Recursos emergenciais do Edital Primeira Infância levaram bem-estar e autoestima ao povo negro na pandemia

O histórico de escravidão e de negação da relevância dos negros na construção da nossa sociedade, minam ao longo do tempo a sua identidade. Por isso, todas as iniciativas voltadas para o resgate da força e da autoestima da população negra são consideradas essenciais pelo Fundo Baobá de Equidade Racial. O edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, por exemplo, proposto em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e Imaginable Futures, caminhou nesse sentido.

A prática de observar-se, notar-se e conhecer-se deve ser estimulada entre todas as gerações, e foi o ponto de partida para o projeto da pedagoga Ayodele Floriano Silva, de 37 anos, um dos selecionados pelo Baobá. Ciente do descumprimento da Lei 10.639/03, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, ela quis levar esse conteúdo até a casa dos estudantes.

Projeto da Ayodele Floriano Silva – São Carlos (SP)

“Pela minha experiência com a formação de professoras de educação infantil percebo que muitas desconhecem livros com personagens negros, ou que tratam da história e da cultura africana e afro-brasileira. Então pensei: porque não levar esses livros para as crianças de 0 a 6 anos? Por que não circular esses livros, já que as escolas e bibliotecas fecharam por causa da pandemia? Por que não estimular as famílias a lerem para as crianças?”.

O edital permitiu que Ayodele, moradora de São Carlos, São Paulo, superasse cada “não”, reunisse colaboradores próximos e da cidade vizinha (Itirapina) para concretizar as propostas. A ONG Associação Meninos da Aracy, o programa Criança Feliz de Itirapina (do Governo Federal) e o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos aceitaram o desafio.

Ela escalou três funcionários do Criança Feliz para atuarem como visitares. Antes participaram de reuniões presenciais e virtuais para adquirir mais conhecimento sobre temáticas como: literatura infantil e literatura infantil negra; a importância da leitura na primeira infância; a importância de personagens negros em narrativas infantis; e livros sobre as histórias e as culturas africanas, africanas na diáspora e afro-brasileiras.

Projeto da Ayodele Floriano Silva – São Carlos (SP)

“Pedi que cada visitador indicasse quatro famílias com crianças na primeira infância e eles passaram a visita-las, levando uma sacola de livros, contando as histórias e executando atividades artísticas a partir das leituras. E eles foram convidados a fazer o mesmo em seus lares”, conta Ayodele, ressaltando que o trio foi orientado a usar máscara no período das visitas; manter-se distante das crianças e realizar as leituras em áreas externas, como varandas e quintais. A cada visita também os livros e sacolas eram higienizados com álcool 70%.

Enquanto as visitas periódicas aconteciam, Ayodele foi convidada a falar sobre o projeto para 120 estudantes do curso de Licenciatura em pedagogia da UFSCar, ressaltando a importância da literatura infantil negra para a educação e para as relações étnico-raciais.

O projeto cumpriu sua missão, impactou diretamente 20 adultos e 30 crianças; outras 50 famílias receberam por aplicativo de mensagem histórias contadas em áudio e vídeo. E os posts acabaram sendo compartilhados, expandindo a proposta do projeto para um número bem maior de pessoas.

Projeto da Ayodele Floriano Silva – São Carlos (SP)

“As crianças vibraram com a histórias e os adultos também. Alguns afirmaram que nunca haviam ‘recebido a visita’ de livros que se parecem com eles. A lição que eu recebo que é preciso continuar a luta, seguir levando o que há de bom e bonito, como a arte da literatura infantil, para crianças, jovens, adultos e idosos. A prática antirracista está em várias frentes”.

O Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19 priorizou iniciativas de profissionais que se autodeclararam negros (as), indígenas, migrantes ou refugiados (as).

Confira abaixo algumas ações realizadas pelo projeto

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“Eu me senti motivada a participar. Baseada no meu compromisso ancestral, profissional, ético, político e social, desenvolvi esse projeto para combater opressões que intensificam a vulnerabilidade dessas pessoas”, explica a psicóloga Caena Rodrigues Conceição, 30.

Determinada a fortalecer os vínculos familiares, promover a saúde e a autoestima da comunidade negra de Salvador, ela buscou a ajuda de educadores e lideranças locais; organizou um curso para tratar de paternidade e maternidade negras. Alcançou integrantes de 25 famílias da região do Centro Histórico. As aulas ocorreram em ambiente virtual, com temas variados: “Cuidado na família preta periférica”, “O que é ser mãe e pai preto periférica(o)?”, “Como é o autocuidado e a experiência de cuidado com os filhos e filhas”, “Alimentação, nutrição da família” e “Beleza Afro e Autoestima”.

Caena Rodrigues Conceição – Salvador (BA)

“Além do curso, todas as pessoas foram acompanhadas por um grupo do Whatsapp e individualmente, tirando dúvidas e recebendo os conteúdos de formação”, conta.

Outros três últimos encontros foram reservados para debate, envio de vales-fralda (R$ 50) e certificados de participação. Encorajando os adultos o projeto ainda zelou pelo desenvolvimento saudável das crianças na fase da primeira infância. Uma das participantes, Jaqueline Silva, 23 anos, mãe de uma menina de 1 ano e 4 meses, concluiu ações com a seguinte reflexão:

“Pra mim ser mãe periférica é ter uma preocupação redobrada, pois nós sabemos que temos um sistema que não nos ajuda que não está a nosso favor, principalmente quando se trata de pretos pobres periféricos. Pra mim ser mãe periférica é colocar a educação acima de tudo, para tentar mudar a realidade em que vivemos.”

** https://www.youtube.com/playlist?list=PLeB0cRuKE49vYHwDPEceSBxdOROhw-_gG

Na mesma Salvador, as iniciativas lançadas pela enfermeira Maria Carolina Ortiz Whitaker, 42, e selecionadas pelo Baobá, também se pautaram em questões afirmativas.

Em 2015 ela visitou comunidades quilombolas, durante projetos de extensão pela Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Desde então dedica-se a atividades que possam promover a igualdade racial no país.

Maria Carolina Ortiz Whitaker – Salvador (BA)

“O edital Baobá foi um sopro de esperança no meio da turbulência provocada pela Covid-19. Essa situação agravou a realidade de famílias que já experimentavam a violência e as desigualdades sociais no seu cotidiano. Assim, nosso projeto buscou em conjunto com mulheres quilombolas fortalecer a parentalidade e a promoção da cultura de paz”.

