse realinhamento. A formação trouxe reflexões importantes sobre a missão da organização, a visão e o planejamento a curto, médio e longo prazo. “ A Marcha cresceu em qualidade e alcance”, finaliza Omara.
E como fazemos em São Paulo desde 2016, demonstramos nossa indignação e força. Milhares de mulheres negras e indígenas, lésbicas, bissexuais, trans e travestis, quilombolas, ativistas e ciberativistas, jovens, idosas, estudantes, educadoras, donas de casa, militantes, artistas, desempregadas, profissionais liberais, profissionais do sexo, servidoras públicas, comunicadoras, professoras, catadoras de recicláveis, profissionais da saúde, defensoras de direitos humanos, parlamentares, jornalistas, católicas, protestantes, de terreiro, sem religião, com fé na força de cada uma de nós, seguimos avançando e movendo o Brasil pelo Bem Viver.
A Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Espaço Mulher e Cidadania Feminina promoveram em conjunto formações com mulheres de bairros da capital pernambucana, além de se fortalecerem institucionalmente
Por Jamile Araújo*
Com o objetivo de fortalecer lideranças negras, femininas e periféricas de Recife (PE) e região metropolitana, o “Projeto Olori: mulheres negras e periféricas construindo lideranças” foi um dos projetos apoiados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Executado coletivamente pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Espaço Mulher e Cidadania Feminina, o projeto realizou formações com mulheres de bairros da capital pernambucana, e ações de fortalecimento das três organizações que construíram a iniciativa. A trajetória de Ediclea Santos, Liliana Barros e Rosa Marques, coordenadoras do projeto Olori, mostra a resistência e reinvenção das mulheres negras nas estratégias de combate ao racismo e ao machismo.
Liliana Barros faz parte do coletivo Cidadania Feminina, uma organização de mulheres negras periféricas sediada no Córrego Euclides, em Recife. Liliana explica que os principais eixos de atuação do Cidadania é o enfrentamento da violência contra as mulheres e o combate ao racismo. “Eu comecei pelo Cidadania Feminina, depois integrei o Fórum de Mulheres de Pernambuco, e em 2016 nasceu a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e comecei uma aproximação. Hoje eu integro a Rede de mulheres Negras, trabalho na sala da rede”, diz. Liliana também integra a Articulação de Mulheres de Bairros, composta por nove entidades que se organizam para se manterem na atual conjuntura.
O Espaço Mulher é um grupo de mulheres negras, periféricas, feministas e antirracistas, que tem 22 anos de história, seu nascimento data de 22 de janeiro de 1999, na comunidade de Passarinho em Recife. “Começou com um grupo de trabalhadoras domésticas. Eu vim do Morro da Conceição, lá eu já fazia parte do grupo de mulheres do Morro, já fazia teatro e já conhecia o fórum de mulheres”. Clea, como Ediclea é chamada por suas companheiras, relata que entrou para a militância nos anos 80. “E até hoje a gente faz a resistência diária, pela falta de políticas públicas. Além de ser um grupo de mulheres negras que luta por várias coisas aqui na comunidade, como saúde e educação, porque é uma comunidade pequena, que a escola e a saúde que tem não agrega todos os moradores”. Assim como Clea, Evandra Dantas, conhecida como Vânia, também faz parte do Espaço Mulher e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. “Eu e Clea estamos desde o começo do Espaço Mulher, porque nós éramos trabalhadoras domésticas”, diz.
Desde 2015 o Espaço Mulher realiza uma ação chamada “Ocupe Passarinho”. Antes da pandemia as mulheres faziam palanque feminista na rua, carta política, feira agroecológica e oficinas para mulheres. Clea conta ainda que em Passarinho falta lazer e esporte para os jovens, por isso a comunidade tem realizado diversas reuniões com secretarias em torno dos temas segurança pública, lazer e esporte.
Com uma trajetória em movimentos sociais desde a década de 80 entre movimentos de juventude e movimento negro, Rosa Marques hoje é militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Rosa relata que a Rede foi fruto do processo de construção da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo à Violência e pelo Bem Viver. A Marcha aconteceu em 2015 e reuniu em Brasília mais de 100 mil mulheres negras de todo o Brasil. “Quando a Marcha das Mulheres Negras iniciou sua construção, a gente foi sendo convidada para articular as mulheres negras nos estados. Então se formou um comitê impulsor de Pernambuco e cada uma, a partir do seu local, de suas possibilidades financeiras, pois não tínhamos recurso mesmo de mobilizar, foi juntando essas mulheres”, afirma.
Segundo Rosa, fizeram parte dessa construção diversas mulheres, organizadas em coletivos ou não. “E a gente foi construindo essa marcha nos processo de formação política. Porque a gente não queria que as mulheres fossem para a Marchasó por irem, a gente queria que elas soubessem porque estávamos indo, porque estávamos marchando contra o machismo, contra o racismo e pelo bem viver”, ressalta.
Rosa conta que elas saíram da Marcha com dois compromissos, o primeiro foi realizar a Marcha em Recife, depois de Brasília, para as mulheres que não foram. E “o segundo foi o fechamento do comitê. E aí nasce a Rede, porque a gente fechou o comitê, mas as mulheres disseram ‘nós não queremos mais voltar para as nossas casas e dormir’”, diz Rosa.
Formação política e fortalecimento das organizações
De acordo com Rosa, a ideia do projeto surgiu para fortalecer umas às outras enquanto segmento de mulheres negras, pois a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco já possui uma inserção no campo da mobilização de recursos e já teve outros projetos financiados, mas o Espaço Mulher e o Cidadania Feminina possuem menos estrutura e necessitavam bastante de apoio financeiro. “Quando a gente viu esse edital a gente pensou: ‘é agora’”, afirma.
O Projeto Olori contou com formação política virtual para mulheres negras periféricas organizadas e não organizadas em coletivos, beneficiando cerca de 200 pessoas. Mas, possibilitou também que fossem adquiridos equipamentos, que houvesse a sistematização das histórias das organizações, a catalogação dos livros da Biblioteca Maria Antônia, do Cidadania Feminina, entre outras coisas.
“Nosso projeto foi muito interessante porque foi um trabalho de formação com mulheres da articulação de bairros de várias periferias da cidade do Recife e região metropolitana. Ele foi voltado para a questão da formação, e iria ser feito presencialmente, aí chegou a pandemia, foi todo mundo naquela loucura, sem saber como iria acontecer”, relata Liliana.
Ela conta que houve muitas formações e diálogos com as pessoas do Fundo Baobá para organizar como seria a execução do projeto nesse período. “Então a gente começou o grande desafio de fazer as formações online, com mulheres que muitas vezes tinham muita dificuldade com o acesso, porque para a gente é tudo muito novo. A Rede disponibilizou crédito para os celulares das mulheres para contribuir, fez orientações de como entrar”, relata.
Mesmo com os desafios impostos, Liliana compartilha que as formações tiveram participação constante. “As mulheres estavam acompanhando ali com toda dificuldade. Teve um fato que muito me surpreendeu e não esqueci: foi a Elisângela Lopes, que ela estava no quintal de casa e com ela tinha mais quatro pessoas assistindo a formação’”, conta.
Clea diz que o projeto veio também para dar visibilidade e contribuir com equipamentos para o Espaço Mulher. “Ajudou a gente a comprar vários equipamentos que a gente não tinha, computador, telão, caixa de som, veio muita coisa pra gente. Nós também somos artesãs, o dinheiro dos artesanatos que a gente vende é para um lanche, para pagar uma água ou luz. Então a gente só tem a agradecer”.
Liliana ressalta que além da catalogação da biblioteca e de materiais, a sistematização da história das organizações foi muito importante. “O Cidadania Feminina começou num quintal de uma casa, mulheres tomando cerveja e foi aumentando o número de mulheres. A gente sabe da história, mas a gente não tinha isso registrado”, descreve. A militante afirma ainda que o projeto deixou frutos não só no Cidadania, mas por onde ele passou com a formação.
O Espaço Mulher deu um grande passo a partir do projeto: a produção do estatuto da organização. “A gente tinha um problema seríssimo porque a gente não tinha grana, e esse projeto deu a oportunidade de estarmos fazendo nosso estatuto, está no cartório”, relata Clea. Ela diz ainda que as mulheres permanecem no grupo da formação e que estão animadas para saber se terá continuidade. “Foi um projeto diferente porque nem todas as mulheres sabiam abrir o aplicativo, e a maioria que se inscreveu permaneceu do início até o fim. Foi um projeto que deixou frutos e, para gente, foi muito rico”, reforça.
Além do grande desafio imposto pela pandemia de covid-19, as mulheres apontam que coordenar um projeto coletivamente foi algo novo para elas. “A gente não tinha feito isso ainda, a gente faz cada uma no seu segmento ou organização. Então foi um grande desafio coordenar um projeto juntas. Buscando outras mulheres que não estavam nem na rede, nem no Espaço Mulher, e nem no Cidadania Feminina, para somar nesse processo de formação política e a gente teve muitos aprendizados”, destaca Rosa.
O processo em meio a pandemia
As coordenadoras do projeto consideram que a pandemia foi o pico da surpresa desagradável. “A gente estava com o projeto presencial, mas quando chegou a pandemia a gente se deparou com as nossas mulheres em processo de fome, depressão, inquietação, de doenças, e a gente no início não olhou muito para o projeto, fomos cuidar de nós mesmas. Porque ou a gente cuidava ou a gente ia se perder”, explica Rosa.
Rosa afirma ainda que a pandemia também trouxe mudanças de comportamento e novos conhecimentos: “Agora, minha filha, pede para Ediclea, Vânia, e Liliana organizarem uma live aí. Daqui há um dia elas estão fazendo webnário. Isso foi um aprendizado. A gente não tinha acesso a essas informações, mas a gente buscou e executou o projeto lindamente”, aponta. Vânia reage ao comentário de Rosa sobre o webnário: “Não sei fazer ainda, mas se me botar para fazer eu faço”, diz de forma descontraída.
Um dos aprendizados com o projeto que Liliana pontua foi o de fazer planejamento. “Para nós que somos de organizações periféricas, a gente não pensa muito no planejamento, a gente planeja, mas o dia a dia da gente é nos ‘corres’ mesmo. Então, parar para pensar como ia ser, planejar essas ações foi uma parte da formação que nós tivemos”.
“Enquanto eles pensam em nos matar, coletivamente a gente resiste para não morrer”
“Eu acho que o Fundo Baobá poderia proporcionar novamente esse tipo de projeto, e também proporcionar que outras organizações possam fazer. O Espaço Mulher agora com o estatuto em mão, ele pode ter um espaço de onde buscar recursos”, pontua Rosa.
Liliana reflete sobre o futuro na perspectiva do momento atual que o Brasil atravessa: “Quando você pergunta o que esperamos para frente, não consigo pensar. Porque para nós que somos de bairros populares, a situação não está fácil, está extremamente difícil”. Ela acredita que é preciso continuar fortalecendo as lideranças que estão na base. “Porque muitas de nós já não conseguimos reunir tantas mulheres porque as dificuldades estão deixando as mulheres sem acreditar, o sentimento do descrédito começa a aflorar com muita força”, reitera. Ela diz ainda que sonha com projetos mais acessíveis para quem é da base.
“Fico pensando como fortalecer esses grupos. A gente só entrou nesse projeto porque a gente estava em grupo, no coletivo. Porque a maioria das organizações pedem que os grupos tenham CNPJ, os grupos periféricos de mulheres negras ‘dançam’, todas as vezes que a gente escreve”, diz Clea sobre os desafios para o futuro. Clea conta que o Espaço Mulher resiste porque possui grandes parceiras que “chegam junto em termos de alimentação, de doação, dando oficina, então a gente tem uma grande parceria que nos fortalece. E a gente só se fortalece quando está no coletivo. Porque se a gente estivesse sozinha aqui em Passarinho, pode ter certeza, a gente não tinha saído do canto”.
Clea finaliza reforçando sua gratidão ao Fundo Baobá e ao projeto. “Só tenho a agradecer a esse projeto, por esse apoio, por fazer tanta gente se reconhecer como mulher negra, porque a gente precisa falar de racismo. A gente tem que sustentar que é mulher negra, periférica, e a gente resiste. Enquanto eles pensam em nos matar, coletivamente a gente resiste para não morrer”, conclui.
O resultado foram organizações de mulheres locais com maior participação em editais, conselhos, sindicatos e liderando as entidades de que participam
Por Andressa Franco*
A necessidade de fortalecer a luta pelo combate ao racismo, ao sexismo, por um modelo de democracia plurriracial e para construção de uma sociedade centrada no bem viver, pede por novas lideranças determinadas a ocupar espaços decisórios fundamentais. Nesse sentido, a capacitação e a formação política e organizacional são instrumentos para percorrer esse caminho.
Possibilitar que novas lideranças femininas tenham habilidade de incidir politicamente em suas entidades ou locais de atuação, através de formações internas e externas,foi uma das motivações do Ayabás – Instituto da Mulher Negra do Piauípara escrever o projeto “Esperança Garcia – Conhecimento de Resistência”. A proposta foi contemplada na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
O título do projeto faz alusão a Esperança Garcia, mulher negra escravizada do Piauí, que foi considerada a primeira mulher advogada do estado. Em 1770 ela enviou ao presidente da Província uma petição denunciando os maus tratos que ela e seu filho sofriam na fazenda onde trabalhavam.
O Projeto
O Instituto Ayabás nasceu com o propósito de debater as implicações do racismo e do sexismo na sociedade, além de lutar pela eliminação das desigualdades e pela valorização e promoção das mulheres negras. Luzilene de Sousa e Silva, conhecida como Leninha, atualmente faz parte da coordenação da organização, e está presente desde a sua fundação. Ela é bióloga, especialista em cultura afrodescendente e educação brasileira.
Leninha conta que dedicou um dia inteiro à escrita do projeto ao lado da contadora do instituto. Uma vez aprovadas, começaram a desenvolver as atividades, que precisaram ser adaptadas para o contexto da pandemia de covid-19. “Não tínhamos nenhuma habilidade com tecnologia. Mas dissemos: ‘vamos meter a cara e fazer’, e ao meu ver foi um sucesso”, avalia. O resultado foram organizações de mulheres locais com maior participação em editais, conselhos, sindicatos e liderando as entidades que participam. Além disso, ela cita também como resultado o fortalecimento interno da instituição, e maior visibilidade alcançada pelo grupo.
“É isso que a gente quer, mais lideranças femininas à frente de organizações, porque somos nós, mulheres negras, que carregamos o Brasil nas costas”, acrescenta. Pessoalmente, Leninha, que nem mesmo se considerava uma liderança, destaca as habilidades que adquiriu na área das mídias sociais, e no desenvolvimento de projetos com as consultorias oferecidas pelo Fundo Baobá. “Além do dom da fala. Eu sou envergonhada demais, e com os depoimentos das meninas que disseram que eu fazia parte das mudanças de vidas delas, eu me encorajei mais a falar”, relata.
Para dar início às ações desenvolvidas pela iniciativa, o instituto começou com uma enumeração de entidades e movimentos sociais relacionados com a temática de racismo e gênero no Piauí, para realizar a inscrição dessas mulheres nas oficinas. A partir daí, os resultados se manifestaram a partir da elaboração do site da organização; do primeiro projeto aprovado por uma das entidades participantes das formações; e da produção de um documentário sobre sua realização.
As Ayabás também foram responsáveis pela realização de eventos como a Feira Preta no Julho das Pretas e o III Encontro Estadual de Mulheres Negras, que desencadeou na formalização da Rede de Mulheres Negras do Piauí. Além de aumentar as participações em lives nacionais, regionais e locais falando sobre feminismo negro, enfrentamento ao feminicídio e participação de mulheres negras na política.
Nascem novas liderança
Participar dos cursos promovidos pelo instituto afetou a vida de dezenas de mulheres. É o caso da quilombola Marcília Rodrigues, de 31 anos, conhecida como Chitara. Ela enviou um depoimento em vídeo para as mulheres do instituto agradecendo a iniciativa. Professora de capoeira, militante negra rural, quilombola do Grupo Cultural Capoeira de Quilombo do município de São João do Piauí e descendente do território Riacho dos Negros, Chitara participou das formações no intuito de aprender do zero a prática de designer para desenvolver artes para os movimentos sociais em que atua.