Maria Carolina e outros voluntários atuaram na comunidade quilombola de Praia Grande, uma das cinco existentes na Ilha da Maré, em Salvador, Bahia. Com a parceria de lideranças locais eles ouviram mães de crianças de até seis anos sobre os desafios da rotina durante a quarentena; entregaram materiais educativos para prevenção da Covid-19, ilustrado com representação étnico-racial; promoveram orgulho étnico, fortalecimento feminino e reflexões a respeito das relações parentais não-tóxicas

Maria Carolina Ortiz Whitaker – Salvador (BA)

O projeto abraçou cerda de 500 pessoas de até 80 famílias, após alguns desafios: antes de mais nada foi preciso adquirir um roteador e instalar um ponto de internet na comunidade, a fim de divulgar as atividades usando aplicativo de mensagens e redes sociais. Depois se fez necessário estimular o uso da internet como responsabilidade e obter o reconhecimento do trabalho comunitário como potência.

“A nossa convivência com os quilombolas renderam aprendizados de perseverança, luta e garra. Atividades devem ser continuadas apesar de muitas vezes querermos desistir, os resultados positivos chegam de onde menos se espera. Devemos acreditar sempre.”

Maria Carolina Ortiz Whitaker – Salvador (BA)

Confira o Instagram

No Dia Mundial da Justiça, organizações lembram da importância da filantropia

Erradicar a pobreza. Promover a dignidade no trabalho. Promover a igualdade de gêneros, o bem-estar social e a justiça. Essas premissas da Organização das Nações Unidas (ONU) deram origem ao Dia Mundial da Justiça Social, celebrado em 20 de fevereiro. Ideia e iniciativa excelentes. Porém, se pensarmos em termos de Brasil, a Justiça Social tem sido praticada? Que caminhos podem levar ao ideal da Justiça Social? 

Um dos caminhos apontados por Graciela Hopstein, coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social, é o das doações. A Rede de Filantropia para a Justiça Social é uma organização que  reúne fundos, fundações comunitárias e organizações doadoras (grantmakers) que apoiam  iniciativas nas áreas de justiça social, direitos humanos e cidadania. 

 “A filantropia pode ser mais eficiente se voltada para a doação de recursos para a sociedade civil. Essa é uma forma de fortalecer grupos que estão na ponta dos processos”, disse. Fortalecer grupos de ponta significa fazer com que o dinheiro de doações alcance ONGs e OSs que trabalham diretamente com populações afetadas pelas várias mazelas que acometem a sociedade.

Graciela Hopstein, coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social

O Fundo Baobá para Equidade Racial é uma das organizações membro da Rede de Filantropia para Justiça Social e dirige suas ações para a busca por justiça social para a população negra. Elas são balizadas por quatro eixos programáticos: 

 Viver com dignidade – é a busca constante por saúde e qualidade de vida. E o conceito de qualidade de vida não está relacionado apenas à questão do bem-estar físico. É necessário que se dê apoio a quem sofre as mais diferentes formas de violência, sendo algumas das principais a violência racial e a violência religiosa. A proteção às comunidades quilombolas em seus direitos também está embaixo desse chapéu.

 Educação – que incentiva ações de enfrentamento ao racismo institucional no ambiente escolar da educação infantil ao ensino superior; projetos de vida e ampliação de capacidades socioemocionais entre adolescentes e jovens; formação de altos quadros. 

Desenvolvimento econômico – é o apoio a projetos e iniciativas para formação para o mundo do trabalho; empreendedorismo e promoção da diversidade racial nas empresas;

Comunicação e memória – apoio a projetos e iniciativas de valorização e difusão de bens culturais materiais e simbólicos (produção artística – música, dança, canto, literatura, etc.; práticas culturais tradicionais e inovadoras); mídia negra.

Por intermédio de seus editais, o Fundo Baobá tem contribuído para a promoção de ações que alcançam gente que está na ponta dos processos. Os editais feitos em 2020 são os seguintes: 

1 – Edital Apoio Emergencial para Ações de Prevenção ao Coronavírus

2 – Qual a sua ideia para ajudar pessoas em situação de risco? – Fundo Baobá e Desabafo Social

3 – Doações Emergenciais – Edital Para Primeira Infância do Contexto da pandemia da Covid-19

4 – Já É: Educação para Equidade Racial

5 – Chamada Para Artigos – Filantropia para Promoção da Equidade Racial no Brasil no Contexto Pós-pandemia da Covid-19

6 – Programa de Recuperação Econômica de Pequenos Negócios de Empreendedores(as) Negros(as).

Editais lançados em 2020

Graciela Hopstein indica que, para se fazer Justiça Social, é necessário ter cabeça bem arejada e olhar voltado para diferentes iniciativas. Quem doa não pode partir de pré julgamentos ou ter, previamente, um  perfil ideal de quem deve receber uma doação. “A verba pode não ter sido direcionada a uma grande organização, mas esta tem que ter uma grande capacidade de catapultar o projeto que vai transformar a realidade dos que serão atingidos por ele”, afirma. 

“Há muito o que se fazer. Estamos dando passinhos curtos, mas tem passinhos sendo dados. Não há como pensar o desenvolvimento de uma sociedade e das práticas de  inclusão sem dialogar a educação, sendo ela de qualidade e inclusiva para todos. O Fundo Baobá promove a equidade racial, e quando falamos sobre equidade estamos falando de justiça, e não sobre como encontrar novos caminhos mágicos”, destacou Selma Moreira, diretora executiva do Fundo Baobá, em sua fala sobre Justiça Social durante evento virtual realizado pela Citi Foundation em outubro de 2020.

Completando seu pensamento, Selma Moreira coloca algo que tem que ser atitude comum entre  pessoas que almejam uma sociedade justa e equalitária. “O racismo estrutural afeta a nossa constituição e a sociedade. Mas, mesmo assim, tem muita gente que diz que não fez parte disso. Você pode não ter feito parte objetiva do problema, mas você pode fazer parte da solução, isso é mais importante. Esse diálogo que estamos fazendo trata de mover essa forma de pensar, para que a gente construa pontes fortes e conectadas, para pensar em caminhos para o Brasil que permitam o desenvolvimento de todas as pessoas de forma igual”, finaliza.

Graciela Hopstein aponta que a busca por Justiça Social necessita de um pouco da ousadia de todos. “Temos que ampliar nossos horizontes.  O capitalismo tem um olhar de captura do novo que nós, no campo social,  precisamos incorporar. Ter esse olhar de “captura”, no sentido de estarmos atentos à inovação, é fundamental se quisermos caminhar para uma sociedade mais justa. É necessário ousar para transformar e ter igualdade”, disse.