“Eu não sabia nada do trabalho de um designer, e hoje posso criar artes de divulgação dos nossos trabalhos. Nos nossos movimentos hoje o dinheiro que a gente gastaria para fazer banners, cartazes e camisetas, conseguimos desenvolver atividades para os próprios movimentos, o que era um dos meus sonhos”, relata. Chitara também é técnica agrícola, comunicadora social, mobilizadora sociocultural, membra no Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de São João do Piauí e fundadora do Coletivo de Mulheres Quilombolas Descendentes do Território Riacho dos Negros.
“O depoimento dela é maravilhoso, fiquei muito feliz porque o projeto deu ciência às lideranças não só daqui de Teresina, que é a capital do estado, mas também do interior bem longínquo”, pontua Leninha.
Para a jovem quilombola, os desafios que se seguem são enormes porque ainda são poucos os espaços ocupados por seus pares. “Lidamos com o não acesso às políticas públicas voltada para nós, as retiradas do direito de manter a educação nos nossos territórios e acesso negado ao trabalho para que possamos viver, ter o que comer, conseguir nos manter na roça produzindo”, desabafa Chitara.
Assim como Chitara, Maria das Mercedes Alves de Souza, de 39 anos, também decidiu contribuir para sua comunidade depois de participar das oficinas do projeto. Assim, participou das eleições para coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Piauí, e foi eleita. “Eu acho que foi o máximo dos nossos objetivos”, afirma Luzilene satisfeita.
Também conhecida como Cesinha, Maria das Mercedes é pedagoga, especialista em educação do campo e indígena da etnia Gamela. A entidade que hoje coordena tem por objetivo contribuir com os povos do campo na luta pelo acesso à terra, água e direitos na construção de uma vida dignapara comunidades, territórios e trabalhadores e trabalhadoras rurais. Ela afirma que o Instituto da Mulher Negra do Piauí teve uma grande influência na sua formação política, e como liderança dentro de uma instituição. “O Instituto despertou muito em mim a busca pelo meu lugar enquanto mulher no meio social, a lutar pelos meus direitos, a ver que o espaço da mulher é onde a gente deseja estar”, conta.
Obstáculos e Estratégias
Ocupar uma cadeira de liderança, sendo uma mulher, traz consigo muitos obstáculos. “A gente enfrenta uma sociedade muito cruel, machista e um patriarcado muito forte quando ocupa uma coordenação. Mesmo encontrando no órgão que a gente está atuando o fortalecimento, a sociedade em si ainda é preconceituosa”, destaca Cesinha. Ela acredita que as capacitações como as promovidas pelo Ayabás são, de fato, a melhor alternativa para se enfrentar esses desafios e fazer com que as mulheres se sintam confortáveis quando ocupam essas posições.
Mas, antes de enfrentar esses problemas, os processos de capacitação que influenciaram nas formações dessas mulheres também tiveram suas próprias adversidades. Com a chegada da pandemia, todos os cursos foram adaptados para o formato online, e o acesso à internet foi a dor de cabeça número um. Para isso, algumas das saídas foram as gravações das aulas, e a criação de trabalhos fora do meio virtual para serem realizados entre um encontro e outro.
Lucineide Medeiros, professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), educadora popular, militante feminista e integrante da Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio, ficou responsável por ministrar a oficina de Gestão e Liderança. Ela conta que houve um envolvimento importante de todas as mulheres que participaram.
“No final os testemunhos foram de que o processo trouxe um estímulo para pensar o desafio de ocupar espaços na sociedade e gestar a sociedade que a gente quer, começando pelos lugares em que estamos”, relata a professora. Ela explica que, para além de ocupar esses espaços, foi passado que é preciso fazer isso a partir de princípios que não reproduzem os valores patriarcais e colonialistas, raiz de uma série de problemas sociais.
De acordo com Lucineide, todas as aulas tinham em média 45 mulheres. De diferentes faixas etárias, territórios, rurais, urbanas, mulheres que já eram militantes, ou que ainda não eram. Assim como mulheres de diferentes escolaridades. Por isso, ela teve o cuidado de organizar estratégias que alcançassem o máximo possível essas diferenças. Algumas atividades que implicam escrita, por exemplo, foram adaptadas para as várias formas de expressão que não somente a escrita, como também as expressões artísticas.
“Também haviam as questões de conciliar esses processos de participação com outros afazeres. Para uma parte das mulheres isso não é fácil, considerando que estão em múltiplas tarefas, como as domésticas. Também penso que tem o desafio de, estando nesse espaço virtual, ter condições adequadas para participar, como um ambiente silencioso, ventilado, que dê uma tranquilidade para se concentrar”, acrescenta.
Projetos Futuros
De olho no futuro, o projeto que as integrantes do Ayabás vislumbram no horizonte é a Escola de Formação de Lideranças de Mulheres Negras no Piauí. “Esse é nosso projeto maior, assim como trabalhar com crianças e adolescentes, incentivar porque eles são o futuro, os próximos líderes”, enfatiza Leninha.
O grupo também pretende organizar mais uma edição do Encontro Estadual de Mulheres Negras, já que em 2021 não foi possível. A coordenadora, além disso, idealiza desenvolver oficinas de empoderamento e capacitação dentro do Memorial Esperança Garcia. “A gente também quer trabalhar a questão do afro empreendedorismo, está em alta e diz muito sobre a subsistência das mulheres negras”, finaliza.
A coletiva de Pernambuco apoiada pelo Fundo Baobá, Abayomi – Juristas Negras, desenvolveu uma metodologia própria com o objetivo de incidir e transformar o Sistema Nacional de Justiça
Por Brenda Gomes*
Ao longo do tempo, pessoas negras foram afetadas pelas estruturas racistas do país. Mesmo com recentes avanços relacionados a acessos e ampliação da escolaridade, ainda existem grandes desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Para as mulheres negras, afetadas pela discriminação de raça e gênero, a situação é ainda mais difícil. Essas desigualdades podem ser visualizadas nas diversas áreas, principalmente, nos espaços de poder.
No Brasil, na maior parte dos ambientes de liderança e cargos de direção que são ocupados por mulheres, são por mulheres brancas. Somente 0,4% são pretas, segundo dados do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. No sistema judiciário, a presença dessas mulheres muitas vezes está apenas representada na base, enquanto homens ocupam os espaços de destaque. Pensando na diminuição dessas desigualdades que a Coletiva Abayomi – Juristas Negras tem realizado ações a fim de impulsionar a carreira de profissionais negras nesta área.
De acordo com a advogada Débora Vanessa Gonçalves, uma das co-fundadoras da coletiva, a missão do grupo é combater de forma estratégica o racismo estrutural. O foco da organização é ocupar cargos nos órgãos que compõem o Sistema de Justiça Brasileiro. “Vivemos dentro de uma estrutura de poder que é originalmente racista e sexista, o que faz com que as mulheres negras sejam prejudicadas em todos os sentidos. Nossa missão, como coletiva de mulheres negras, é levantar nossas pautas nos espaços que estamos inseridas e levar também outras mulheres negras conosco”, afirma.
O nome “Abayomi”, de origem yorubá, significa “encontro precioso”. O que diz muito sobre o grupo, que foi formado em 2019, em Pernambuco, após um encontro de juristas negras. O evento foi realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, seção Pernambuco (OAB/PE) no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
A coletiva é um dos grupos apoiados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Com o apoio do Fundo Baobá, um dos investimentos da coletiva foi no aperfeiçoamento da Metodologia Abayomi da Aprendizagem – MADA, que tem como proposta utilizar outras áreas de conhecimento para impulsionar o ensino e as aprendizagens.
Desenvolvida pela Procuradora Federal e co-fundadora da Abayomi, Chiara Ramos, a metodologia envolve atividades como mentoring, coaching, treinamento estratégico e estudo em grupo afrocentrado. “Diferente dos cursos tradicionais, a técnica leva em consideração quatro pilares: o intelectual, que é toda a teoria exigida nos exames; o mental, que considera as nossas experiências psicológicas; o físico, e o espiritual, onde buscamos resgatar a identidade e autoestima das participantes e colaborar para o rompimento de diversas crenças limitantes”, afirma Débora.
Com a pandemia de Covid-19, os encontros presenciais das turmas MADA deram espaço a turmas virtuais, o que permitiu a inclusão de alunas de outros estados, ao todo foram 102 pessoas matriculadas. Durante a formação, as alunas tiveram acesso a cronogramas de estudos semanais; encontros on-line para debate de metas; aulas e palestras; atendimentos individuais e simulações de provas objetivas e dissertativas online. Além da formação referente aos temas tratados nos concursos, as participantes são provocadas a ampliarem a capacidade de leitura política a respeito de temas fundamentais para a compreensão do racismo no Brasil. “Nós não queremos entrar nos espaços apenas para ter números de mulheres negras, queremos estar nesses espaços para fazer diferença. Então, ter esse aquilombamento, onde a gente faz o reconhecimento da nossa negritude e o reconhecimento do nosso espaço, faz com que a gente ocupe os espaços de poder com um outra visão” declara Débora. A advogada ainda afirma que após muita luta, conseguiram na OAB/PE a cota de 30% para advogadas negras dentro do sistema. “Hoje nossa meta é ocupar espaços dentro da diretoria, e só chegaremos lá através de formas estratégias e nos articulando como quilombo”, completa.
Apesar da trajetória das mulheres negras juristas, apesar do empenho de coletivas como as Abayomis, o cenário da magistratura ainda é marcado por sub-representatividades. Segundo o censo divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021, apenas 15,6% dos magistrados do país se autodeclaram como pessoas negras. Quando é feita a segmentação entre sexo e raça, as mulheres negras ocupam apenas 5% dos cargos de juízes do Brasil, 553 dos 10.782. Menos de 5% de mulheres negras exercem os cargos de Procuradoras Federais, Juízas Federais, Procuradoras da Fazenda Nacional, Juízas estaduais, Procuradoras do Trabalho, Advogadas da União e Juízas do Trabalho. Em alguns órgãos, como a Justiça Militar, os conselhos superiores da magistratura e a Procuradoria da República, não possuem mulheres negras enquanto membros. Números que, para Débora, são frutos do racismo estrutural.
“Eu consigo identificar as sutilezas do racismo hoje. Quando a gente consegue entrar nos espaços para exercer a advocacia, é muito visível a falta de diversidade. E o que podemos fazer quando pegamos a nossa OAB? Sermos autônomas? Estamos a serviço da comunidade? Tudo isso são caminhos possíveis, mas não queremos só estes”. Para a advogada é preciso de fato incidir dentro dos ditos espaços de poder para transformá-los. “Os espaços são mínimos para as mulheres negras. Sozinhas não temos como equiparar a carreira com mulheres brancas que possuem privilégios financeiros e/ou familiares em carreira jurídica. Muitas vezes, dentro das nossas famílias, somos as primeiras a nos formar, ou fazemos parte da primeira geração que conseguiu chegar a ter um curso superior”, completa.
A pernambucana, Maria José de Oliveira, sempre sonhou em seguir a carreira jurídica, e foi com a ajuda da MADA que ela conseguiu a tão esperada aprovação na OAB. “Conheci a Abayomi através de uma colega de faculdade. Quando iniciamos a formação com a MADA eu fiquei maravilhada, pois tudo aquilo era algo novo para mim, apesar de sempre ter tido uma proximidade com as questões sociais”. A advogada, agora licenciada, afirma que nenhum outro curso preparatório abriria tantos horizontes como o oferecido pela coletiva. “Antes eu não acreditava tanto em mim, aí veio a primeira fase da OAB, depois a segunda fase e depois o resultado. Esse mês ainda [outubro de 2021] estarei lá fazendo meu juramento, para poder em breve dar a minha contribuição para as próximas que virão. A gente precisa estar lá para mudar a estrutura por dentro”, descreve Maria José.
Uma proposta de mentoria enegrecida
Uma outra realização possível com o apoio do Fundo Baobá, foi o desenvolvimento do programa Black Coach Abayomi. A partir de técnicas de autoconhecimento e de desenvolvimento pessoal e profissional, o programa tem como proposta resgatar a identidade e a autoestima do povo negro a fim de desenvolver competências para ocupar “espaços de poder”.
“Os pilares da MADA são utilizados para a formação dessas profissionais, pois acreditamos que é uma metodologia que fala sobre nós enquanto quilombo. É um curso de coach afrocentrado. Para além das técnicas de coach, a gente inclui os quatro pilares da MADA, para que as profissionais que estão sendo formadas possam aplicar esses pilares em seus ambientes de atuação”, conta Débora Gonçalves.
A proposta inicial da formação era atender cinco lideranças, mas com o recurso foi possível atender 20 lideranças. Dentre elas a pedagoga, Viviane Carneiro, que encontrou na mentoria a possibilidade de aperfeiçoar os atendimentos que já realizava. “Em um determinado momento da minha vida eu achei que poderia encorajar outras mulheres com as minhas vivências, e passei a utilizar as redes sociais para disseminar esse trabalho. Mas, nada que eu pudesse comparar com a aplicação da MADA. Após a formação, eu me sinto com maior capacidade técnica para atender outras mulheres”, afirma.
A trajetória das mulheres juristas Abayomis também passou a ser registrada através de artigos no site da coletiva e no Anuário Abayomi Juristas Negras, materiais também produzidos com o apoio do Fundo Baobá. Foi possível incentivar a produção de 50 artigos, com temas relacionados a questões raciais, gênero e o meio jurídico. Uma espécie de registro da luta da coletiva para a incidência no Sistema Judiciário brasileiro.
Organização do Rio de Janeiro tem o objetivo de promover maior participação de mulheres negras na política institucional e já conta com articuladoras em 19 estados
Por Andressa Franco*
Fundada em 2018, a organização Mulheres Negras Decidem (MND), tem como objetivo promover a maior participação de mulheres negras nas decisões do Estado e acompanhar a atuação daquelas que estão na disputa da política institucional. A organização é uma das contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
“O Fundo Baobá foi primordial nesse processo [de desenvolvimento institucional, comunicação, e ações de incidência da organização], porque desde o início do movimento a gente tem feito muitas ações, mas foram ações que tinham nosso investimento pessoal financeiro”, conta Diana Mendes, de 30 anos, uma das co-fundadoras, e coordenadora de monitoramento e avaliação do movimento.
O que os números dizem
O Brasil tem hoje um cenário de sub-representação das mulheres na política partidária institucional. De acordo com estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), o Brasil é o antepenúltimo país da América Latina em um ranking de paridade política entre homens e mulheres. Quando essas mulheres são negras, grupo que representa 27,8% da população brasileira segundo o IBGE, o quadro se agrava.
Em 1934, o Brasil elegeu a primeira mulher negra para uma Assembleia Legislativa: Antonieta de Barros. Em 2020, informações da Agência Câmara de Notícias mostraram que, nas últimas eleições, 6,3% das cadeiras nas Câmaras Municipais do país foram para mulheres negras. Curitiba, Vitória e Goiânia, por exemplo, elegeram suas primeiras vereadoras negras. No Congresso Nacional esse grupo representa apenas 2,36%, sendo no Senado 1,2% e na Câmara dos Deputados são menos de 2,5%.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma eleitoral, promulgada em setembro deste ano pelo Congresso Nacional, trouxe uma novidade. Agora, a distribuição do fundo partidário vai privilegiar os partidos que fortalecerem candidaturas de mulheres e pessoas negras. Para efeito da distribuição dos recursos, que leva em conta a quantidade de votos recebidos pelo partido, os votos em mulheres e pessoas negras será contado em dobro. A regra é transitória e tem previsão para durar até 2030.
Projeção de lideranças políticas
É nesse contexto, visando superar a sub-representação feminina negra na política, que a organização Mulheres Negras Decidem atua, e pôde expandir a partir do financiamento do Fundo Baobá, avançando na formação de lideranças políticas que possam representar as demandas das mulheres negras nestes espaços.
Entre as ações realizadas durante o período do apoio, destacam-se: o lançamento do livro “A Radical Imaginação Política das Mulheres Negras Brasileiras”; o Comitê Marielle Franco de Prevenção e Enfrentamento à Violência Política Contra as Mulheres; e o lançamento da Rede Nacional de Mulheres Negras na Política, que busca mobilizar mulheres negras para alterar a atual situação de baixa representação deste segmento nas esferas decisórias. “Com o apoio do Baobá foi possível a gente se consolidar enquanto movimento nacional, hoje temos articuladoras em 19 estados, quando a gente começou tínhamos 5″, explica Diana Mendes, que é da área de políticas públicas e relações internacionais. Ela trabalha há 6 anos na área social, e acredita que o aumento de mulheres negras candidatas nas últimas eleições foi fruto de articulações e ações pensadas em conjunto.