Ações de acolhimento para a transformação social

De casa, no bairro dos Aflitos, no Recife, Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo, de 50 anos, gastava 45 minutos no trânsito para percorrer os 13 km que a separavam de Candeeiro, comunidade no bairro do Ibura, na periferia da capital pernambucana. Ali, uma vez por semana, entre 4 de novembro de 2020 a 7 de janeiro de 2021, ela promoveu atividades de narração de histórias para meninos e meninas de 0 a 6 anos. Encontros proporcionados pelo Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, do Fundo Baobá.

Projeto de Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo – Aflitos (PE)

“Através das histórias motivamos as crianças a conhecerem novos contextos; estimulamos a criatividade, a reflexão, e principalmente o contato com os livros e a leitura. A ludicidade facilita o processo de ensino-aprendizagem”, acredita.

 Ana Elisa é formada em História, tem mestrado em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável e experiência de 12 anos atuando em ações voluntárias no terceiro setor. As doações emergenciais do Fundo Baobá a permitiram retomar um antigo projeto de narração de histórias a domicílio, que havia interrompido no começo da pandemia por falta de recursos:

“Me candidatei à iniciativa por acreditar que a primeira infância é o período mais importante da vida do ser humano. Assim é necessário um trabalho integral e integrado, onde a família tem papel fundamental”.  

Projeto de Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo – Aflitos (PE)

A meta inicial era envolver 20 crianças, mas o projeto chamou tanta atenção que outras chegaram, totalizando 37 crianças assistidas. Em cada casa, ao menos um adulto acompanhava os encontros e outros dez responsáveis participaram de oficinas sobre o papel da leitura no desenvolvimento infantil e técnicas de mediação:

“Eu entrava nas casas sem os sapatos; usava máscara e viseira o tempo todo. Levava álcool em gel para higienizar as minhas mãos e o material utilizado. Depois de contar as histórias deixava tarefas para que os pequenos fizessem associações com as histórias que ouviram. Deu certo. As crianças recontavam as histórias para outros parentes e me esperavam voltar, mas às vezes os pais esqueciam dos encontros e era viagem perdida. Esse foi o maior desafio, porém eu quero muito participar de outros editais e replicar a experiência”.

Projeto de Ana Elisa Barbosa de Andrade Melo – Aflitos (PE)

Relatos como o de Ana Elisa ecoaram entre os participantes do edital. Mais do que apoiar e confortar uma parcela carente da população neste momento de tantas incertezas, muitos buscavam mudanças profundas. 

No município pernambucano de Trucunhaém, onde a cultura negra-indígena ainda é muito viva nos rostos dos habitantes e em tradições como o Maracatu de baque solto, o Coco e o Catimbó; a antropóloga e parteira Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva, 45, promoveu a saúde e o bem-estar de 70 adultos, adolescentes e crianças na primeira infância, resgatando alguns aspectos culturais: consultas e parto com parteira; horta; produção e distribuição de fitoterápicos para pessoas com sintomas de gripe. 

Tudo ocorreu entre as primeiras semanas de novembro e janeiro. Foram dois meses de muito trabalho, com atenção especial para as grávidas, puérperas, fazendo assim diferença para os bebês. 

Projeto de Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva – Trucunhaém (PE)

”É importante cuidar da gestação para que, tanto o gestar, como o nascer sejam os mais naturais possíveis. Os momentos da gravidez, do parto e a primeira infância exigem muita atenção, pois podem fragilizar as mulheres emocional e fisicamente. Elas precisam estar bem informadas, a partir do saber tradicional”, acredita.

Helena Maria que há cinco anos trabalha como parteira na sua região, adaptou seus saberes à fase da pandemia e, graças ao edital, conseguiu comprar novos equipamentos para dar um suporte melhor às parturientes – ao menos três delas foram acompanhadas e deram à luz ao longo da execução do projeto. Helena chegou a realizar um dos partos em domicílio e apoiou um caso de depressão pós-parto. 

“Criei um grupo virtual (com encontros pelo Google Meet) para promover as rodas de gestantes que eu já promovia presencialmente antes da pandemia, na comunidade. As mulheres puderam dizer como se estavam se sentindo física e emocionalmente; compartilhar questões familiares e dúvidas sobre o parto, o pós-parto e a maternidade”.

Projeto de Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva – Trucunhaém (PE)

O atendimento se complementava com visitas individuais, nas casas das participantes, quando Helena Maria usava mais da sua experiência como parteira, apalpando e medindo a barriga da gestante, checando a posição e o tamanho do bebê; auscultando os batimentos cardíacos; observando os olhos, a pele e língua das mulheres, a fim de descobrir se estavam anêmicas ou com alguma infecção, por exemplo. As visitas permitiram que ela envolvesse os pais e outros membros da família no processo da gestação, bem como nas transformações da gestante e do feto. 

“No decorrer do projeto eu também realizei escutas individuais e remotas, com gestantes e puérperas, e o acompanhamento de um caso de violência doméstica.  Também precisei orientar pessoas que relaxaram com os cuidados de higiene durante a pandemia. Mas com certeza faria tudo novamente, porque sei da importância do trabalho! Desejo participar de outros editais, aprimorando essas ideias e executando novas, pois há muito o que fazer na minha região. Esse tipo de apoio tem fortalecido a nós mulheres, ampliado a nossa capacidade de atuação e autonomia”, comemora.

Projeto de Helena Maria Tenderini Ferreira da Silva – Trucunhaém (PE)

Saindo do Nordeste e descendo o mapa pelo litoral, chegamos até Armação dos Búzios, na Microrregião dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro. Um município com 23 praias e mais de 27.500 moradores (Censo IBGE, 2010) que, nos anos 1960, tornou-se conhecido internacionalmente com a visita da atriz francesa Brigitte Bardot. Desde então, Búzios ganhou força como destino turístico e o apelido de Saint-Tropez brasileira, embora tenha um lado carente que os visitantes não conhecem. 

Beatriz Raquel Silva Souza, 38, mora no bairro Cem Braças, que cresceu a partir de loteamentos ilegais. Ela pleiteou uma doação emergencial do Fundo Baobá, porque desejava oferecer suporte biopsicossocial a mulheres e adolescentes grávidas ou puérperas da sua comunidade e de um bairro vizinho (Capão).

“Sou doula desde 2015, consultora em amamentação, instrutora de yoga e massoterapeuta. Faço trabalhos sociais desde a adolescência e antes da pandemia já dava aulas gratuitas de yoga aqui no bairro. Com o apoio do Fundo Baobá foi possível levar os serviços de doula às pacientes dos Postos de Saúde da Família da região, e os profissionais de saúde olharam de outra forma para esse trabalho”, conta satisfeita. 

Projeto “Doula Comunidade” de Beatriz Raquel Silva Souza – Búzios (RJ)

A função doula ainda não é profissionalmente reconhecida, porém consta o Código Brasileiro de Ocupações e tem sido cada vez mais requisitada por gestantes que buscam acolhimento, apoio físico e emocional, da gravidez ao pós-parto.

A palavra doula tem origem grega e significa “servir”. Tudo o que Beatriz Raquel queria. Ela foi à luta: divulgou o projeto nos postos de saúde e também nas redes sociais, reunindo assim quatro gestantes (e seus companheiros) interessadas em participar de encontros virtuais com outras quatro doulas de diferentes cidades e estados. 

Divulgação do projeto “Doula Comunidade” de Beatriz Raquel Silva Souza – Búzios (RJ)

“Uma parte do recurso foi usada para ajudar as mães com o enxoval, então montei kits básicos com fraldas ecológicas, absorventes de seio ecológicos e outros itens definidos com elas. Também acompanhei alguns trabalhos de parto e forneci aulas de yoga na gestação (on-line).”

As participantes deram à luz cinco bebês (dois gêmeos) no decorrer do projeto, exigindo maior atenção de Beatriz, inclusive no pós-parto. Mas estava cumprida a missão de apresentar àquelas mães a opção do parto mais humanizado, com menos riscos de cesariana, menos chance de depressão pós-parto e menos bebês com problemas respiratórios. Sem contar a melhor adaptação ao ato de amamentar. Mães mais seguras e calmas, bebês mais saudáveis.

Projeto “Doula Comunidade” de Beatriz Raquel Silva Souza – Búzios (RJ)

“Eu faria tudo novamente, mas de forma diferente. Talvez com foco na educação perinatal, no coletivo, e posteriormente marcaria encontros individuais para tratar de temas pontuais. Assim poderia atingir um número maior de mulheres em diferentes períodos gestacionais e envolver mais doulas”, avalia, ainda mais experiente e amadurecendo ideias.

Edital Primeira Infância valorizou a experiência de profissionais que atuam em áreas estratégicas

A bacharel em psicologia Alessandra Danielly Cruz tem 25 anos, mas já adquiriu bastante experiência de vida atuando como técnica social de um Centro de Referência da Assistência Social, na região de Orobó, em Pernambuco; vendo de perto a precariedade dos serviços voltados para as famílias e para a primeira infância nos territórios quilombolas. No exercício da profissão uma coisa sempre a incomodou bastante: os casos de violência doméstica, que aliás aumentaram em muitos lares durante a pandemia e as medidas de confinamento, quando as mulheres passaram a ficar mais tempo em contato com potenciais agressores. 

Projeto da Alessandra Danielly Cruz das comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico (PE)

 “Essa violência ainda é vista de forma naturalizada, como algo que ‘a mulher procurou”, pois não existem ações governamentais efetivas voltadas para o tema dentro do território. Entendo a importância do ambiente saudável para a formação de uma criança saudável, então quis levar até as famílias cadastradas algum conhecimento acerca das violências existentes no seio familiar e suas consequências para o desenvolvimento infantil”.

O Fundo Baobá, através do Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, incentivou Alessandra na missão. O período para o cadastramento coincidiu com as últimas eleições municipais, o que atrapalhou um pouco o contato com as famílias que vivem nas comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico. Mesmo assim chegou até 25 mães e 25 crianças de 0 a 6 anos.

Projeto da Alessandra Danielly Cruz das comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico (PE)

 

“Houve a oferta de escutas psicológicas, com o intuito de trabalhar a saúde mental das mães. Elas apresentaram seus medos diante da pandemia, os desgastes físicos e mentais, a mudança na rotina, entre outras questões”, conta.

As escutas aconteceram por meio de videochamadas. E à distância também foram propostas atividades infantis, relacionadas ao desenvolvimento físico-motor, cognitivo e emocional. Alessandra gravou vários vídeos explicando o que é primeira infância, a importância na estimulação e as características de cada faixa etária. Na sequência encaminhava algumas práticas para os pais aplicarem com os filho, fortalecendo assim os vínculos familiares. Alessandra diz que receptividade foi muito boa:

“Eu recebi muitos agradecimentos pela iniciativa. As mães relataram anseios no que se refere à formação dos filhos, o medo de não estarem atuando de forma satisfatória para o desenvolvimento deles. O projeto me fez perceber o quanto a minha comunidade é carente de informação e de serviços, e enxergar como, enquanto profissional e pertencente ao local, eu posso fazer mais pelo meu povo”.

Alguns dos trabalhos de apoio à primeira infância, feito pela Alessandra Danielly Cruz das comunidades Quilombolas Águas do Velho Chico (PE)

Desde o início das medidas de isolamento social, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) tem percebido mês a mês redução de uma série de crimes contra as mulheres em diversos estados. Sinal, segundo o próprio FBSP, de que as vítimas estão encontrando mais dificuldades em denunciar as violências sofridas. 

No município de Centro Novo do Maranhão, a assistente social Bruna Rafaelly Cavalcanti da Cruz, 36, percebeu essa tendência no dia a dia profissional. 

“Passamos a receber mais relatos de violência doméstica, porém através de terceiros. Não por quem sofreu a agressão”, comenta Bruna, lembrando ainda que a cidade tem muitas famílias em situação de vulnerabilidade social, o que favorece o cenário da violência doméstica.

Projeto da Bruna Rafaelly Cavalcanti da Cruz – Centro Novo do Maranhão (MA)

Era preciso agir e a doação emergencial do Baobá chegou na hora certa para aproximadamente 150 pessoas de 20 famílias, que receberam visitas domiciliares cercadas de cuidados:

“Contei com uma psicóloga e uma nutricionista na equipe. Dividimos a execução do projeto em duas etapas na primeira realizamos um trabalho socioeducativo voltado para a prevenção e combate da COVID 19, e assuntos relacionados aos impactos da epidemia da doença. A segunda etapa constou da realização de oficinas de teatro de fantoches, de casa em casa, com as famílias e entrega de lanches. Nessa fase conseguimos nos mobilizar e adquirimos parcerias para a aquisição de cestas básicas. As atividades presencial nos permitiram entender o real contexto em que as famílias estão vivendo, favoreceu a escuta e os diálogos.”

Projeto da Bruna Rafaelly Cavalcanti da Cruz – Centro Novo do Maranhão (MA) 

Ao lançar o edital, em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Porticus América Latina e Imaginable Futures, o Fundo Baobá definiu que os candidatos deveriam ter formação e prática nas áreas de saúde, educação ou assistência social. Havia a certeza de que a experiência profissional seria um fator agregador de resultados. Assim como Alessandra e Bruna, o histórico da psicóloga Marcy Maria Ferreira Gomes, 53, confirma isso.