Benny Briolly (PSOL-RJ), primeira vereadora transexual eleita em Niterói (RJ), comunicadora popular e ativista de direitos humanos, é uma das lideranças que teve apoio da organização. Para a vereadora, o nosso senso de se organizar e coletivizar organizações é o maior avanço que as mulheres negras têm hoje no Brasil.
“A nossa auto-organização proporciona que hoje a gente esteja ocupando, liderando e disputando espaços com a velha política, com a branquitude”, afirma. “Eu costumo dizer que nós, mulheres negras, não nos tornamos militantes, nascemos militantes e somos condicionadas à militância no decorrer da vida. Porque é cada vez mais necessário e urgente lutar pelos marcos da nossa sobrevivência, cidadania e resistência”.
Um dos papéis que a instituição teve para Briolly, além de apoiar sua candidatura, foi também o apoio em relação ao processo de segurança da vereadora, que hoje é uma parlamentar ameaçada no Brasil. “Foram uma das grandes apoiadoras nesse processo de entender a importância do meu corpo, de serem grandes aliadas na construção da minha trajetória política”, conta a vereadora que acredita que a MND é um marco muito importante na construção política social, econômica e de projeto de sociedade. “Elas têm cumprido um papel excelente na estrutura de outras mulheres e, principalmente, nesses processos de formação, de apoio, de se aquilombar para que a luta possa ter eficácia”, acrescenta.
O planejamento estratégico com maior geração de resultados também foi um avanço para a organização, tanto na comunicação, quanto na forma institucional e nas articulações. O diálogo com outras organizações através do Programa foi um dos saldos positivos para o movimento.
“A possibilidade do recurso também ser sobre o fortalecimento do desenvolvimento organizacional dos coletivos que foram contemplados é muito raro dentro do campo social. A ação ou projeto você pode entregar depois do ciclo de um ano, mas a estrutura que você deixa para o ciclo da organização é muito forte, fica a longo prazo”, ressalta Diana.
Para Onde Vamos?
É a pergunta que intitula a minissérie documental dirigida por Cláudia Alves, que apresenta o movimento de mulheres negras no Brasil através da história de ativistas que vêm liderando revoluções no modo de fazer e pensar políticas públicas para o país. A produção foi realizada em parceria com o Instituto Marielle Franco, Canal Brasil e FLUXA Filmes.
Para Tay Cabral, ilustradora do produto audiovisual, foi gratificante “ajudar a contar um pouco do legado que as protagonistas da série têm construído e trazer o rosto de mulheres que elas também reverenciam ao longo dos episódios”. A artista visual, de 25 anos, tem um trabalho voltado para reverenciar mulheres negras que fizeram das suas vidas instrumento de luta, por meio de ilustrações que buscam olhar para esse passado.
“A série é um instrumento de denúncia e de disputa narrativa, mas também cumpre um papel muito importante de renovar nossa esperança. No sentido de que as coisas estão muito puxadas agora, mas têm mulheres se movimentando na construção de um futuro que a gente acredita e não vão desistir disso”, pondera a jovem que se orgulha de fazer parte do trabalho. A série teve 80% de mulheres negras representando toda a produção no set.
“Para Onde Vamos” é também o nome da pesquisa feita pela MND com 245 ativistas, mulheres negras de todas as regiões do país. A pesquisa foi feita para que a organização mapeasse essas mulheres, tanto para entender quais ações elas estavam fazendo a respeito da pandemia nos seus territórios, quanto para diagnosticar se elas iam se candidatar, se eram lideranças que recuaram suas candidaturas, entre outros pontos.
Pandemia e Desafios Futuros
Os planejamentos iniciais no projeto estavam focados em sistematizar a metodologia da organização enquanto formação, a partir de encontros com as articuladoras em diferentes estados. Sendo assim, a chegada da pandemia de covid-19 impediu que as viagens fossem possíveis.
Algumas atividades, no entanto, não precisaram ser recalculadas, como a atualização da plataforma, e o investimento na comunicação. Mas tudo que foi imaginado enquanto presencial, precisou se adaptar. “Para nossa grata surpresa, isso fez na verdade com que o movimento alcançasse mais mulheres. Nossos encontros pensados de forma online possibilitaram que, nos seis primeiros meses, a gente conseguisse articuladoras em 16 estados, depois cresceu para 19”, comenta Diana.
Com toda a migração para o online, segurança digital também se tornou um tema a ser pensado pelas coordenadoras. “Nos nossos encontros presenciais a gente já tinha todo um cuidado com as articuladoras, com a segurança delas, e pensando isso online, como tiveram várias invasões e tudo mais, a gente também teve todo esse cuidado”.
Para Diana, ainda há muito pela frente, principalmente no próximo ano, que considera desafiador pelo desenho da conjuntura atual, que além de todos os problemas estruturais, trouxe ainda mais desgaste à saúde mental das mulheres negras ativistas. Nesse sentido, aprecia o cuidado e as experiências de troca com as demais lideranças que conheceu a partir do Fundo Baobá.
Também entre os desafios para o próximo ciclo, Mendes pensa métodos para a escuta comunicativa da organização se consolidar também na região Norte do país. A MND tem articuladoras na região, porém elas enfrentam dificuldades, por exemplo, no acesso à internet. “Queremos equalizar lá as ações que a gente consegue fazer no Sudeste. Como é que a gente consolida melhor a nossa articulação e trabalho nesses territórios?”, pontua.
Coletivo pernambucano promove formações de ampliação das capacidades de intervenção de mulheres negras junto às suas comunidades
Por Andressa Franco*
Se o papel das lideranças comunitárias ganhou destaque em algum momento, foi na pandemia de covid-19. Com uma atuação que visa promover constante melhoria nos territórios onde vivem, representando os moradores de seus bairros e favelas, elas buscam desenvolvimento social para a região efacilitam a apresentação de demandas ao poder público.Com a pandemia, esse trabalho ficou ainda mais visível, com as campanhas locais de distribuição de cestas básicas e outras iniciativas para garantir que as informações sobre prevenção chegassem e assim minimizassem os impactos que a doença gerou no contexto social.
O fortalecimento de lideranças e coletivos de mulheres negras com essa atuação, visando a ampliação de suas capacidades de intervenção junto às suas comunidades, foi uma das motivações do Coletivo Filhas do Vento, de Pernambuco. O projeto “Travessias Negras: das margens periféricas aos centros decisórios do poder” teve como ênfase o alcance do público feminino negro jovem.
O projeto foi aprovado para integrar a 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Lideranças: negras, femininas e comunitárias
Militante do movimento de mulheres negras desde 2010, Emanuelle Nascimento é educadora e doutoranda em sociologia. Com a experiência integrando organizações como a Articulação Negra de Pernambuco e a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, decidiu em 2016 se juntar a outras quatro mulheres no Coletivo Filhas do Vento. Um grupo de mulheres periféricas que acessaram a universidade, e promovem ações formativas de enfrentamento ao racismo, ao sexismo, discriminação de gênero e raça.
Propósitos que intensificaram ao serem contempladas com o recurso do Fundo Baobá, primeiro projeto aprovado do grupo. “O projeto foi, na perspectiva profissional, minha principal descoberta. Me mostrou que eu sou boa em gestão financeira, e que a gente tem potencial de fazer aquilo que tem vontade na área dos projetos”, pontua Emanuele. Ela conta que ampliou sua rede, conheceu profissionais, militantes e lideranças de todo Brasil.
Entre os resultados, destaca a captação de novas integrantes e a contratação de uma assessoria voltada para ampliar as possibilidades de articulação do coletivo, identificando redes de apoio técnico e financeiro. Também foi possível adquirir equipamentos básicos para as ações realizadas pelo grupo e criação de um site produzido por mulheres negras.
Além disso, foram realizadas formações políticas e de fortalecimento institucional para as integrantes dos encontros “Rodas Negras On-Line”. As formações também contemplaram as participantes das oficinas voltadas para elaboração de projetos e desenvolvimento das capacidades individuais e coletivas, promovidas para mulheres negras do estado.
Uma dessas mulheres foi a líder comunitária Lídia Lins, ativista de direitos humanos e articuladora social. Em 2016 ela fundou o Coletivo Ibura Mais Cultura, no bairro onde mora, atuando com as agendas políticas raciais, de gênero, sexualidades e segurança pública. Lídia é bacharel em direito, assessora técnica do GAJOP – Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares, e cofundadora do Empodera LAB – laboratório de inovação social das favelas. Este último atua desde 2020 no fortalecimento da participação social da população negra e favelada nos espaços decisórios.
Para Lídia, a população negra sofre processos de exclusão quando começa a acessar espaços de poder e decisão, e por isso precisa se munir de conhecimento teórico para disputar narrativas e defender as próprias pautas. “Eu acredito que informação é poder. Nas formações tivemos textos e referenciais históricos muito bem apresentados e as discussões eram muito ricas. Para mim enriqueceu muito no sentido de realizar uma incidência mais qualificada”, descreve.
A ativista participou das atividades em um momento de enfrentamento à covid-19, onde prestava ajuda humanitária às famílias que estavam expostas e atingidas pelas condições impostas pela pandemia. Nesse sentido, conta que as formações ajudaram a costurar os argumentos de disputa na pressão política pelo auxílio emergencial, e na cobrança por uma resposta do estado no enfrentamento às desigualdades geradas naquele momento. Principalmente para a população que ainda não tem acesso a certos espaços de conhecimento.
“O recurso, conhecimento, às vezes chega muito depois se a gente não tem uma ponte, nem consegue formular redes, e acessar de alguma forma algum espaço de poder”, acrescenta. O desafio, de acordo com ela: “é ao mesmo tempo estar no território contribuindo com a transformação social, e fazer parte dessa parcela da população que é atingida pelas mazelas sociais”.
Mulheres, Juventude e Educação
As ações realizadas pela organização com o recurso não pararam por aí. Para o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, realizaram o lançamento deuma série de vídeos com temas relevantes, como: “Aláfia: Revoluções Feministas Negras”, sobre as lutas das mulheres negras; “Jovens Insurgências”, sobre juventude negra; e “Enraizando Saberes Ancestrais”, sobre educação antirracista. Além de apresentar a trajetória dos até então quase cinco anos de atuação do coletivo no vídeo “Ventania”. O Coletivo também abordou a experiência na execução do projeto do Programa de Aceleração em meio ao contexto da pandemia de covid-19, no vídeo “Travessias”.
Responsável por coordenar a ação, Waneska Viana tem formação em sociologia, especialização em gestão pública e mestrado em educação, culturas e identidades. Desde a graduação, a recifense iniciou seu diálogo com os movimentos sociais e a partir dessas interações, iniciou no Coletivo Filhas do Vento. Ela acredita que o Programa foi o melhor acontecimento da história do coletivo.
Para Waneska, o objetivo da série de vídeos é dar visibilidade aos temas que são importantes para o coletivo: mulheres, juventude e educação. Sendo a educação uma pauta cara para as integrantes, por terem acessado a universidade e terem um entendimento de que a educação antirracista, além de combater o racismo, permite a construção de uma identidade positiva.
“Eu entendo que o material que a gente construiu pode ser utilizado como subsídio por outros grupos. Porque a gente não só fala dos temas, mas traz possibilidades para abordá-los”, reflete. Ela conta que participou do vídeo sobre juventude, “e aí a gente traz muito esse norte das nossas percepções profissionais de como lidar com esse público, e de fato fazer uma ação antirracista”, explica.
As gravações aconteceram em agosto, quando algumas das integrantes já estavam vacinadas, em espaços fechados e abertos, e mantendo os cuidados de biossegurança contra o vírus. O vídeo institucional foi gravado com todas juntas, de máscaras. “Já fazia muito tempo que a gente não se encontrava presencialmente. Inclusive no processo entraram novas integrantes e fizemos um kit de boas-vindas para as novatas”. Depois de publicados no canal da organização no YouTube, foram publicados no Instagram como ação para o Novembro Negro.
Travessias pandêmicas
Adaptar todas as atividades pensadas originalmente em formato presencial, para um formato online, foi uma tarefa que recaiu sobre todas as lideranças contempladas com o Programa. Segundo Emanuele, todos os grupos e lideranças fizeram um bom trabalho, mas a dificuldade com o formato online para as mulheres negras é ainda maior por ser um campo em que historicamente estas acessam com atraso.
“Mas a equipe deu um suporte muito bom no sentido de acolher as nossas dúvidas sobre como nos situarmos nesse novo espaço. Fizemos as adaptações sempre em diálogo com o Baobá, que ia realmente fazendo esse acompanhamento e dando direcionamentos”, comenta a Emanuele, que também frisa as perdas decorrentes da pandemia, como um dos desafios.
Nesse sentido, o grupo organizou uma oficina de fortalecimento emocional, para dividir angústias, e lidar com aquele contexto de perdas e incertezas. Iniciativa essencial para Waneska, que se descobriu grávida no início da pandemia, o que acabou despertando muitas inseguranças. E também para Lídia, que conta que, como os cursos aconteciam à noite depois de um dia cansativo, o momento também se tornava de autocuidado a partir das trocas. “Era chegar e ter um espaço que a gente pudesse dialogar sobre as coisas que estavam acontecendo, compartilhar angústias”, desabafa.
“Foi muito difícil se articular para disponibilizar informação sobre a pandemia, combater notícias falsas, tudo com uma linguagem acessível entre pares, nossos vizinhos, amigos. Era preciso se atualizar muito rápido”. A líder comunitária acrescenta ainda que, durante as ações, sempre havia uma formação política por trás, discutindo com a comunidade sobre de onde vinham os recursos: dos movimentos sociais, e não do governo.
A série de vídeos também surgiu como alternativa diante do cenário pandêmico. A princípio, o recurso seria direcionado para atividades educativas presenciais com crianças e adolescentes, e também para uma viagem de articulação para os Estados Unidos. O objetivo era dialogar sobre a perspectiva do trabalho contra o sistema prisional feito no país. Na impossibilidade das duas atividades, redirecionaram as ideias para a produção audiovisual.
Próximos Passos
De olho nos próximos passos, as Filhas do Vento, que iniciaram o projeto com cinco integrantes e hoje contam com nove, já conseguiram aprovar um pequeno projeto de fortalecimento institucional em outro edital.
Com a experiência adquirida no Baobá, as pernambucanas agora estão pensando em fazer um planejamento estratégico, e aperfeiçoar sua comunicação, para potencializar o material que já produzem hoje. Para Emanuele, foi uma surpresa que um edital se propusesse a fortalecer grupos e organizações de mulheres negras, ao invés de apenas propor realização de atividades. “A gente agora visa aprovação em outros editais pensando ações mesmo, acho que a gente está na expectativa de voltar a promover atividades presenciais”, idealiza.
Com o apoio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, o grupo promoveu a formação de 20 mulheres para captar recursos e gerir projetos sociais
Por Jamile Novaes*
O papel de liderança desempenhado por mulheres negras ao longo da história do Brasil é de fundamental importância para o processo de libertação e garantia de direitos da população negra. Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Antonieta de Barros, Marielle Franco, e muitas outras, mostram que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, como afirma a filósofa estadunidense Angela Davis.
Por todo o país, mulheres negras seguem aquilombando-se e atuando para transformar a sociedade, como é o caso do Movimento de Mulheres do Subúrbio Ginga. A organização foi fundada em 2010 por 15 mulheres do bairro de Santa Luzia do Lobato, Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA). O objetivo da entidade é fortalecer o protagonismo feminino na comunidade para o enfrentamento de violações aos direitos humanos, ao racismo, sexismo e à violência doméstica, além de promover a autonomia financeira das mulheres. Durante a última década, o grupo vem desenvolvendo uma série de ações em parceria com outras organizações da sociedade civil, dentro e fora do Subúrbio.
O grupo é um dos contemplados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Formação de novas lideranças
Ao pesquisar sobre ações voltadas para a transformação da realidade de mulheres negras na Região Metropolitana de Salvador, o Ginga identificou um número considerável de organizações recém criadas e percebeu a necessidade de promover uma formação que capacitasse mulheres negras representantes dessas entidades. Era preciso compartilhar conhecimento para que essas mulheres captassem seus próprios recursos e pudessem gerir os seus projetos de forma autônoma. Apoiadas pelo Programa Marielle Franco, as mulheres do Ginga receberam suporte técnico e financeiro para realizar o projeto “Mulheres Negras: elaborando estratégias, fortalecendo saberes”. 20 entidades escolheram as suas representantes para participar do curso que aconteceu entre outubro de 2020 e agosto de 2021.