“Trabalho desde 2008 na favela da Mangueirinha, na área da Primeira Infância. Depois de tantos anos atendendo famílias com casos de violência intrafamiliar, não há outra conclusão senão a de que a referida violência está intimamente ligada à violência e ao racismo estrutural que essa população sofre desde o início de sua vida”, desabafa, certa de que a negligência do Estado e da sociedade leva à violação de direitos fundamentais, como educação, saúde, trabalho e lazer, e afeta a qualidade das relações intrafamiliares e suscitando violências intrafamiliares. 

 

“O desenvolvimento pleno de uma criança depende uma família fortalecida, a qual só é possível com uma comunidade igualmente forte. A incidência da pandemia aprofundou as vulnerabilidades sofridas por essas famílias, o que significa que a proteção à criança ficaria ainda mais fragilizada. Vi no edital um meio de somar esforços na proteção das crianças de 0 a 6 nos da Mangueirinha, através de oficinas virtuais para mães e filhos, promovendo o fortalecimento desse vínculo como forma de prevenção à violência intrafamiliar.”

Com o apoio da Associação Brasileira Terra dos Homens, ela iniciou as atividades promovendo uma roda de conversa presencial para a formação de cinco agentes de proteção comunitários, todos moradores da favela e capazes de apoiar as famílias no tema da primeira infância. 

“Essa atividade seguiu todos os protocolos de segurança, sendo desempenhada em lugar aberto, com uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento de dois metros.

Projeto da Marcy Maria Ferreira Gomes – Favela da Mangueirinha (RJ)

Na ocasião, os agentes entraram em contato com suas vivências em sua própria infância. Depois desenvolvemos juntos o planejamento e o cronograma de oficinas virtuais para as famílias”, esclarece.

“A oficineira responsável, que compõe o grupo de agentes comunitários, gravou os vídeos com o passo a passo das oficinas e enviou para o grupo de Whatsapp das famílias, para que desenvolvessem as propostas com os filhos. Importante salientar que a escolha de uma liderança local para a execução das oficinas foi proposital, a fim de aumentar identificação por parte dos participantes e o engajamento nas atividades. As famílias receberam material complementar e após as oficinas, postavam no grupo o resultado alcançado”.

Nesse ritmo ocorreram oficinas do brincar, de montagem de álbuns de família e de construção de brinquedos. Momentos de criatividade, concentração e diálogo.

Projeto da Marcy Maria Ferreira Gomes – Favela da Mangueirinha (RJ)

 “As oficinas tiveram como escopo a aproximação e o fortalecimento dos vínculos da família, mãe e filhos, como também o estímulo de suas competências individuais, a valorização da importância do brincar para as crianças e a redução do estresse ocasionado pelo momento da pandemia, prevenindo, portanto, violências intrafamiliares.”

O projeto promoveu ainda suporte terapêutico e rodas de conversas virtuais com temas relacionados à prevenção e cuidados com a Covid-19, gestação, cuidados na primeira infância e nas relações intrafamiliares, beneficiando ao todo 40 famílias e 70 crianças.

Projeto da Marcy Maria Ferreira Gomes – Favela da Mangueirinha (RJ)

Será que a dedicação da equipe valeu a pena? Marcy Maria responde com o relato de uma mãe atendida pelo projeto – responsável por seis filhos: 

“A montagem da árvore de Natal com eles foi um momento que aproximou muito. Deu um sentido em viver em família. Eu nunca montei uma árvore com eles. Sempre trabalho fazendo faxina nessa época e não dá tempo para organizar o Natal na minha casa. Mas devido à pandemia eu fiquei em casa esse ano e foi muito bom. As oficinas com os filhos diminuíram a agitação e as brigas entre os irmãos.”  (J.S, 32 anos).

https://www.youtube.com/watch?v=QCLbgBIFrqE&feature=youtu.be

Edital Primeira Infância valorizou a autoestima de mães periféricas

Por Eliane de Santos

Em dezembro de 2019 a assistente social Aline Brauna dos Santos, de 33 anos, deu à luz João Artur, um bebê forte e saudável. Era o seu primeiro filho, mas o período de gestação foi difícil:

“Senti as mudanças no corpo e na mente, além de uma grande necessidade de suporte biopsicossocial, para mim e minha família. Optei pela gravidez independente e com isso tive muitas críticas. Por alguns momentos ficava triste e cheia de dúvidas.”

Aline é assistente social, mora em Freixeiras, na cidade de Paracuru, Ceará. Quando descobriu o Edital Primeira Infância,  lembrou-se da própria experiência complexa com a maternidade e pensou nas aflições de muitas mães e futuras mamães, agravadas pelo contexto da Covid-19:

“A minha localidade tem muitas gestantes em situação de vulnerabilidade social. Minha amiga e vizinha tinha comentado de fazermos um projeto para distribuir roupas para recém-nascidos. Com o apoio do Fundo Baobá realizamos o nosso sonho”, comemora.

Projeto de Aline Brauna dos Santos – Paracuru (CE)

Esse é o espírito do edital, lançado em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e a Imaginable Futures: selecionar iniciativas de apoio às famílias que, em seu núcleo, tenham mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz e homens responsáveis e corresponsáveis pelo cuidado de crianças de 0 a 6 anos.

Aline formou uma equipe que de novembro de 2020 a janeiro deste ano confeccionou e distribuiu fraldas, roupinhas e sapatinhos de bebê para 100 gestantes cadastradas.  As mesmas puderam participar de ao menos oito lives com enfermeiro, psicólogo e nutricionista, entre outros profissionais da saúde.

Uma das lives realizadas pelo Projeto de Aline Brauna dos Santos – Paracuru (CE)

O projeto também olhou para 50 meninos e meninas, dando suporte às suas famílias e divulgando os direitos dos pequenos em outros dois encontros simultâneos.

“As crianças merecem os cuidados primordiais nesta fase da vida, com este projeto fomentamos esses direitos, também para as gestantes e parturientes.”

Projeto de Aline Brauna dos Santos – Paracuru (CE)

 

Apostando no trabalho social como ferramenta para a construção de uma sociedade mais igualitária, Thays Fernanda da Silva, 31, assistente social de formação, com especialização em Saúde Pública e Sanitarismo, buscou as doações do edital em prol de 25 gestantes do bairro do Prado, na comunidade Sítio do Berardo; em Recife, Pernambuco.

Projeto da Thays Fernanda da Silva – Sítio do Berardo, em Recife (PE)

“Por quase dez anos atuei como agente comunitária de saúde e sempre atendi esses grupos populacionais, realizando visitas domiciliares, ações de promoção à saúde, palestras etc. Uma experiência que me mostrou o quanto as mulheres e adolescentes grávidas e puérperas são fragilizadas por diversas questões – do fator socioeconômico ao sofrimento psicológico, com o abandono paterno ou familiar. Atualmente, trabalho como Conselheira Tutelar e também observo o grande número de grávidas que pedem ajuda. Agora,  ainda mais desprotegidas com a pandemia”, conta.