Dentre as participantes, estava Raquel Menezes, idealizadora do Núcleo de Apoio às Comunidades de Lauro de Freitas – NAC, entidade que visa promover a transformação social atuando em redes de colaboração com outras associações comunitárias para dar suporte e encaminhar as demandas da população local. Segundo Raquel, “o projeto mostrou como construir, passo a passo, cada etapa de um projeto social, para que saibamos nos adaptar a cada situação requerida por editais ou oportunidades”. Apesar de ainda não participar da concorrência de editais, a formação permitiu ao NAC estruturar o projeto Cicloturismo de Base Comunitária com foco no turismo, meio ambiente, economia solidária e arte-educação. O projeto foi abraçado por outras organizações comunitárias e já está em execução.
A experiência formativa de troca de conhecimentos entre as mulheres do Ginga e das organizações contempladas pelo projeto abriu um leque de possibilidades, que só foi possível graças ao esforço conjunto empenhado para analisar as demandas, fragilidades e potencialidades de cada coletivo. “Fiquei muito feliz de poder trabalhar com mulheres negras que partilham tantas experiências de vida comuns à minha como mulher negra”, comemora Cláudia Isabele Pinho, integrante do grupo Ginga e facilitadora do curso. De acordo com ela, no percurso da formação foi preciso reorientar os conteúdos conforme as questões eram trazidas pelas contempladas. “Respondê-las me desafiou, tanto do ponto de vista técnico quanto analítico, porque elas me cobraram respostas que interseccionavam articulação política, ética e compliance. Por isso, também ficou a sensação de uma experiência realmente relevante em que eu também fui formada nas trocas e desafios durante o processo”, explica.
Impactos da pandemia de Covid-19
A proposta inicial do projeto era realizar formações presenciais, o que precisou passar por adaptações para seguir as normas de segurança estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em função da pandemia de Covid-19. Para isso, as mulheres do Ginga precisaram, antes de tudo, se capacitar para utilizar aplicativos e plataformas virtuais que garantissem a inclusão de todas as participantes. A partir daí perceberam que precisariam adotar um ambiente virtual de aprendizagem, com aulas transmitidas online, o que foi um desafio tendo em vista as limitações de acesso à internet.
“Tentamos nos cercar de todos os instrumentos e mecanismos pedagógicos possíveis e acessíveis. Isso demandou uma mudança na carga horária, que teve que ser ampliada para assegurar a aprendizagem com aulas de reforço, de compartilhamento das leituras, repercurso de módulos pendentes e plantões de orientação dos projetos”, conta Maíse Zucco, integrante do grupo Ginga e coordenadora pedagógica da formação.
Alterar o projeto para o formato virtual também demandou ajustes no plano pedagógico para garantir a permanência das cursistas. Foi necessário utilizar ferramentas que assegurassem a acessibilidade de mulheres com baixa visão e promover o acolhimento psicológico para lidar com questões de saúde mental e experiências de violências que se intensificaram durante o contexto pandêmico.
Continuidade
Além da oportunidade de oferecer formação a outras mulheres e organizações, o apoio do Fundo Baobá permitiu também ao próprio grupo Ginga se reestruturar internamente e dinamizar a sua atuação. “Evoluímos enquanto grupo, superando as nossas dificuldades tecnológicas, explorando habilidades individuais para uma melhor gestão do tempo e das pessoas. Assim, avançamos na gestão da nossa entidade, descentralizando a administração das ações com o compartilhamento de responsabilidades”, nos conta Carine Lustosa, integrante do grupo Ginga e coordenadora geral do projeto.De acordo com ela, o programa contribuiu para a formação política do movimento, fortalecendo o emocional e psicológico diante desse cenário pandêmico. “Cada oficina promovida nos ajudou a resistir, acolhendo-nos e alimentando-nos de conhecimento e esperança, mostrando-nos que somos capazes de ir além e transformar essa realidade”, afirma.
Com base no aprendizado adquirido com a execução do projeto, o grupo Ginga pretende se colocar na concorrência de editais para financiar os seus projetos futuros, além de dar continuidade às articulações e ações em rede para promover diálogos sobre temáticas de interesse dos coletivos de mulheres negras. “Nós crescemos como grupo, lapidamos talentos e lideranças enquanto nos mantivemos firmes no objetivo de melhorar a vida das mulheres no nosso município, estado e país. Tudo isso, apesar do contexto de retração dos direitos sociais e ataque à democracia”, conclui Cláudia Isabele.
A Associação do Clube das Mães do povoado São Pedro realizou durante o Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco oficinas e cursos que beneficiaram a comunidade
Por Jamile Araújo*
Há três décadas as necessidades de transformação na comunidade organizam e movimentam as mulheres no povoado São Pedro, localizado em Anajatuba, no interior do Maranhão. A Associação do Clube das Mães São Pedro atua desde 1991, com atividades voltadas para crianças e adolescentes, mas também com formação para as mulheres. Após 30 anos de luta, as lideranças do Clube perceberam a necessidade de dinamizar e modernizar a entidade, única associação de mulheres do município até hoje.
O apoio do Fundo Baobá veio no momento ideal para “levantar a moral” da Associação e possibilitar o planejamento de um futuro com sede própria e novos projetos – é o que afirmam as suas componentes. A entidade é uma das contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
A história da Associação Clube das Mães do Povoado São Pedro se mistura com boa parte da história de vida de Maria Eunice de Jesus Santos, 69 anos, professora aposentada e membro do Clube desde a criação. Ela conta que é filha do povoado de São Pedro e que, quando era adolescente, saiu para estudar na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). “Uma coisa interessante é que nessa época, de 1976 a 1980, eu fui a primeira pessoa negra de Anajatuba a cursar uma universidade pública. Abri caminho para muitos outros, e hoje tem várias pessoas que já fizeram curso superior também, inclusive Filomena [jovem do povoado presente durante a entrevista]”.
Dona Eunice acredita na educação como um caminho possível de empoderamento. “Sem educação a gente não é nada. Sem educação nunca vamos ser mulheres empoderadas”, afirma. E foi a partir da educação que Dona Eunice, professora do ensino médio e técnica em assuntos culturais, teve contato com a possibilidade do trabalho social para transformar vidas. “Nunca esqueci minhas raízes de São Pedro. Nessa trajetória, em 1991 eu fui procurada por algumas mulheres para falar que ‘não tinha nada na comunidade’. Então eu disse ‘nós vamos criar um grupo de mulheres’, e criamos a Associação. E daí a gente vem trabalhando. Tudo o que a gente conseguiu para o povoado foi por articulação, para angariar as coisas. E isso a gente fez de água à luz”, explica.
Joana Moura Machado Santana, 67 anos, também é co-fundadora e faz parte da diretoria do Clube de Mães. Ela explica que o trabalho é realizado conjuntamente, e que o desejo de trazer o novo e apoiar a comunidade é o que as move. “Estamos aqui desde que começou, todo o tempo junto, fazendo nosso trabalho juntas, participando. Estou aqui na luta junto com minhas amigas, querendo trazer alguma coisa e apoiando nossa comunidade”, diz Dona Joana.
Fortalecimento e dinamização da Associação
As mulheres da Associação relatam que antes do apoio do Fundo Baobá alguns projetos do Clube de Mães com crianças e adolescentes foram apoiados por outras organizações, mas que nos últimos períodos perceberam que uma dinamização era necessária.
De acordo com Dona Eunice, os projetos implementaram ações com arte, cultura, teatro, entre outras áreas. “Plantas medicinais também… a gente visitou até o horto medicinal da UFMA. Visitamos alguns espaços da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Já tivemos outras experiências com alfabetização de jovens e adultos, mini-usina de beneficiamento de arroz, entre outros”, pontua.
“A gente estava bem baixinho, quase não andando mais”, lembra Dona Eunice. Ela acredita que o projeto veio para levantar a moral do Clube de Mães. “Por isso que a gente colocou ‘dinamização do Clube das Mães’, para poder levantar”, argumenta.
Entre 2020 e 2021, período de execução do projeto, a Associação realizou oficinas e cursos, além de iniciar uma presença virtual, com a criação das redes sociais da instituição, que estão para ser lançadas. “Nesse período de pandemia a gente fez doação de cestas básicas para as pessoas mais necessitadas da comunidade. Doou também kits de higiene pessoal para crianças, com creme dental, escova de dente, sabonete, e todo mundo saiu satisfeito”, relata Dona Eunice.
“O Fundo Baobá deu grande apoio para a gente nesse momento. A gente teve oficinas de associativismo, gestão social e governança; internet e redes sociais; captação de recursos e elaboração de projetos sociais”, conta a liderança. “Para a gente é uma satisfação porque os jovens se interessaram por esses assuntos, e assim não deixam morrer essas atividades na comunidade”, explica ao comentar que nas oficinas de internet e redes sociais houve uma grande presença de jovens.
Teoria e prática: oficinas enriquecem o olhar da comunidade e envolve jovens na continuidade das ações
A professora Maria Albertina Lima Machado, 41 anos, moradora do povoado São Pedro e sócia do Clube de Mães, participou de seu primeiro projeto na Associação. “Eu tive a oportunidade de participar da oficina de associativismo e gestão social”. Ela conta que foi uma experiência muito enriquecedora e que, apesar de já ter uma noção de como fazer os documentos de uma associação, não sabia como fazer de uma associação de uma comunidade.
A professora acredita que as oficinas impactaram e trouxeram um conhecimento gigantesco para a comunidade, que já lida com negócios, mas não tinha tanta noção do planejamento e requisitos para o gerenciamento. “Vou levar para minha vida, porque a gente que pensa em gerir e gerenciar nossos negócios em uma comunidade precisa disso também. Aqui tem algumas pessoas que produzem, trabalham com hortas, e que aprenderam muito nesse curso com a questão dos gastos”, reitera.
Filomena Lica dos Santos, 28 anos, pedagoga e moradora da comunidade de São Pedro, participou das oficinas de captação de recursos; e internet e redes sociais. “Teve uma mudança radical aqui na nossa comunidade. Porque tem muitas pessoas que através dessas oficinas estão dando continuidade. Aquilo que aprenderam na teoria estão colocando na prática. Então foi muito enriquecedor para mim e para os demais jovens”, afirma.
Nicole Cintia Machado Santos, 13 anos, sempre participa das atividades da Associação com sua mãe, Maria Albertina. A adolescente participou das oficinas de internet e redes sociais e acredita que foi muito enriquecedor poder ter uma noção melhor sobre os computadores. “Eu achei bem interessante o que a gente trabalhou nela. Foi bom para a gente ter uma experiência, já tinha começado com um curso básico e esse foi mais avançado”, descreve.
Maria Albertina destaca ainda, que mesmo não participando das oficinas de internet e redes sociais, a realização delas impactou até mesmo em sua casa. “Minha filha participou e veio me ajudar também. Porque como estamos trabalhando de forma remota e eu não fiz curso de informática, então o conhecimento que ela adquiriu na oficina veio me ajudar. Alguma coisa que eu me atrapalhava, falava ‘Nicole vem aqui’. Então diretamente me ajudou”, pontua.
Dina Carla Barbosa Almeida, 46 anos, consultora do projeto do Clube das Mães, conta que se sentiu muito feliz em fazer este trabalho. “Aprendi temas novos e uma linguagem nova. O gerente de projetos tem que estar sempre aberto a receber, a ouvir, a aprender ali todos os dias. Então foi muito importante para mim ter conhecido o Baobá, ter conhecido as pessoas e esta luta. Me sinto feliz por mais uma história que trilhamos”, afirma.
Desafios em tempos de pandemia
A pandemia de Covid-19 foi um desafio que exigiu que as mulheres se reinventassem durante toda a execução do projeto. Maria Albertina conta que tiveram que fazer muitas adaptações. “Inclusive na oficina de Associativismo. Tivemos que reduzir o número de participantes. A gente ainda estava com muito pavor. Precisamos fazer ao ar livre, com muito cuidado. Em todas as oficinas tivemos que fazer adaptações”. Mesmo assim, todas as ações planejadas foram concluídas, com os cuidados exigidos diante do contexto de crise sanitária.
Dina Carla relata que, mesmo antes do início da pandemia, o Fundo Baobá já estava inovando com a introdução de reuniões virtuais, por isso foi necessário planejar um bom ponto de internet. “Lá no início não tínhamos uma internet tão boa. Havia um ponto de internet na Escola Família Agrícola, que na época em nossa primeira reunião virtual não estava funcionando bem. Hoje as pessoas já têm internet lá”, destaca.
Construção de uma Sede e novos projetos
“Pra gente, participar do projeto do Fundo Baobá foi excelente, a gente fica muito agradecida”, diz Dona Eunice. As mulheres do Clube de Mães têm agora o desafio, junto com a União de Moradores de São Pedro, de encontrar apoio para viabilização do Centro de Desenvolvimento Social do povoado. Elas citam a necessidade de engenheiros, arquitetos, doação de materiais, tudo que contribua para a materialização do sonho desse espaço físico que será mais um avanço para a comunidade.
A dificuldade de espaço físico sempre foi algo presente. Inicialmente a Associação funcionava em uma casa de palha. Depois no salão da antiga mini usina de beneficiamento de arroz, que não era um espaço apenas da entidade. Atualmente está sendo viabilizado um terreno para a construção do que estão chamando de Centro de Desenvolvimento Social.
“O terreno é bem no meio do povoado, para fazer a sede da Associação do Clube das Mães e a sede da união de moradores do povoado de São Pedro. A união de moradores trabalha mais com os homens, com a produção agrícola e fabricação de farinha. E o Clube das Mães com o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, e também a formação com as mulheres”, relata Dona Eunice.
Elas projetam que o novo espaço tenha uma sala de informática, já que as duas organizações têm computadores; sala de secretaria de cada organização; sala de exposição permanente como um museu rural, banheiros e cozinha com acessibilidade; sala de reuniões e sala para cursos e oficinas. “Não sei se o terreno vai caber tudo isso, mas eu acredito que vai suportar”, brinca Dona Eunice. “Então agora é outra batalha”, reforça.
Segundo ela, entre as próximas ações, haverá um concurso com premiação de poesia ilustrada, com o objetivo de estimular a questão da educação ambiental. “Para ver se a gente vai conscientizando crianças e adolescentes… Apesar da véspera dos 70 anos, a gente sempre está aprendendo também, com outras pessoas de outras idades, e sempre querendo que a vida seja melhor”, finaliza.
Conheça algumas trajetórias e iniciativas apoiadas pelo Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras, do Fundo Baobá
Por Jamile Novaes*
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que a taxa de frequência escolar entre crianças negras de 6 a 10 anos no ensino fundamental é de 95,8% no Brasil. No entanto, esse número cai gradativamente ao longo da trajetória de escolarizacão, chegando a 18,3% entre jovens negros e negras de 18 a 24 anos que frequentam o ensino superior, contra 36,1% de pessoas brancas com a mesma idade. Quando o assunto é analfabetismo, a taxa de pessoas negras nessa condição atinge 8,9%, quase o triplo dos 3,6% de pessoas brancas não alfabetizadas. Os números são do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em 2019, antes da pandemia.
Historicamente, os espaços de formação acadêmica podem se apresentar como ambientes hostis para pessoas negras, sobretudo para mulheres negras. Ser uma estudante negra no Brasil implica passar por situações de rejeição, humilhação, abusos, solidão e uma série de apagamentos que ocorrem desde os primeiros anos escolares. O currículo escolar da educação básica costuma apresentar a mulher negra de forma subalternizada, ignorando suas contribuições para a história, ciência, política e cultura do país. Mesmo com a implantação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira, ainda existem muitos desafios e um longo caminho a percorrer para a sua aplicação efetiva.
Este cenário afeta de forma significativa a trajetória escolar, prejudica o desempenho nos estudos e diminui significativamente as possibilidades de ascensão acadêmica dessas meninas e mulheres. Não por acaso, o Censo da Educação Superior de 2016 apontou que o total de professoras doutoras negras em cursos de pós-graduação no país não chegava a 3% do número total de docentes.
No entanto, mesmo ainda representando uma minoria dentro do espaço acadêmico, é possível notar o potencial transformador e os efeitos multiplicadores das trajetórias de educação de mulheres negras. Para enfrentar a solidão de ser negra e acadêmica, ampliar as suas vozes e legitimar a sua produção de conhecimento, muitas têm construído estratégias de aquilombamento dentro das universidades e protagonizado ações que alcançam a comunidade negra como um todo. São redes de apoio criadas para permanecer, resistir, ressignificar saberes e criar novas narrativas e possibilidades de transformação através da educação. Algumas dessas iniciativas e projetos foram contemplados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Vamos conhecer um pouco sobre essas mulheres, suas trajetórias de educação, perspectivas e como elas têm atuado para promover uma educação antirracista e acessível para seus pares.
Sulamita Rosa, da Rede MulherAções
Sulamita Rosa da Silva é graduada em Pedagogia, mestra em Educação pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e recentemente ingressou no Doutorado em Educação da Universidade de São Paulo (USP). Ela lembra que durante seu ensino médio, cursado em uma escola particular, era a única estudante retinta da sua turma. No curso de pedagogia, Sulamita conheceu a Lei 10.639/03 e decidiu dedicar-se às pesquisas que interseccionam raça e educação. “Nossa! Aquilo ali me brilhou os olhos de uma forma incrível. Queria pesquisar sobre a minha negritude, sobre as minhas raízes, sobre a educação voltada para essa temática. Eu fiz meu TCC sobre valorização da cultura negra no currículo de uma escola de Cruzeiro do Sul e a partir desse TCC eu pude perceber que os professores ainda não tinham essa compreensão”, explica.
Durante o mestrado em educação, Sulamita percebeu que, apesar de não estar mais sozinha enquanto estudante negra, ainda era notória a falta de professoras pretas no espaço da universidade. Intrigada com essa realidade, produziu sua pesquisa de dissertação de mestrado sobre as trajetórias de professoras negras dos cursos de formação de professores da UFAC. Ao realizar um mapeamento, identificou apenas 11 professoras negras.
Junto às mulheres pretas que encontrou durante a sua pesquisa, Sulamita criou a Rede MulherAcões, coletivo que tem por objetivo ampliar a ocupação de mulheres negras, indígenas, e afro-indígenas nos cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado. “O desenvolvimento da sociedade brasileira foi através do conhecimento produzido por mulheres negras. Só que esse conhecimento foi invisibilizado em decorrência do racismo estrutural. E a gente visa justamente o empoderamento através da coletividade e através da nossa presença nesses espaços que outrora nos foram negados”, explica Sulamita.
Com o apoio do Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras, a Rede MulherAções desenvolveu uma série de atividades formativas que possibilitou o ingresso de Sulamita e mais cinco mulheres negras e indígenas em cursos de mestrado e doutorado. Rani Shanenawa, Matsiani Shanenawa, Edilene Pakakuru (indígenas de etnia Shanenawa) e Beatriz Domingos da Silva foram aprovadas em cursos de mestrado. Já Sulamita Rosa e Cláudia Marques de Oliveira, fundadoras do MulherAções, ingressaram no Doutorado em Educação da USP.
Sibele Gabriela dos Santos
Sibele Gabriela dos Santos é Assistente Social, mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas e recém aprovada no Mestrado em Educação pela USP. Durante a graduação em Serviço Social, Sibele identificou que, apesar do curso ser composto majoritariamente por mulheres, havia poucas estudantes negras como ela e nenhuma professora. Embora a população negra do Brasil represente uma boa parcela das pessoas atendidas por políticas públicas de assistência social, Sibele conta que não eram ofertadas disciplinas que tratassem especificamente de questões étnico-raciais.
Para preencher as lacunas em sua formação, contribuir com a sua comunidade e garantir a permanência no mestrado, Sibele se inscreveu no Programa. O projeto inicial previa ações com estudantes de escolas públicas e privadas de Igarapava (SP) para dialogar e sensibilizar sobre os desafios da implantação e implementação da Lei 10.639/03. Devido às normas de segurança sanitária estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em função da pandemia de Covid-19, toda a mobilização acabou acontecendo por meio das redes sociais, rádios comunitárias e plataformas de vídeo.
Sibele aponta que um dos maiores desafios para a aplicação da lei de ensino da história e cultura afro-brasileira, está na falta de representatividade de pessoas negras nos espaços de construção pedagógica e de tomadas de decisão política. “Infelizmente a maioria dos professores, coordenadores e diretores são pessoas brancas. O perfil dos funcionários que ocupam as instâncias de decisão não reflete a diversidade social”, explica.
Para enfrentar este desafio, Sibele acredita que as políticas de educação devem ser pensadas em conjunto com outras políticas sociais, como saúde e assistência social. De forma que, busque uma abordagem interseccional que dialogue com intelectuais, movimentos sociais e territórios. “A educação não é neutra e todes que estão inserides nas instituições formais e informais devem ter o comprometimento ético e político da desconstrução do mito da democracia racial”. Para ela esse movimento só ocorrerá através do diálogo com a comunidade e com o território. “Se estamos falando de uma escola antirracista, estamos falando de uma escola democrática que acolhe, respeita, que luta por justiça social e que valoriza a construção de seus projetos e planos de forma coletiva”, completa.
Apesar das limitações impostas pela pandemia, Sibele reconhece a importância do Programa Marielle Franco para a sua formação pessoal, profissional e política. “Entrei no Programa com o conhecimento raso sobre racismo estrutural, feminismo negro, empoderamento e representatividade. Hoje sou uma mulher negra empoderada, protagonista e com um vasto conhecimento sobre desigualdade social”, conclui.
Lorena Amorim Borges
Lorena Amorim Borges é bacharela em Direito e pós-graduanda em Direito Penal. Em sua atuação, pauta o enfrentamento às desigualdades de raça, classe e gênero. Ingressou no ensino superior aos 30 anos e aponta a falta de tempo para os estudos e de recursos financeiros como os principais desafios em sua trajetória acadêmica. “Embora a gente tenha vivido um momento em que a graduação foi mais acessível para os nossos, ainda não é tangível para muitos ocupar a academia porque a gente precisa sobreviver e por vezes é muito difícil estar no espaço acadêmico enquanto tá com risco de corte de luz, por exemplo”, conta Lorena.
Ainda durante a graduação, Lorena recorreu ao Programa Marielle Franco com o objetivo de potencializar a sua formação acadêmica, aprimorar os seus conhecimentos e obter aprovação junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Seu projeto previa um intercâmbio para aprofundar os seus estudos em língua estrangeira, o que não pôde ser realizado por conta da pandemia de Covid-19. Ainda assim, Lorena redirecionou o recurso obtido para a realização de um curso de inglês. Com o suporte e recursos destinados pelo Programa, Lorena concluiu a graduação, iniciou sua pós-graduação e agora se prepara para o próximo exame da OAB. Reconhecendo as dificuldades enfrentadas nesse processo, ela criou um grupo para compartilhar materiais de estudo, técnicas e conhecimentos sobre o edital com outros estudantes negros que também estão se preparando para o exame.
Lorena acredita no potencial de mulheres negras para transformar o sistema judicial, tornando-o menos desigual para a comunidade negra no geral. “A gente tem muito a contribuir a começar pela mudança do olhar, hoje a maior parte da população carcerária é preta e não teve acesso a uma defesa eficiente. Descriminalizar o ser preto é urgente e só com a ocupação do judiciário por profissionais com práticas antidiscriminatórias poderemos transformar essa realidade e transformar é coisa de mulher preta”, afirma. Até receber a aprovação da OAB e poder exercer a advocacia, ela conta que seguirá atuando em rede “para tornar a justiça acessível à população periférica e aos povos tradicionais de matriz africana”.
Giovana Xavier
Giovana Xavier da Conceição Nascimento é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui formação em história pela UFRJ, mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Unicamp e New York University. Ela conta que é oriunda de uma família de base matriarcal, formada por mulheres da classe trabalhadora que, desde cedo, impulsionaram o seu processo de escolarização. “Ao longo de toda a minha formação escolar eu fui amparada por essas mulheres do ponto de vista emocional, financeiro, protetivo e de todas as ordens. A ideia da família negra como um espaço de educação e como prática da liberdade pra mim é muito forte”, afirma.
Assim como a maior parte dos estudantes negros que frequentam a universidade, Giovana precisou desenvolver estratégias para se manter naquele espaço e obter êxito acadêmico. Ela conta que um fator muito importante durante esse processo foi a sua participação em grupo de pesquisa coordenado por Flávio Gomes, um professor negro que atuava a serviço da positivação, transformação e desenvolvimento da comunidade negra. “Ter me formado como uma historiadora acompanhada por esse grande acadêmico, para mim foi fundamental porque trouxe junto uma possibilidade de reafirmar o nosso compromisso com a comunidade negra também do lado de fora da universidade”, explica.
De início, o projeto apresentado por Giovana ao Programa Marielle Franco previa a escrita e lançamento do livro “Ciência de Mulheres Negras”. No entanto, com a possibilidade de adaptação, algumas mudanças estratégicas foram realizadas e o livro se transformou em diversos artigos publicados em periódicos científicos avaliados pelo Qualis Capes como “A” (indicador de qualidade mais elevado do sistema). “Publicar artigos em revistas ‘A’ é uma condição para estar atuando na pós-graduação. Então, estrategicamente, para mulheres negras professoras universitárias, tem sido mais importante publicar artigos em periódicos científicos, do que livros”, ela explica.
Giovana acredita nos feminismos negros e indígenas como um importante ponto de partida para repensar as práticas de produção do conhecimento, valorização dos saberes ancestrais e legitimação de corpos e identidades subalternizadas em espaços acadêmicos. “Quando a gente chega na universidade, a gente também se alimenta do poder de autorizar as nossas próprias histórias e ferramentas de construção de um Brasil de fato justo, baseado em valores como a paz, que é central no pensamento feminista negro e indígena”, conclui.
Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte lutam pela seguridade dos direitos das crianças e adolescentes e foram algumas das lideranças apoiadas pelo Fundo Baobá
Por Giovane Alcântara*
A pandemia acentuou algumas desigualdades e colocou em cheque anos de trabalho voltados para as crianças e os adolescentes. Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro, indicou que o despreparo do Brasil para o enfrentamento da covid-19 agravou as desigualdades sociais. O estudo foi desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Segundo os indicadores, os maiores atingidos são as populações socialmente mais vulneráveis, sobretudo nas áreas da saúde, da educação, emprego, renda, moradia e proteção social.
Criado há 31 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge como forma de aprimoramento das políticas voltadas para esse público. O Estatuto garante acessos e direitos, como por exemplo: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2020), no ano de 2019 o Brasil possuía 4,6% das crianças e adolescentes na condição do trabalho e exploração infantil. Isso se dá por uma série de fatores, como por exemplo, a evasão escolar, a falta de renda e de empregos formais. Nesse último caso, vale ressaltar que o Brasil tem cerca de 14 milhões de pessoas desempregadas. O número vem do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA – 2021), e representa um percentual de 13,7% da população economicamente ativa no país. Este contexto de desigualdades acirradas pela pandemia limitam ainda mais a viabilidade do ECA.
Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte são lideranças negras que atuam na luta pela seguridade de direitos das crianças e dos adolescentes, e foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
A advogada e ativista dos direitos das crianças e adolescentes, Mayara Souza, acredita que há duas maneiras do ECA ser implementado e viabilizado. Para ela, o primeiro passo é a racialização do Estatuto. A advogada aponta que anteriormente ao ECA, existia o Código de Menores. Posteriormentea Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no artigo 227, que todas as crianças são sujeitos de direitos. “Parece que todas as crianças partem de um mesmo lugar de oportunidade e igualdade. Obviamente que [no ECA] há uma tentativa muito tímida de reconhecer que algumas crianças estão em situação de vulnerabilidade, mas não alcança todas as crianças de maneira igual”, reflete.
De acordo com Mayara, o segundo passo importante para efetivação do ECA seria a inserção das crianças e dos adolescentes no processo de viabilização e discussão de políticas públicas. “A gente sai de uma doutrina indiferente, onde as crianças eram tratadas de maneira indiferente dos adultos, avança um pouco em relação a isso e chega na doutrina da proteção integral, que a gente está desde 1988. Precisamos avançar para uma nova fase de proteção de crianças e adolescentes, e este avanço tem que incluir as questões das crianças com deficiência, das crianças indígenas, das crianças negras”, aponta. Para ela, precisamos avançar para uma fase de proteção, que só será possível quando as vozes destas crianças forem trazidas para essa discussão. “Então, outro ponto que eu acho importante é ouvir as crianças em primeira pessoa, não importa o tamanho dessa criança”, pontua.
A evasão escolar também foi uma das consequências da pandemia. No primeiro ano de crise sanitária, o número de evasão escolar no Brasil foi de 12%: cerca de 172 mil estudantes entre 6 e 17 anos abandonaram os estudos. Os dados são do relatório intitulado “Os custos educativos da crise sanitária na América Latina e no Caribe”, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), concluído em novembro de 2020. O fato das escolas terem sido paralisadas como parte das medidas de segurança para o enfrentamento da covid-19 mostrou ainda mais as desigualdades impostas.
A falta de aparelhos tecnológicos para aulas virtuais, a falta de acompanhamento e preparo para o ensino remoto, e o aumento dos casos de abusos e explorações sexuais, são fenômenos que se interligam com o aumento da evasão escolar durante a pandemia. “Os dados já mostram que dos abusos sexuais contra crianças, mais de 70% acontecem no ambiente doméstico. As principais portas de entrada de denúncia são a escola. Porque ali a criança estabelece um vínculo de confiança ou então o próprio profissional da educação consegue identificar a situação” reflete Ana Lidia Rodrigues, liderança que trabalha com enfrentamento à violência sexual. “E aí, a escola estava fechada, a saúde atolada e a perspectiva de segurança coletiva era o ‘fica em casa’, mas para essas crianças, a casa nem sempre é um espaço de segurança”, complementa.
Ana Lídia ainda reitera que o processo de não educação em sexualidade integral faz com que as vítimas não identifiquem as violências. “No caso do abuso doméstico, muitas vezes, ele acontece a partir de relações ditas afetivas. Do carinho, da brincadeira, da ludicidade e a criança, por falta de conhecimento, não consegue identificar que aquilo ali se trata de uma situação abusiva”, pontua. A liderança questiona o fato de não ter havido nenhuma campanha em massa voltada para crianças e adolescentes dizendo que elas poderiam procurar alguém e pedir ajuda. “Paralelo a isso, tem a dimensão da exploração sexual, onde um dos principais fatores da exploração sexual são as condições de miséria. E aí você teve um empobrecimento da população muito grande e a gente sabe que, em situações extremas de empobrecimento, quem mais paga a conta são as crianças e as mulheres, né?”, complementa.
A professora Márcia Monte considera que esse cenário todo afetou diretamente a educação das crianças mais pobres, majoritariamente negras. “A gente vive num país muito desigual. Enquanto algumas [crianças] tinham todos os equipamentos, outras sequer tinham condições de assistir às aulas e de pegar o material com os professores. Isso aí a gente vai sentir nos próximos anos, né? ”
Impulsionamento
Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte encontraram, no apoio do Fundo Baobá, suporte para seguir com suas trajetórias de atuação. As três lideranças estudam temas voltados para a infância, adolescência, sistema socioeducativo e educacional. Para elas, a relação entre o gênero, a classe e a raça, são fatores primordiais de discussão e ampliação do debate com a sociedade civil.
Apesar das trajetórias de luta, o autorreconhecimento enquanto lideranças só veio após o investimento do Fundo. Segundo Ana Lídia, o Programa foi muito importante para ela se reconhecer enquanto liderança social. “Sempre me reconheci como parte, compondo, mas consegui entender que o meu papel também é um papel de movimentar processos, de chamar e estimular pessoas. Isso foi muito importante”.
No mesmo sentido de Ana Lídia, Márcia Monte considera que o apoio do Fundo foi fundamental para ela conseguir enxergar os efeitos do racismo em si e na sua construção enquanto liderança. “O Fundo teve uma coisa muito legal que foram as formações, a gente ainda teve coaching. Foi fantástico! Você consegue identificar através da análise do racismo (que até então eu não tinha feito) o que ele faz com você. Então eu percebi o potencial que eu tinha”. Márcia conta que esse processo foi fundamental para sua carreira.
Apesar de desenvolver ações constantes e de estar inserida desde 2016 no movimento de mulheres e no movimento negro, Mayara também só conseguiu se ver enquanto liderança depois do Programa. “O Fundo Baobá impactou a minha vida para falar: ‘Você é uma liderança sim, acredita nisso! O que você faz é muito importante, inspira muitas pessoas e as pessoas se importam com isso’. Durante o processo eu tive muitas dúvidas, inclusive, hoje eu ainda tenho muitas dúvidas se eu sou uma liderança, mas acho que essa contribuição foi muito significativa”.