Projeto da Thays Fernanda da Silva – Sítio do Berardo, em Recife (PE)

Thays conseguiu parceiros e criou o projeto Acolher Gestante, que ao todo impactou 82 pessoas, direta e indiretamente, com atendimentos individualizados (presenciais e remotos), diálogos sobre gestação em tempos de pandemia; e a entrega dos enxovais:

“Amigos me ajudaram. Tivemos ainda uma psicóloga e a parceria de uma assistente social da Ong CCB-Social, que nos cedeu um espaço para a entrega dos enxovais e um laboratório de informática para as atividades on-line. Manter as mulheres conectadas foi o maior desafio, porque nem todas tinham aparelho celular, tablet ou computador próprio. Algumas sequer sabiam manuseá-los e lidar com a internet. Mas, sem dúvida,  repetiria a experiência. E desejo participar de outros editais aprimorando essas ideias ou executando novas.”

Projeto da Thays Fernanda da Silva – Sítio do Berardo, em Recife (PE)

Se é nos momentos de dificuldade que surgem as melhores oportunidades, Marlise Silva Lemos, 34, estava atenta e viu na iniciativa do Fundo Baobá a chance de fortalecer a trajetória de 11 mulheres negras moradoras de territórios de extrema pobreza: os bairros Restinga e Ponta Grossa, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Projeto da Marlise Silva Lemos – Porto Alegre (RS)

Marlise é psicopedagoga, possui habilitação clínica e institucional, além de experiência com trabalhos sociais. Ela trabalha para uma Organização da Sociedade Civil, coordenando um serviço de convivência para crianças em situação de violência. A partir do edital, ela sentiu-se estimulada a ampliar sua atuação, alcançando também as mães:

“Refleti sobre a trajetória de inúmeras mães solteiras, que ficam diante dos dilemas e anseios inerentes à maternidade; mulheres expostas a diferentes cenários de violência e violações. Realizamos com elas três encontros presenciais nos quais trabalhamos temáticas referentes à maternidade e ao desenvolvendo infantil na primeira infância, mais atividades práticas em um curso de culinária saudável”, enumera, lembrando que as práticas ocorreram em locais abertos. Nas aulas de culinária, especificamente no momento de uso do forno, houve um revezamento entre as participantes.

Projeto da Marlise Silva Lemos – Porto Alegre (RS)

E desses momentos, aliás, saíram fornadas generosas de esperança. O Natal estava se aproximando e duas mulheres produziram e comercializaram panetones, com os conhecimentos adquiridos nas aulas. Uma delas atualmente já comanda um quiosque de lanches.

A despedida do grupo ocorreu no dia 06 de janeiro e Marlise pôde medir o sucesso do projeto:

“As participantes demonstraram em palavras e empenho o quanto se sentiram beneficiadas e valorizadas. Eu certamente repetiria a experiência, considerando o impacto extremamente significativo para a sociedade, a ampliação das minhas capacidades enquanto profissional”, avalia.

Lindos panetones feitos através do Projeto da Marlise Silva Lemos – Porto Alegre (RS)

Edital Primeira Infância – Oportunidade e Mobilização para o Acolhimento

Lançado pelo Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e Imaginable Futures, o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19 estabeleceu regras para a realização de doações emergenciais com valores de R$ 2.500,00 a R$ 5.000,00.

 Foram consideradas propostas para seis tipos de ações de apoio às famílias com crianças de 0 a 6 anos e em situação de vulnerabilidade socioeconômica. As iniciativas deveriam ser implementadas entre os meses de novembro de 2020 e janeiro de 2021. 

Pessoas físicas atuantes nas áreas de saúde, educação e assistência social puderam optar entre ações: para o cuidado integral de crianças nessa faixa etária; de suporte biopsicossocial de mulheres ou adolescentes grávidas ou puérperas; ações voltadas para homens responsáveis ou corresponsáveis pelo cuidado integral das crianças na primeira infância; de apoio a adultos responsáveis por zelar e preparar os pequenos, para os desafios presentes e futuros. Outras duas possibilidades foram: iniciativas de prevenção à violência intrafamiliar e doméstica contra mulheres, idosos, crianças e adolescentes de famílias que tivessem em seu núcleo meninos e meninas de até seis anos, e ações de assistência à essas vítimas. 

E não é que surgiram candidatos para atuar em todas as frentes? Profissionais como Edaildes Aparecida Rocha, de 51 anos. Formada em Serviço Social e com especialização na área da saúde, ela previu os impactos negativos que os protocolos de isolamento poderiam causar à saúde e à segurança da população carente de Cotia, São Paulo, e de localidades vizinhas.

Projeto da Edaildes Aparecida Rocha – Cotia (SP)

Ela envolveu outros especialistas em saúde e psicologia, definiu o público-alvo, traçou um cronograma de atividades, distribuiu cartões de atendimento e impactou (direta e indiretamente) 101 pessoas, por meio de atendimentos psicológico, oftalmológico, ginecológico e dentário, em pelo menos três unidades de saúde da região. Fora a oferta de kits de higiene para os pacientes e a entrega de cestas básicas mensais. 

Parte do trabalho ocorreu de forma remota, com o envio de vídeo e folder informativos sobre saúde e a importância da família. O maior desafio, segundo ela, foi lidar com a equação: tempo versus resultados.

Projeto da Edaildes Aparecida Rocha – Cotia (SP)

“Pacientes e seus núcleos familiares trouxeram questões complexas, como ansiedade, luto, violência sexual e doméstica, a serem resolvidas num curto espaço de tempo. Se fez necessário acompanhamento semanal com eles, além de intervenções para elevar a autoestima, cuidados para com o corpo, a mente e o espírito”, conta.

Edaildes pensou em detalhes para fidelizar os atendimentos: lembretes eletrônicos, chamando para as consultas; lanchinhos para recepcionar os pacientes, doces e cartões como presentes de Natal para as famílias. 

Projeto da Edaildes Aparecida Rocha – Cotia (SP)

“Muitas vezes o paciente chegava triste, cheio de dores e angústias, mas após algumas sessões se mostrava sorridente e fortalecido. Ouvi relatos de pessoas que aguardavam pela consulta uma vez por semana e que passaram a dormir melhor. Isso não tem preço.” 

Também não é possível precificar o bem-estar que Aristanan Pinto Nery da Silva, 35, proporcionou a cerca de 300 famílias do Distrito de Pataiba, em Água Fria, Bahia.

“Sou servidor municipal na área da saúde, categoria endemias, e sei da real necessidade de ações para a primeira infância e para a proteção humana, na localidade onde atuo”, comenta.

Aristanan Pinto Nery da Silva – Distrito de Pataiba (BA)

A verba do edital permitiu que Aristanan e uma equipe de profissionais – envolvendo professores, mobilizadores culturais e sociais – ampliassem um projeto que já vinham realizando de forma remota: a Rede de Articulação e Mobilização no enfrentamento ao Covid-19, com recorte para a primeira infância.

“Mobilizamos as pessoas pelas redes sociais e a primeira ação executada, no período de novembro a dezembro, foi a distribuição de kits de higiene contendo máscaras, álcool em gel e folders informativos. Também enviamos cartilhas virtuais com temáticas voltadas para a saúde e a educação de crianças de 0 a 6 anos durante a pandemia”. 

Projeto de Aristanan Pinto Nery da Silva – Distrito de Pataiba (BA)

As redes sociais também foram o caminho para compartilhar oficinas de contos virtuais e promover uma significativa ação de enfrentamento à Covid-19: o seminário virtual “Proteção da Primeira Infância em Tempos de Pandemia”. 

“Contamos com a presença de Emerson Almeida, ex-coordenador do Programa Primeira Infância em Água Fria, e de Adailton de Cerqueira, presidente do CMDCA em Biritinga. Transmitimos ao vivo pelo Facebook, oscilando entre 10 e 15 participantes. Mas com os acompanhamentos, calculamos o alcance de 50 pessoas. O momento foi de orientação e troca de experiências relacionadas à contaminação pelo novo coronavírus e violações sofridas pelas crianças no isolamento.”

Imagens do seminário virtual “Proteção da Primeira Infância em Tempos de Pandemia”

Os participantes do Edital Primeira Infância deveriam executar as propostas preferencialmente no ambiente virtual, reduzindo as chances de disseminação do novo coronavirus nas comunidades envolvidas. Um desafio que Lela Queiroz, 57, assumiu para nunca mais esquecer.

Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão interação cognitiva BMCª (Body Mind-Centering) na Escola de Dança da UFBA, ela desafiou a si mesma e moradores de duas comunidades quilombolas e de uma aldeia indígena Tupinambá, na Bahia, com duas tarefas remotas: realizar duas oficinas de brinquedos eco sustentáveis para crianças de 0 a 2 anos em três semanas, a tempo de serem entregues às crianças no Natal, e coletar cantorias originais (indígenas e africanas) que pudessem acompanhar o brincar da criança com esses objetos.

Projeto de Lela Queiroz de BMC e Bebê – Aldeia Tupinambá (BA)

Não se tratava de uma gincana, mas de um projeto que também contemplava a educação parental, desenvolvendo nos adultos a visão do protagonismo da criança no seu próprio desenvolvimento integral. Para ela ser feliz primeiro.

Para a missão, ela escalou três multiplicadores:

 “Eu e outra desenvolvedora do projeto, pesquisamos materiais de baixa tecnologia, de baixo custo e que não oferecessem riscos às crianças. Substituímos facas e estiletes por tesouras, por exemplo. Nós orientamos os multiplicadores através de um grupo no WhatsApp (o Baobá Tronco) e eles por sua vez replicaram as tarefas para as famílias cadastradas nas suas respectivas comunidades, também por meio de um grupo (o Baobazinho), no mesmo aplicativo de mensagem. As famílias então montavam as peças em suas casas”, explica Lela.

Equipe de colaboradores do Projeto BMC e Bebê – Aldeia Tupinambá (BA)

“Os recursos do Fundo Baobá serviram para compra de material e para subsidiar as ações. As comunidades então criaram uma linha de brinquedos de 0 a 2 anos, mas o objetivo final era fomentar a produção no futuro, replicando os modelos em maior escala, para crianças de até 4, vendendo esses brinquedos on-line, em feiras, distribuindo em escolas etc”.

Confeccionados papelão, garrafas pet e sementes, os brinquedos deveriam sons suaves que remetessem ao xequerê (instrumento musical de percussão africano) e ao pau-de-chuva (instrumento musical idiofônico indígena), para não abalar o sistema nervoso da criança.  Os bebês precisam do estímulo auditivo e a oficina levou esse entendimento para as famílias. 

Projeto de Lela Queiroz de BMC e Bebê – Aldeia Tupinambá (BA)

“O projeto extrapolou as comunidades, ganhou um canal no YouTube onde mais de 100 pessoas se inscreveram para acompanhar as oficinas de instrumentos. Nas comunidades calculamos ter impactado de 20 a 30 pessoas.”, diz Lela. 

“Foi lindo, mas foi difícil. Fizemos um mês de prospecção junto aos agentes em comunidades e após escuta e seleção de sete comunidades, somente três encontraram jeito de participar. Os desafios foram desenvolver todo o escopo da ação do projeto on-line, com a outra ponta sem acesso à internet por dificuldades ligadas a transmissão em áreas remotas, falta de equipamentos e de wifi, falta de condições tecnológicas associado à falta de compreensão ou entendimento. Mas as comunidades adoraram. Plantamos uma sementinha”.

Conheça o projeto BMC e Bebês

Apoiar, mobilizar e transformar: O que é possível realizar durante a pandemia

Por Eliane de Santos

Reunir esforços para encorajar uma parcela vulnerável da população quando ela mais precisa: em tempo de pandemia e de recomendações oficiais para o isolamento social. Neste momento novo e difícil para todos, o Fundo Baobá para Equidade Racial -em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e a Imaginable Futures- lançou um desafio: o Edital para Primeira Infância no Contexto da Covid-19. 

Os requerimentos foram recebidos entre os dias 6 e 26 de junho, mês em que, de acordo com a Universidade Johns Hopkins (EUA), o Brasil já somava o segundo maior número de mortes por Covid-19 (58 mil), atrás dos Estados Unidos (126 mil).

Ao todo foram selecionadas iniciativas de 54 profissionais com formação superior e experiência nas áreas de educação, saúde e assistência social. Brasileiros dos quatro cantos do país igualmente ameaçados pelo novo coronavírus, porém dispostos a (de maneira segura) fazer diferença nas vidas de crianças de até seis anos ou mesmo de famílias inteiras.

Na zona rural de Feira de Santana, na Bahia, por exemplo, Daiane Pereira, de 35 anos, encontrou no edital a possibilidade de oferecer suporte pedagógico e de fortalecer o vínculo entre crianças, pais ou responsáveis, moradores do Quilombo Candeal II.