Dificuldades em desenvolver ações durante a pandemia
A pandemia modificou muitos os planos dessas três mulheres. A princípio, Ana Lídia modificou o projeto porque a pandemia mexeu com muito com sua subjetividade e saúde mental, já que ela lida diretamente com vítimas de violências. Diante da possibilidade da inserção de autocuidado no Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) do Programa Marielle Franco, ela modificou estruturalmente o seu projeto. Durante esse processo, ela também identificou, através de uma consulta de diagnóstico, ser portadora do Transtorno de Espectro Autista (TEA). Isso proporcionou a inserção da abordagem sobre crianças e adolescentes com deficiências e situações de violação de direitos. A pesquisa que abordaria práticas educacionais para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e que seria desenvolvida durante esse processo, teve que ser modificada para uma escrevivência. “Eu percebi que eu não sou uma vítima, eu não sou sobrevivente, eu sou supravivente [termo alcunhado ao pesquisador Luiz Rufino]. Eu passei por um processo, eu saí melhorada dele. Eu tenho uma história pra contar, tenho criticas a fazer, e é desse lugar que esse corpo ocupa o mundo e quer falar”.
Depois da alteração central nos seus objetivos, Ana Lídia vem conseguindo cumprir suas metas, mas reitera que ainda há processos acontecendo. “Após a alteração do plano individual, as metas foram cumpridas, ficaram mais realistas, mais enxutas e eu consegui cumprir. Os processos estão rolando, eu continuo estudando. Meu texto está em processo de editoração. Depois vai pro processo gráfico, vou procurar uma editora pra ver se consigo publicar. O resto é desdobramento da ação”, comenta sobre o livro de escrevivências que está em processo final de produção.
Para Márcia Monte, que desenvolveu trabalhos ligados às práticas educacionais para o enfrentamento do racismo em instituições de educação básica no estado do Ceará, a pandemia teve um impacto inicial: a impossibilidade de realização de suas oficinas em parceria com a Secretaria de Educação do estado.
Outros impactos estiveram relacionados ao cuidado e ao investimento em especialização. Márcia fez inglês, MBA (Master in Business Administration, pós graduação na área de gestão de administração), tentou mestrado e escreveu uma série de artigos sobre a temática. “Isso tem impacto social muito relevante. Tive algumas metas superadas, que é essa história da publicação, da escrita, do meu fortalecimento pessoal, do inglês” comenta a professora. A liderança ainda está escrevendo um livro infantil: “Eu quero ver como é que as crianças enfrentam esse racismo e como eu posso fazer isso de maneira lúdica. Eu tô escrevendo, no meu tempo, sem pressão, mas isso foi uma superação para além e foi uma inspiração do Fundo Baobá”, relata.
Já Mayara afirma que,no primeiro ano, mudou muito as metas do seu projeto, pois havia a expectativa de fazer o intercâmbio; só no último trimestre que desistiu e decidiu traçar novas metas. “As que foram sendo ajustadas, conseguimos atingir, mas eu fiquei mais feliz com as metas de comunicação. Eu tinha preocupação de alcance, de rede, mas deu tudo certo”, comenta.
Mayara ainda avaliou que o apoio e o investimento do Fundo Baobá tem relação com a realização de sonhos e do fazer acontecer. “Eu acho que os fundos, os investimentos, possibilitam a concretização de sonhos, de realização, de alcançar. Além de possibilitar ocupar espaços, desejados e inimagináveis, possibilita a não desistência e, principalmente, a criação de redes”, afirma.
Apoiadas pelo Fundo Baobá, Monalyza Alves e Clara Marinho lutam para ocupar espaços antes negados às mulheres negras
Por Danielle Souza*
Assim como em outros setores da sociedade, as mulheres são sub-representadas na gestão pública. Apesar de serem 52,2% da população brasileira (IBGE) e 52,6% do eleitorado do país, segundo pesquisa realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2020, as mulheres ocuparam apenas 11,5% das vagas no Senado; 15% na Câmara de Deputados Federais; e 15,5% nas Assembleias Legislativas Estaduais. Se analisado por uma perspectiva interseccional, as mulheres negras têm ainda mais dificuldades em alcançar posições de liderança e poder: embora representem 28% da população do Brasil; elas são apenas 2,36% do Congresso Nacional, ocupando 14 das 594 vagas somadas entre Câmara e Senado.
Na contramão a esses dados, lideranças negras como a historiadora e chefe de gabinete da Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher – SPM da Prefeitura do Rio de Janeiro, Monalyza Alves (RJ), e a administradora e servidora pública atuante na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, Clara Marinho (DF), se destacam na luta pela paridade de gênero e pela representatividade negra na gestão pública. Ambas buscam quebrar barreiras e ocupar espaços historicamente negados às mulheres negras.
Clara Marinho e Monalyza Alves são algumas das lideranças negras contempladas pela 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Liderança e luta por direitos
Desde que ingressou na carreira pública, a servidora Clara Marinho atuou no desenvolvimento de políticas sociais, tendo acesso a uma formação sobre as questões raciais no espaço burocrático. Também trabalhou na implementação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que buscava fazer articulação entre a União, estados e municípios e depois passou a atuar como Analista de Planejamento e Orçamento. “Sempre tive interesse em políticas públicas e sociais, em particular, por terem um efeito direto na vida e no usufruto de direitos da população. Hoje, com a minha entrada no Programa Marielle Franco, entendo que tratar de orçamento público e tratar da questão racial são dimensões que se entrecruzaram e se fortaleceram de forma significativa na minha trajetória”, enfatiza.
Clara afirma ter se inscrito no edital em busca de aprimoramento e conhecimento, propondo um projeto individual para o fortalecimento da sua capacidade de intervenção como servidora pública. “À época eu estava me sentindo muito isolada. A SEPPIR tinha perdido seu status de ministério e eu estava na Secretaria de Orçamento, distante da pauta racial e de gênero. Mas, sentia a necessidade de estudar, aprender, e como a proposta do edital trazia atividades formativas, eu prontamente me interessei”, diz. Além disso, entrar em contato com outras mulheres negras, trocar experiências, ampliar conexões e romper a bolha do isolamento burocrático para desenvolver uma articulação antirracista e antissexista no poder público também foram possibilidades traziadas pelo Fundo através do Programa.
Para a historiadora Monalyza Alves, sua trajetória como liderança começou ainda na infância, dentro da sala de aula. Com o passar do tempo, suas habilidades foram desenvolvidas e ganharam destaque através da sua atuação no serviço público nas áreas de Direitos Humanos, Igualdade Racial e de Gênero. Destaque para sua participação na implementação de políticas públicas, a exemplo da Casa de Direitos, iniciativa que oferece serviços de acesso à justiça e cidadania para a população em situação de vulnerabilidade socioeconômica do Rio de Janeiro.
O projeto proposto por Monalyza e contemplado pelo edital do Fundo Baobá foi o “De uma para muitas – Transformação, comunicação e formação em Gestão de Políticas Públicas”, a fim de compartilhar informações básicas sobre gestão pública para iniciantes. “A ideia surgiu da prática profissional, onde lidei com diversas pessoas que não tinham informações sobre a máquina pública, apesar de exercerem cargos nesta”, ressalta.
Atuação na pandemia
Dentre as dificuldades enfrentadas no percurso, as consequências trazidas pela pandemia foram as que demandaram maior esforço. Mãe de duas crianças pequenas, Clara teve que articular as atividades do Programa, o trabalho e a rotina no lar. Ela afirma que ter uma rede de apoio fortalecida em casa foi essencial para que tudo fluísse bem. Alguns cursos planejados também não passaram para a modalidade virtual, necessitando de realocação ao longo do trajeto. Além disso, as atividades do AMMA Psique e Negritude, organização não governamental que atua no enfrentamento dos efeitos psicossociais do racismo e sexismo, também foram de suma importância para o seu desenvolvimento. “A despeito de todas as necessidades, toda a dor que muitas de nós tivemos e ainda temos com a pandemia, as atividades do AMMA propiciaram o encontro, o fortalecimento e a escuta necessária. Sou muito grata por esse tipo de espaço!”, afirma a liderança.
Por outro lado, para além do período pandêmico, Monalyza destaca como dificuldade a mudança no cenário político provocada pelas eleições de 2020. “A minha meta de público inicial era trabalhar com lideranças que atuavam no âmbito municipal, mas com as eleições, esse público migrou para outras frentes e assim eu tive que readaptar a dinâmica pensada para o desenvolvimento do projeto”, lembra a historiadora. Ela afirma ainda que hoje compreende a possibilidade de ampliar o raio de pessoas atingidas e impactadas por sua iniciativa.
Objetivos alcançados e planos para o futuro
Com o apoio do Fundo Baobá, Monalyza conseguiu alcançar objetivos ainda maiores. Além de concluir a faculdade de História, ela realizou aulas de inglês e adquiriu equipamentos essenciais para aprimorar a sua atuação, como o notebook. “Vi no Fundo Baobá e no Programa Marielle Franco a oportunidade de crescimento individual, alinhada ao compartilhamento de saberes adquiridos na gestão pública”, afirma.
Dentre os feitos durante o Programa, Monalyza participou de lives e workshops com instituições como: a Ordem dos Advogados do Brasil, o Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ e a Anistia Internacional seccional Natal (RN). Também desenvolveu pesquisa para a elaboração do material didático a ser disponibilizado no projeto; escreveu sobre a temática em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação; além de observar os desdobramentos das eleições municipais e as dinâmicas subsequentes. “Foi possível constatar a ascensão da perspectiva antirracista ao passo do arrefecimento dos setores da promoção da igualdade racial”, diz.
Os planos para o futuro são ainda mais ambiciosos. Monalyza está disposta a continuar atuando no fortalecimento da política pública através do compartilhamento de informações sobre gestão pública com foco na questão racial e de gênero, a partir de marcos históricos e legais. “Quero continuar sendo reconhecida pelo o que faço e alcançar novos espaços na tomada de decisão, sendo referência na área”, ressalta.
Para a historiadora, o sentimento que se sobressai ao longo do processo é a gratidão. “Eu quero agradecer a empatia do Fundo Baobá e parceiros, cuja sensibilidade me manteve viva e com propósito em 2020. Um pouco antes do lockdown pela pandemia de Covid-19, eu fui demitida, e o que me manteve viva, sã e com propósito, foi a garantia de sobrevivência dada pela bolsa do Fundo Baobá. Serei eternamente grata!”, finaliza Monalyza Alves.
Com Clara Marinho não foi diferente. Um dos seus objetivos principais, e que foi alcançado com sucesso através do Programa, foi consolidar sua posição de liderança no poder público federal, estabelecendo-se como uma ponte para o tratamento de demandas das questões raciais e de gênero que estão no contexto da burocracia. Além disso, o apoio do Fundo Baobá também permitiu que ela fizesse atualizações na sua área de atuação com cursos de gerenciamento de projetos, facilitações, desenvolvimento de habilidades interpessoais e de liderança. Além de, melhorar as suas capacidades de comunicação oral e escrita, tornando a linguagem das suas produções mais acessível ao grande público.
Outras metas alcançadas foram a criação de um canal de diálogo e articulação com outras lideranças, organizações e profissionais do setor público. “O Plano de Desenvolvimento Individual me permitiu amadurecer intelectualmente, ora por meio das atividades formativas oferecidas e contratadas, ora por meio do ambiente de reflexão coletivo criado”, afirma.
Dentre os feitos realizados estão: o curso de escrita criativa; gestão profissional das redes sociais; produção de 3 lives; participações em podcasts; publicação de 3 artigos na coluna “Negras que Movem” no Portal Geledés e de um artigo de opinião no Correio Braziliense; e a apresentação de painel sobre Orçamento e Mulheres Negras no Festival Latinidades. Além disso, também houve a participação em debates, a exemplo dos promovidos pela Comissão de Juristas no Combate ao Racismo Estrutural da Câmara de Deputados; e a realização do estudo dirigido para o TOEFL, teste de proficiência em inglês, que foi uma ferramenta facilitadora de acesso ao Fellowship das Nações Unidas para a Década Afrodescendente, ampliando conexões com uma rede internacional de ativistas. Recentemente, Clara também tem conseguido tocar projetos dentro do setor público com temáticas relacionadas à questão racial e de gênero, sendo alocada numa pesquisa relevante para a população negra que avalia a assistência estudantil no ensino superior e profissional.
Os planos para o futuro também voam alto. Clara recebeu convites para realizar apresentações orais junto ao Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO); aulas agendadas na Unicamp e na Universidade Federal de Alagoas (UFAL); além de textos no portal UOL. Clara também planeja reforçar a sua presença em cursos e seminários voltados para a articulação entre orçamento público e questões de gênero e raça.
Ao encerrar esse ciclo, Clara Marinho diz sentir-se bastante esperançosa e disposta a fazer muito mais pela sociedade brasileira, por entender que a questão racial é uma questão nacional e que a democracia brasileira depende da cidadania das pessoas negras. “De uma profissional desmotivada e sem saber o que fazer, consegui me afirmar como uma referência no debate sobre orçamento e políticas públicas orientadas para o combate às desigualdades raciais. E isso só foi possível porque houve uma avenida aberta por organizações como o Fundo Baobá e a SEPPIR, que permitiram que o talento pudesse florescer”, conclui a liderança.
Contempladas pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, as comunicadoras baianas Midiã e Danubia desenvolvem projetos transformadores
Por Jamile Novaes*
Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabeleceu o direito à comunicação como fundamental. Desde então, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) vem empenhando esforços para garantir que a comunicação seja efetivamente instituída enquanto um direito. Seja através da emissão ou do acesso às informações, ela é crucial para a elaboração, implementação e acompanhamento de políticas públicas e, mais que isso, para a garantia do acesso aos demais direitos humanos.
Porém, o que tem se notado ao longo da história do Brasil é uma regulação ineficiente da área. As concessões públicas aos veículos de comunicação permanecem, por décadas, nas mãos dos mesmos conglomerados – pertencentes a algumas poucas famílias ricas e brancas. Uma pesquisa realizada pelo Reuters Institute for the Study of Journalism e divulgada em março de 2021, mostrou que não existem pessoas negras no comando de nenhum grande veículo de comunicação no Brasil, apesar de quase 57% da população brasileira se autodeclarar negra (IBGE, 2019).
Indo de encontro a essa realidade de invisibilização da população negra na mídia brasileira, várias iniciativas ao longo da história lutaram para mudar o cenário, como a imprensa negra. Mais recentemente o avanço das tecnologias digitais e a popularização do acesso à internet, tem permitido que novos veículos e mídias sigam com a luta histórica deste segmento. Um mapeamento das mídias negras no Brasil foi realizado em 2020 pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (Fopir). Neste cenário, as mulheres negras se destacam: das 65 mídias mapeadas pelo Fopir, 31% eram compostas exclusivamente por mulheres negras. Quanto à sustentabilidade dessas mídias, o estudo revela que a maioria se mantém através de recursos próprios, publicidade, voluntariado e editais.
E foi justamente através de um edital que as baianas Danubia Santos e Midiã Noelle tiveram a oportunidade de investir em suas formações profissionais e alavancar projetos relacionados à comunicação. Ambas foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Danubia é estudante de graduação em Publicidade e Propaganda e, através do financiamento do Programa, pôde voltar à faculdade; participar de cursos e formações online; fazer aulas de inglês e realizar o evento “Julho das Pretas – Arte e Solidariedade”. Seu projeto previa viagens e atividades presenciais que não puderam ser realizadas por conta da pandemia de Covid-19, então parte dos recursos foi destinada para a distribuição de cestas básicas às mães em situação de vulnerabilidade em comunidades periféricas.
Ela contou sobre como o apoio técnico e financeiro do Programa Marielle Franco foi essencial para que conseguisse se capacitar, potencializar suas atuações e ampliar as vozes negras no campo da comunicação: “Dei várias entrevistas, fui um dos destaques na Revista Claudia, fiz muitas lives e até escrevi um livro [Danubia é co-autora do livro ‘Mães Negras – Maternidade Solo e Dororidade’]. É muito satisfatório ser parte disso e me tornar uma referência positiva para a minha favela, principalmente para outras mulheres pretas”, comemora Danubia.
O reconhecimento obtido por meio das suas ações resultou em um convite para coordenar as redes sociais da Central Única das Favelas (Cufa) e a implantação do núcleo Mulheres da Cufa – projeto que visa a reunião de mulheres que protagonizam temas, agendas e ações para a transformação social. Ela explica que “as Mulheres da Cufa vem com o intuito de potencializar ainda mais essas mulheres que muitas vezes estão invisibilizadas em suas áreas para mostrarem suas forças nacionalmente”. As formações do coletivo acontecem através de lives abertas ao público e formações internas entre as participantes.
Danubia entende a comunicação como uma importante ferramenta de engajamento comunitário no contexto das lutas protagonizadas por mulheres negras. “Quando conseguimos mostrar nossas potencialidades, surgem novas oportunidades e uma mulher preta nunca chega só em lugar nenhum. Toda uma comunidade chega junto conosco, pois nós estamos embaixo de tudo e não tem como chegarmos ao topo sozinhas”, afirma.
A jornalista Midiã Noelle também aposta na comunicação como um meio de ampliar as vozes de mulheres negras em suas diversidades e singularidades. Ela explica que é uma importante maneira não só de manifestar percepções, dores e vivências, mas também “as nossas narrativas e as formas possíveis de transformação e de melhoria dos nossos territórios, das nossas vidas, das nossas famílias, dos nossos projetos de vida, das nossas individualidades”.
Foi também pensando no caráter comunitário e numa perspectiva antirracista para a comunicação que Midiã, apoiada pelo Programa Marielle Franco, criou a Commbne, projeto que propõe discutir a comunicação aliada à inovação, raça e etnia. “A Commbne surge com um objetivo, que é promover esse diálogo, esse intercâmbio entre comunicadores e fomentar esse debate da comunicação enquanto direito humano fundamental na perspectiva de gênero e raça numa lógica diaspórica”, explica.
Desde 2020, a Commbne já atingiu cerca de 500 pessoas com formações em comunicação antirracista e comunicação estratégica pra organizações sociais e atuou em rede com canais como o Notícia Preta, Ong Crioula, Diáspora Black e Afro Resistance. A partir da Commbne e das redes estabelecidas durante o programa de formações, Midiã passou a integrar a Rede de Líderes da Fundação Lemann, Ong que impulsiona pessoas engajadas em resolver questões sociais em todo o território nacional.
Inicialmente, o projeto enviado por Midiã ao Fundo Baobá incluía uma experiência de intercâmbio fora do Brasil para aperfeiçoar as suas habilidades linguísticas e fazer conexões internacionais, o que não foi possível realizar por conta da pandemia de Covid-19. Mesmo com as limitações impostas, Midiã conseguiu ampliar os seus canais de diálogo e as possibilidades de realizar ações em formato virtual: “Eu consegui me abrir para o mundo, realizar formações com diversas organizações que eu fui dialogando e também ampliando meu diálogo com os comunicadores”, relata.
Apesar das ameaças à liberdade de expressão, apagamentos históricos e culturais e limitação do acesso de pessoas negras à comunicação, Midiã pontua que houve avanços no campo durante as últimas décadas, graças a mulheres negras como: “Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Valdecir Nascimento, Vilma Reis, Nazaré Lima e Fernanda Lopes”. Mulheres que abriram os caminhos para as comunicadoras negras da atualidade: “Comunicação é fazer o círculo rodar. Quando essas mulheres se movem, a gente se move junto. Quando elas utilizam de ferramentas e métodos de comunicação para disseminar a nossa luta coletiva enquanto população negra, isso também é comunicação”, defende.
Planos para o futuro
Após concluir o ciclo de ações propostas para o edital, as comunicadoras já traçam planos para o futuro com perspectiva de expandir suas atuações e continuar desenvolvendo projetos que pautem reflexões sobre a necessidade de uma comunicação popular, negra e antirracista. Danubia pretende continuar a sua trajetória com um trabalho voltado para crianças negras, com o objetivo de mostrar que “podemos e devemos transformar o mundo através do nosso poder de comunicar por nosso lugar”. Já Midiã, tem como foco criar um portal para ampliar as conexões internacionais e discutir comunicação a partir de uma perspectiva afrodiaspórica, chamando também para o diálogo comunicadoras(es) negras(os) não formais.
Diante de um cenário adverso, onde a democratização da comunicação ainda soa distante, iniciativas criadas por comunicadoras negras para socializar as suas demandas, percepções, projetos e estratégias coletivas de luta, têm se mostrado como um caminho possível. Através delas é possível pensar em reapropriação das narrativas sobre negritude, garantia do livre expressar e geração de impactos políticos que afetam diretamente as condições de vida e existência da população negra brasileira.
“O espaço da comunicação é um espaço de poder, conseguimos transformar vidas e criar consciência através da comunicação. Minha perspectiva é de que nós, pretos e pretas, possamos cada dia mais estarmos ocupando a comunicação”, conclui Danubia.
Mulheres negras enxergam na comunicação uma forma de enfrentar as desigualdades geradas pelo racismo
Por Andressa Franco*
O racismo está presente nos diversos veículos de comunicação tradicional, e implica não somente na baixa porcentagem de pessoas negras ocupando essas redações, mas também na forma como essas pessoas são representadas na mídia. Trata-se de um fenômeno que exige a presença de mais profissionais negros comprometidos com a luta antirracista atuando neste mercado. E, além disso, que atuem e fortaleçam as mídias negras, segmento que ao longo da história utiliza a comunicação como ferramenta de luta contra o racismo.
Foi com esse objetivo em comum, que Marina Ribeiro Lopes, Jaqueline Ferreira Fraga e Brunna Kalynne se inscreverem no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations
Os projetos destas comunicadoras tiveram como meta trazer para o foco o papel das mídias negras e a importância da prática de comuicação antirracista. A pandemia mudou os planos, mas estas lideranças encontraram no apoio do Fundo Baobá maneiras de se reinventar e alcançar seus objetivos.
“Comunica Preta”
Desde antes do nascimento oficial da Imprensa no Brasil (1808), negros e negras já utilizavam a comunicação como forma de articulação das lutas pela liberdade. A Revolta dos Búzios (1798) é uma data simbólica para as mídias negras, já que, mesmo em um período onde a imprensa era proibida pela Metrópole portuguesa, a comunicação foi a estratégia utilizada. Boletins manuscritos foram espalhados pela cidade de Salvador, permitindo que a mensagem fosse propagada, dos poucos que eram alfabetizados, para a maior parte da população.
Foi pensando nas mídias negras como um legado histórico, que Brunna Moraes, de 24 anos, decidiu se inscrever no Programa. O objetivo foi desenvolver suas habilidades como profissional da comunicação e a construção coletiva de um veículo de mídia antirracista no estado de Alagoas.
“Eu sentia necessidade de escrever no meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] sobre o quanto o curso de jornalismo não aborda a comunicação antirracista, e deveria, porque não é a partir de hoje que existem mídias negras. Desde os tempos da escravização no Brasil existem pessoas negras organizadas dentro da comunicação”, conta a jovem, que é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Brunna também faz parte da Associação de Negras e Negros da instituição, e integra o Instituto do Negro de Alagoas (INEG).
O período como bolsista do Baobá foi turbulento para Brunna, tanto por conta da pandemia, que resultou na reconfiguração do seu planejamento, como também pela descoberta de uma gravidez. Mesmo nesse processo, conseguiu fazer um curso de design, área em que tinha mais dificuldade, além de ter se dedicado ao estudo sobre comunicação negra.
Também foi a partir do financiamento que a estudante pôde comprar seu celular e seu computador, acessando assim oportunidades de trabalho. A jornalista colaborou durante um ano com o portal Notícia Preta, seu primeiro contato profissional com uma mídia negra. Isso a estimulou ainda mais na construção de um veículo nos mesmos moldes no seu próprio estado.
“Durante o projeto fiz diversos vínculos, consegui formar uma equipe que hoje trabalha comigo no Mocambo Online. Mas, todo mundo tem diversas demandas e é algo que não dá lucro instantâneo. Então, o desafio principal é esse, mas tá rolando”, comenta sobre o projeto de mídia negra que toca em Alagoas.
Inicialmente, a pretensão de Brunna era promover reuniões, encontros, palestras, viagens para colher histórias, que viriam a fazer parte da produção jornalística e realizar um evento de lançamento do jornal Mocambo Online. Mas, todos esses planos foram barrados por conta da pandemia.
“O principal desafio foi conseguir reunir o grupo que ia fazer parte do Mocambo Online. Eram pessoas que eu não conhecia e convidei através das redes sociais. Até hoje a gente nunca se reuniu presencialmente, tudo que a gente faz é online, mas é algo que a gente foi aprendendo a lidar com o tempo. Hoje eu sou a maior defensora de: se existe a possibilidade de ser remoto, por que tanto fetiche no presencial?”, brinca.
O cuidado que recebeu das responsáveis pela iniciativa também chamou sua atenção. “As meninas sempre deixavam claro que o financiamento não era apenas de resultados demonstrados em nota fiscal. Mas, que a gente pudesse, de repente, cuidar da nossa pele, da nossa saúde mental, o que achasse necessário para crescer profissional e pessoalmente nesse período. Foi um cuidado muito importante se tratando de mulheres negras”, lembra a estudante, que hoje tem como perspectiva conseguir manter o projeto de maneira sustentável.
“Aqui em Alagoas é muito difícil, é um estado extremamente oligárquico, as mídias são muito controladas e monopolizadas pela política local de coronelismo. Então, é furar uma situação de que as pessoas almoçam assistindo jornal policial, sabe? É um desafio, mas se ninguém fizer, não dá pra mudar”, completa.
“Comunicação Negra: Inspirar, Apoiar e Conscientizar”
Melhorar a comunicação para público em debates, formação, rodas de conversas e em construção de parcerias e captação de recursos era o principal objetivo da pernambucana Jaqueline Fraga, de 31 anos. Ela é jornalista da Folha de Pernambuco, escritora, e também é formada em administração.
Com MBA (Master in Business Administration, pós-graduação na área de gestão e administração) em Comunicação e Jornalismo Digital pela Universidade Cândido Mendes, Jaqueline destaca o apreço pelo estudo como uma de suas principais características. Foi com o recurso do Fundo Baobá que pôde alimentar essa característica, e também atuar em rede com mulheres negras de todo Brasil, o que considera um legado deixado pela iniciativa.
Desde a infância, sua identificação com a escrita se mostrou presente, o que a levou a publicar um livro finalista do Prêmio Jabuti na categoria biografia documental e reportagem: “Negra Sou: Ascensão da Mulher Negra no Mercado de Trabalho”. A jornalista era a única mulher entre os 10 finalistas do prêmio na categoria, e também a única com produção independente.
O trabalho conquistou menção honrosa na 36ª edição do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo. A série de reportagens, antes de se tornar um livro físico, foi agraciada com o prêmio Antonieta de Barros – Jovens Comunicadores Negros e Negras.
Um dos seus desejos é que o livro seja adotado por escolas do ensino básico, mas destaca que, muitas vezes, ser mulher, negra e nordestina é um obstáculo. “Eu valorizo demais e tenho orgulho de ver tantas escritoras negras ganhando o mercado. Mas, às vezes, é como se fosse só aquele pequeno nicho, as pessoas não estão tão dispostas a conhecer pessoas de outras regiões, comprar do novo”, explica.
A partir do financiamento, Jaqueline conseguiu realizar seu MBA; participou de cursos de marketing digital para auxiliar na divulgação de seus livros; adquiriu equipamentos e livros que atendessem às necessidades do seu trabalho. E, graças à rede com quem teve contato durante o Programa, conheceu outras mulheres com quem criou a Coletiva Negras que Movem, que tem uma coluna coletiva no portal Geledés.
A construção desta rede proporcionada pelo Programa fez diferença no trabalho de Jaqueline. A jornalista já fez entrevistas e escreveu matérias tendo como fontes mulheres que conheceu através do Baobá. “São projetos que querem levar pessoas negras, mulheres negras em especial, para locais que ainda são muito embranquecidos, e isso dialoga muito com o Programa” relata.
Mas, a pandemia também impactou as metas iniciais. Em maio de 2020, o pai da jornalista faleceu, e seus planos precisaram de uma pausa. Alguns ficaram inconclusos, como o curso de inglês avançado que queria fazer de forma presencial e não pôde terminar.
“Sigamos criando e ocupando espaços, porque a gente tem que ocupar os que nos foram negados e precisa criar os que sejam nossos”, é um dos lemas da comunicadora. Ela acompanha o conteúdo produzido pelas mídias negras, e acredita na importância de ocupar as redações tradicionais, para “tentar modificar o sistema por dentro”.
Quando passou pela editoria de cultura, levantou pautas com escritoras negras da região. Hoje na editoria de cotidiano tenta, ao máximo, trazer pessoas negras como fonte para debater os mais diversos assuntos. De economia à medicina.
“E não são só jornalistas negros que têm esse papel. Deve ser um objetivo da mídia fazer jornalismo pautado no antirracismo” defende. “Eu trabalho muito com histórias de exceções. As mulheres que eu entrevistei sempre são as únicas mulheres negras nos seus espaços. E a gente não quer mais que aconteça dessa forma”.
“Vozes Pretas – o poder da comunicação no combate ao racismo”
Já na vida de Marina Ribeiro Lopes, a comunicação se encaixa em outro lugar. O aprimoramento das habilidades como jornalista e comunicadora e a divulgação do trabalho de outras mulheres negras foi seu objetivo ao se inscrever para o edital com o projeto “Vozes Pretas – o poder da comunicação no combate ao racismo”.
Nascida em Santa Maria da Vitória, interior da Bahia, Marina vive há muitos anos em Aracaju, capital sergipana. Dentro do movimento negro organizado, ela fez parte do Grupo Abaô de Capoeira Angola. Também integra a Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria, e a diretoria do terreiro Ile Axé Opo Osogunlade.
Como profissão, ela nunca passou pela área do jornalismo. Atua como bombeira militar, e com auxílio do Programa, agora também está experimentando a carreira de escritora. “Foi bem doido fazer esse projeto dentro de uma pandemia, no meu caso, além da pandemia, uma gestação e um parto, eu tive que mudar algumas coisas”, conta.
A ideia inicial de Marina era trabalhar as habilidades com a comunicação, para iniciar um projeto dentro do Grupo Abaô com crianças e adolescentes negras e negros, a fim de ajudar no desenvolvimento desses jovens.
“O que atrapalhou mesmo minha comunicação foi ser uma criança negra dentro dessa sociedade. Eu sempre me omitia, não queria aparecer, histórias comuns às pessoas negras, às crianças principalmente”. Mas, por conta da pandemia, o Grupo Abaô perdeu a sede, e pouco depois a comunicadora descobriu que estava grávida.
O projeto então foi redirecionado. O recurso se voltou para um projeto que Marina já vinha desenvolvendo, o Mercado Negro Aracaju, uma plataforma onde pessoas negras cadastram seus serviços e produtos. “Às vezes a gente quer ir a um médico, a uma costureira, ou qualquer serviço, e queremos dar prioridade às pessoas negras, e não sabemos onde encontrar. É dessa necessidade que surge a plataforma”, relata.
Com ajuda do Programa, ela conseguiu uma parceria para auxiliar na produção de conteúdo para o site e para as redes sociais da plataforma, o que resultou em crescimento de acessos e de cadastros. A outra ação que Marina desenvolveu, surgiu por acaso, foi o livro QUARTA ÀS 9, que assina como autora, e nasceu da publicação de seus textos no Facebook.
“Eu tinha muita vergonha de mostrar o que eu escrevia, e como minha habilidade a ser desenvolvida era a comunicação e a gente estava na pandemia, eu acabei experimentando escrever e publicar”. Mesmo com medo de se expor, depois do convite de uma pequena editora independente de um casal de amigos da cidade, a IPADÊ – Estúdio Gráfico – Marina aceitou o desafio. Começaram uma campanha de financiamento coletivo e, junto com os recursos do Programa, o livro foi lançado em setembro deste ano.
“Não sei se tenho dimensão do quanto esse projeto impactou minha vida. Acho que minha maior dificuldade era trabalhar no âmbito individual, porque sempre falei enquanto parte de coletivos. Minha maior transformação foi a coragem de falar que eu não sou somente uma pessoa em um grupo”.
O foco de Marina hoje é a filha recém-nascida. Mas depois da experiência e da iniciativa de lançar um livro, ela pretende se esforçar para continuar na trajetória de escritora. Tudo isso, afirma, sem abrir mão de tentar colocar em prática seu objetivo inicial, trabalhar com a comunicação de jovens negros através do Grupo Abaô de Capoeira Angola.
Três iniciativas contempladas pelo Fundo Baobá têm em comum o objetivo de impulsionar mulheres negras a ocupar espaços culturais a fim de protagonizarem suas próprias histórias
Por Júlia de Miranda*
A filósofa norte-americana Angela Davis defende que a arte é uma forma peculiar de consciência social que tem o poder de despertar nas pessoas tocadas por ela um impulso para transformar criativamente as condições opressivas que as cercam. Aqui no Brasil, muito da nossa cultura é oriunda do continente africano: comida, música, a nossa própria língua (o ‘pretuguês’ como chama Lélia Gonzalez), danças e muitas tradições. Conectar arte e ancestralidade negra de maneira responsável possibilita a abertura de processos de cura, pessoais e coletivos.
Projetos voltados para a arte e cultura ancestral foram contemplados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Os projetos: “Negras e Tecnologia – Produção Musical Enegrecida”, da produtora musical, cantautora e multi-instrumentista Andressa Ferreira, de Porto Alegre (RS); “Meduza a Vez e a Voz Dela”, da pedagoga Renata da Silva, de São Paulo (SP); e “Enegrecendo o artvismo: multilinguagem na luta antirracista”, da produtora cultural de Campina Grande (PB), Carolina Brito; foram três iniciativas que têm em comum o objetivo de impulsionar mulheres negras a ocupar espaços culturais e protagonizar suas próprias histórias.
Contornando os desafios
Renata da Silva articulou atividades culturais de capoeira e graffiti, mas com a pandemia os encontros e oficinas aconteceram em sua maioria de forma virtual. Algumas poucas presenciais, com número menor de pessoas e os cuidados necessários de distanciamento social. Já o projeto de Andressa Ferreira surgiu da necessidade de ter mais autonomia nos trabalhos em que participa, e também pela urgência de tornar o ambiente da produção musical menos hostil para mulheres, principalmente as negras e indígenas, cis e trans. “Isso se deve ao fato de que a área do áudio e da tecnologia ainda é dominado por homens brancos cis”, pontua.
O ‘Enegrecendo o Artvismo’, projeto de Carolina Brito, nasceu diante da falta de diálogo sobre a questão racial em sua cidade, no interior da Paraíba. A iniciativa foi baseada num caminho que a produtora já vinha percorrendo há 4 anos desde o seu trabalho de conclusão de curso, o “Enegrecida”. Ele evoluiu e virou atividade formativa e palestra, passou a ser iniciativa social, loja e página de produção de conteúdo.
Com o apoio do Fundo Baobá, Carolina vivenciou algo inédito, a possibilidade de olhar para si com mais carinho e dedicação: começou uma pós-graduação em História e Cultura Afro-Brasileira e também a psicoterapia. “O desenvolvimento pessoal acabou sendo a principal parte do meu projeto, estamos sempre olhando para fora ao invés de olhar para dentro primeiro e esse foi um ensinamento muito grande que o projeto me deu”, conta a artivista que chegou a ter início de depressão durante o processo e obteve ajuda no Programa. “Fizemos uma série de atividades on-line com mulheres negras sobre saúde mental e turmas de trabalho sobre o pensamento de Angela Davis”, relembra Carolina.
Adequando o projeto para uma nova roupagem remota e virtual, Andressa conseguiu acessar os conhecimentos em relação a áudio e tecnologia, área onde existem ainda vários desafios por se tratar de um espaço que é majoritariamente branco, masculino e elitizado. Ela comenta que trabalhar com isso requer alto investimento em equipamentos tecnológicos que não são acessíveis para a maioria da população negra, indígena e periférica. “Consegui montar um home estúdio itinerante; ampliei redes; conheci outros produtores (as); fiz cursos de formação; aulas de inglês e dei início a um novo empreendimento voltado para produção musical e inclusão de mulheres negras e indígenas cis e trans na área do áudio e tecnologia: o MAAT, Mulheres Afro-indígenas Áudio e Tecnologia”, elenca Andressa.
Carolina também financiou cursos de edição de vídeo, investiu em livros, e comprou alguns equipamentos para colocar em prática o conhecimento no audiovisual. A execução do seu trabalho envolveu encontros virtuais para debates sobre raça e também o Slam das Pretas, que contou com a participação de mulheres do Nordeste e poetisas da Colômbia, Moçambique e Angola.
Expectativas e autoestima
Renata descreve a sua participação no Programa como “um momento mágico” na sua vida. Ela conseguiu ter tranquilidade financeira para se organizar, e estar próxima, mesmo que virtualmente, de outras lideranças. “No decorrer do projeto aproveitei o momento de isolamento social para estudar editais e escrever projetos, um deles veio ao encontro com o triste momento vivenciado em março de 2020. O ‘CapoELAndo na Luta por Direitos Fundamentais’, nos possibilitou auxiliar centenas de famílias com produtos de higiene, cestas básicas e conscientização na região de Sapopemba, no município de São Paulo”, explica Renata.
O principal objetivo do seu projeto foi alcançado enquanto liderança feminina negra e também no desenvolvimento de atividades culturais, realizadas de forma remota, ligadas ao graffiti e capoeira. Com o apoio do Fundo Baobá, Renata conseguiu remunerar mensalmente 15 pessoas, e indiretamente dezenas de artistas, agentes culturais, músicos, grupos de capoeira e outros coletivos.
Para Andressa o período também foi de “grande benção” e muito crescimento e colheita que a ajudou bastante a passar pela pandemia conseguindo visualizar novos horizontes e possibilidades. “Me sinto apta e autorizada a me apresentar e atuar cada vez mais como produtora musical, pois além de ter uma formação, tive várias oportunidades para colocar em prática os conhecimentos adquiridos ao longo da execução do projeto”, comenta a produtora. Ela conta que graças às aquisições dos equipamentos, realizou a produção musical de diversos trabalhos, além de mentorias para pessoas da comunidade LGBTQIAP+. “Compartilhei e sigo compartilhando saberes com mulheres negras, e também com algumas comunidades indígenas Mbya Guarani a convite da Tela Indígena, em parceria com a Comunicação Kuery”, comemora a produtora.
Carolina Brito, através da experiência oferecida pelo Fundo Baobá, também enxerga hoje todo o seu potencial enquanto líder. A única parte do seu projeto que não foi concluída foram as oficinas nas escolas (escrita criativa afrocentrada, identidade racial e vídeos-poemas). Como tudo estava fechado durante a pandemia e agora as aulas presenciais retornaram, essas atividades serão realizadas com os estudantes do infanto-juvenil. “Ser uma mulher negra que trabalha com audiovisual e que está no mercado com autonomia das suas produções, isso é revolucionário para a minha história. Tenho agora uma equipe formada para fortalecer essas atividades culturais comigo”, afirma.
Andressa pretende continuar atuando na área para adquirir mais experiência e, se for possível, realizar mais algumas formações técnicas para aprimorar os trabalhos que vem desenvolvendo e assim poder abrir mais portas. Além disso, quer organizar novas oficinas e vivências estimulando outras mulheres negras e indígenas a ocuparem a área de produção musical. “A oficina que eu ofereci para mulheres negras e indígenas cis e trans foi um sucesso e me fez confirmar a demanda e vontade de outras mulheres de acessarem esses conhecimentos”, afirma.
Para ela o Fundo Baobá realiza mudanças efetivas na nossa sociedade, conseguindo fomentar projetos que contribuem de fato na construção de uma sociedade mais equânime. “Tive a oportunidade de participar das formações políticas junto com as outras lideranças apoiadas, e esses encontros foram de extrema importância para que eu alcançasse meu objetivo. Hoje eu, assim como todas as mulheres contempladas por esse edital, podemos estar aqui planejando nosso futuro e potencializando não só a nossa trajetória como as das próximas gerações”, prevê a produtora musical.
Leandra Silva e Juliana Jardel apostam na dança como ferramenta de ascensão da potência negra e comentam sobre seus projetos apoiados pelo Fundo Baobá
Por Júlia de Miranda*
Pensar a dança como ferramenta de cura não é algo novo. Movimentar e ocupar o próprio corpo conscientemente, compreendendo que é da natureza humana dançar, faz parte do paradigma civilizatório que o continente africano reverbera ainda hoje: os africanos estão sempre dançando em seus rituais e cerimônias. A escritora estadunidense Alice Walker foi cirúrgica quando afirmou que “tempos difíceis exigem uma dança furiosa”, e que ela é crucial na manutenção do equilíbrio. Acordar o corpo adormecido e reaprender os passos no ritmo frenético dos novos tempos requer um olhar interior atento para perceber que a força de uma coreografia solo (o processo do autoconhecimento) tem poder, e que quando esses dançarinos fortalecidos se juntam (a potência do coletivo), as mudanças acontecem.
A dança ancestral foi contemplada na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Através dos projetos Movimentos Atlânticos, da bailarina, professora de dança e doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Goiás (UFG), Juliana Jardel; e VERVE- DÉJÀ VU AFROTURISTA 1º ATO- ANCESTRALIDADE HIGH TECH, proposta da também bailarina, professora e jornalista Leandra Silva, ambas mulheres de Axé.
Leandra relata que fazer parte do Programa foi uma das melhores coisas que poderia ter acontecido, e foi a primeira vez que ela vivenciou esse nível de investimento profissional. Ela acredita que a iniciativa do Baobá, em querer formar lideranças negras, vai na contramão do que o Brasil está acostumado. “Essa bolsa me deu um chão e essa é uma das coisas mais revolucionárias que eu vejo na proposta do Baobá, que é o investimento financeiro direto e real em mulheres negras; aí eu tive a dimensão do quanto eu posso chegar simplesmente tendo um investimento mínimo”, relata a coreógrafa.
A paulistana dança e atua como professora há 20 anos e reconhece ali um lugar de cura onde a partir de tecnologias ancestrais consegue ancorar processos criativos que possibilitam o crescimento de sua autoestima. Leandra já passou por algumas importantes escolas de dança, por isso sabe que essa arte não é tão acessível e os lugares de aprendizado podem ser torturantes para pessoas negras. Passar por esses lugares e manter autoestima, criatividade, brilho e não desistir, é um grande desafio. “O mundo branco da dança é bastante complicado para a autoconfiança e saúde mental; e foi justamente dessas experiências de alegria, cura e também de discriminação dentro dos espaços brancos de aprendizado que eu fui forjando a minha experiência como dançarina”.
O projeto foi pensado para que Leandra pudesse ter as devidas condições financeiras, e conseguisse pesquisar e se fortalecer como coreógrafa e líder da companhia Verve de Arte Negra. O ‘Déjà vú Afrofuturista Ancestralidade High-Tech’ é o primeiro espetáculo coreografado por ela e discorre sobre a guerra do Orí, o conflito para ser dona da própria cabeça. Ele se chama Déjà vú porque carrega a ideia de que nós não estamos inventando a roda, e que na cultura negra a gente passa pelo processo de recriação, cocriação e inovação devido ao tempo de civilização e história.
“No primeiro espetáculo, todas as pessoas [negras] que estavam no palco relataram alguma experiência de ouvirem que elas não poderiam dançar seja pelo corpo inadequado, a cor, o lugar, a idade e todas essas coisas que no Brasil são colocadas na hora de você ter preparo para se tornar um artista. Nenhum corpo é impedido do palco e da experiência com a dança negra contemporânea, e nem por isso ela deixa de ser criteriosa”, reitera Leandra.
A pandemia da Covid-19 surgiu no auge do lançamento do espetáculo, e com o projeto do Fundo Baobá aprovado o foco se voltou para buscar os recursos financeiros que possibilitassem a permanência da equipe virtualmente. Foram grandes os desafios e as mudanças na rota possibilitaram novas narrativas: por envolver muitas pessoas, ‘Déjà vú’ saiu de cena e surgiu a ideia de produzir o Festival FERVE – projeto idealizado por Edvan Mota, com a sua companhia. O festival aconteceu virtualmente em agosto de 2021, com apoio da Lei Aldir Blanc, e durou 6 dias, trazendo o tambor como centro em variadas temáticas, contando com uma gama de artistas de distintas gerações. Dentro do festival, Leandra criou a dança solo ‘Firmamento’ que é o trânsito entre o tradicional e o contemporâneo. Mesmo tendo somente a artista nos holofotes, a produção envolveu uma equipe técnica de 20 pessoas.
O Fundo Baobá possibilitou para a dançarina uma estrutura pessoal que permitiu a dedicação dela em outros projetos que somaram na melhoria da Cia de Dança. A realização do festival é fruto deste investimento.
“O desenvolvimento do projeto se deu com muitas transformações e altos e baixos. Tive assessoria de um coach do Baobá, oficinas, reflexões e muitas trocas com outras mulheres negras agraciadas pelo Fundo. Foi bastante inspirador estar com essas mulheres de tanta criatividade e coragem. Mulheres gigantes de distintas trajetórias”, recorda Leandra. A dançarina conquistou, além de formação e conhecimento, a aprovação em outros editais. O dinheiro captado não foi para o próprio benefício, todavia trouxe paz, alegria e trabalho com todos da sua comunidade de dança.
Sobre o que está por vir, Leandra costuma dizer que o hoje é um futuro que foi sonhado pelos seus ancestrais. Celebra com orgulho a conquista de ser a primeira mulher da família que ocupou a cadeira numa universidade (fez parte da primeira turma com cotas raciais na Universidade Federal da Bahia – UFBA). “Eu entendi que se eu esperasse do mundo o devido papel e o devido lugar, eu nunca estaria no palco da forma como a minha potência exige e merece. Eu coreografo porque escolhi trilhar um futuro onde eu tenha voz, poder, autonojmia e autoridade para escolher sobre em que corpo e em que pele está à luz”.
Dançando com as águas da diáspora africana
Ser um corpo negro no mundo, como sugere a cantora Luedji Luna, significa ter cor e corte. É carregar as dores da diáspora africana no Brasil que ainda não reconhece mulheres e homens negras e negros como valiosos protagonistas no desenvolvimento social, econômico, cultural e intelectual da nossa história.
O projeto Movimentos Atlânticos de Juliana Jardel, já existia e é a metodologia em dança que ela desenvolve há alguns anos. O nome é inspirado no documentário Orí, da cineasta e socióloga Raquel Gerber, que tem a intelectual Beatriz Nascimento como protagonista. Após perceber que as alunos negros chegavam à sala de aula rígidos e envergonhados do próprio corpo, mesmo os que já tinham consciência racial e trabalhavam a valorização da cultura negra. Quando iam para a prática desse corpo coletivo e individual essas pessoas eram muito travadas. Juliana decidiu trabalhar com esses corpos no movimento da dança, algo semelhante à fluidez de um rio na pulsação da vida.
A ancestralidade é fator marcante em alguns pontos específicos do método que relembram a infância da dançarina na fazenda observando o ato de pilar realizado pela avó, e também a sua proximidade com o candomblé. Quando saiu o edital do Fundo Baobá, Juliana vislumbrou a possibilidade de utilizar o recurso financeiro e ainda estabelecer conexões com outras pessoas negras, potencializando o seu projeto em Goiânia, cidade onde vive.
“O racismo se dá diretamente no corpo, e após observar os meus alunos eu percebi que aqueles corpos ainda tinham questões para serem resolvidas. Do entendimento que esse corpo é diariamente atacado, e ele funciona como um receptáculo que guarda informações, eu procurei no projeto cuidar dele evidenciando que ali é o primeiro alvo a ser violentado nessa estrutura racista. O corpo coletivo e individual é um lugar de morada, Beatriz Nascimento dizia que o negro precisa entender no corpo que ele não é mais um cativo”, reflete a dançarina.
Pensar a libertação do próprio corpo, entendendo-o como potência, fez com que Juliana encarasse uma dança turbulenta. Ela foi desligada do mestrado em dança durante o processo de desenvolvimento do projeto e pôde contar com a assessoria jurídica e rede de apoio do Baobá para reverter a situação. Concluiu o mestrado em Performance Culturais e engatou na sequência o doutorado.
O Fundo ainda possibilitou o investimento em livros, cursos e materiais para as aulas no grupo Corpo Suspeito, montado pela professora. Ela pôde ainda se resguardar no período pandêmico (sem dar aula de forma presencial) e projetar sua carreira. “Pude ampliar a minha rede de conexão com essas mulheres que conheci. Hoje eu me vejo mais conectada, rápida, atenta às mudanças do mercado e com segurança de me lançar. O projeto me ajudou profissionalmente como artista e acadêmica, estou perdendo o medo da escrita”, afirma Juliana.
Para o futuro, ela pretende seguir no doutorado e continuar ampliando as redes sem perder o contato com a que foi construída através do Baobá. Ser uma colaboradora nos próximos editais do Fundo faz parte de seus planos, além de seguir dançando. E nas palavras de Luedji: sendo a sua própria embarcação e sorte.