Projeto da Daiane Pereira de Feira de Santana (BA)

“A escola da comunidade fechou por causa da pandemia e nenhum suporte foi providenciado pelo poder público. Não houve ensino remoto, acompanhamento pedagógico, nem entrega de atividades. Absolutamente nada foi feito entre os meses de março e setembro. Percebi que as famílias estavam perdidas”, conta Daiane.

Graduada em Letras, especialista em estudos literários e mestre em cultura, memória e desenvolvimento regional, ela apostou nas palavras e plantou o projeto Cultivando Sonhos, a fim de resgatar a dignidade de 15 famílias  nas quais estão 25 crianças com idades de 3 a 6 anos. 

Projeto da Daiane Pereira de Feira de Santana (BA)

“Nossos monitores passavam pelas casas para entregar e recolher as ‘sacolas do saber’, com os livros de literatura que também tratavam de representatividade negra. Cada família ficava com a sacola por uma semana, para que tivessem momentos de leitura com seus pequenos e de forma que toda bibliografia do projeto circulasse na comunidade. Além disso, tivemos os ‘padrinhos literários’, voluntários que acompanhavam as famílias virtualmente, auxiliando nos momentos de leitura.  A nossa orientadora pedagógica gravou histórias, elaborou os roteiros de leitura, sugeriu atividades e brincadeiras.”

Saiba mais sobre o projeto no FacebookInstagram.

https://www.youtube.com/channel/UC3bdYfczBawNo-j0jP3Hajw

Também na Bahia, no município de São Francisco do Conde, Layla Carvalho, 37, e Mighian Danae Ferreira, 40, encontraram no edital a saída para aprimorar o projeto social Facul das Crias, que ambas já desenvolviam dentro da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Seu propósito é dar mais visibilidade à infância, maternidade e paternidade negras nos espaços institucionais.

“Os recursos recebidos pelo Fundo Baobá nos permitiram aprofundar algumas ações e reflexões durante a pandemia. Nosso objetivo era acolher crianças, puérperas, mães e pais com ações voltadas para a formação de meninos e meninas, além de conversas sobre preocupações que envolviam a comunidade”, diz Layla. 

Projeto Facul das Crias em São Francisco do Conde (BA)

Uma dessas preocupações estava relacionada à garantia do alimento durante a pandemia, quando a falta de trabalho, a queda da renda familiar e o aumento do preço dos alimentos se agravaram.  Vale lembrar que a Bahia registrou o maior índice de desocupação (20,7%) entre os estados do país no terceiro trimestre de 2020, quando, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil tinha 14, 1 milhões de pessoas sem empregos formais. 

Foi nesse cenário que Layla, cientista política, e Mighian, pedagoga, envolveram 47 adultos e 26 crianças em atividades como a oferta de crédito de R$ 60 para a compra de frutas, verduras e legumes com um feirante local; a edição de um livro de receitas contemplando o uso desses ingredientes, e ainda a produção e compra de fraldas reutilizáveis e ecológicas. Medidas simples, porém transformadoras.

“Buscaremos mais recursos também para viabilizar nossas ações no período pós-pandêmico, a fim de garantir um espaço para a formação complementar das crianças de São Francisco do Conde”, planeja Layla.

Projeto Facul das Crias em São Francisco do Conde (BA)

A mais de 800 Km dali, em Olinda, na região metropolitana do Recife (PE), a parceria chegou através de dois encontros semanais com duração de uma hora cada; máscaras e álcool em gel disponíveis para os convidados.  Instantes de acolhimento emocional e aprendizado para 12 mães e 15 crianças do bairro Rio Doce, num espaço onde era possível exercitar a criatividade e fortalecer vínculos. 

“Dividimos os convidados em três grupos. Para as mães oferecemos oficina de confecção de brinquedos com feltro e recursos terapêuticos visando o aprendizado de um ofício, a troca de experiências e o empoderamento feminino. Também promovemos orientações sobre a primeira infância. Já para as crianças foram oferecidos o brincar e o interagir”, conta Jaqueline Leite Serafim, 47 anos, responsável pelo projeto.   

  “Sou pedagoga e estudiosa da Neuroeducação. Aprendi que estímulos na fase da primeira infância são importantes para a formação do adulto. Podemos aproveitar essa janela de oportunidade aberta pelo edital para impulsionar o desenvolvimento da criança e gerar impactos no destino dela”.

O maior desafio neste projeto foi vencer o distanciamento: “Duas pessoas contraíram a Covid. Para não deixá-las sem a assistência, nós preparamos e entregamos em suas casas um kit com o material necessário e orientações para a costura dos brinquedos. Fizemos contato por chamadas de vídeo no WhatsApp para mais instruções e acompanhamento das crianças. Não desistimos”, orgulha-se Jaqueline.

Projeto de Jaqueline Leite Serafim de Olinda (PE)

“Vamos continuar com o projeto, dando assistência às mães, orientando sobre como empreender e cuidar das suas crianças na fase da primeira infância. Queremos que as participantes das primeiras oficinas sejam mediadoras nas próximas, gerando renda e melhorando a autoestima.”   

Todas as ações que apresentamos aqui são inspiradoras e deixaram lições para as próprias idealizadoras. A Daiane, lá de Feira de Santana, se emociona ao falar dos resultados:

“Foi gratificante ouvir os relatos dos pais e das crianças. Depoimentos como o de Mirela, de 4 anos, me dizendo que a princesa do livro é como ela, isto é, negra com cabelo crespo; ou ainda ver a emoção de outra menina, chamada Julia, ao descobrir um livro cujo título leva o seu nome e com o qual passou a se identificar. Os pais dizem que o projeto deveria ter acontecido antes e que não poderia terminar”, comemora.

Projeto de Jaqueline Leite Serafim de Olinda (PE)

Siga o Fundo Baobá e surpreenda-se com as outras inciativas contempladas no Edital Primeira Infância. Descubra o tanto de amor e empatia que o ser humano é capaz de promover!

Quem legitima a liderança de uma mulher negra evangélica?

Conheça a trajetória de Vanessa Maria, liderança da Rede de Mulheres Negras Evangélicas

Por Brenda Gomes*

Vanessa Maria Barboza, 32, desde muito nova teve contato com a religiosidade praticada pela sua família. Foi dentro da igreja evangélica que aprendeu valores cristãos que a acompanham até hoje. Foi lá também que começou a sentir a necessidade de questionar as estruturas que ajudaram a formar as suas experiências, não somente com a espiritualidade, mas também como mulher negra.

“A igreja me ajudou a pensar sobre minha existência neste plano. A religiosidade sempre fez parte da minha vida. Mas, tem uma hora que você para e pensa: ‘será que está tudo certo, mesmo?’ Foi quando eu comecei a perceber que tinham coisas ótimas, dentro do contexto religioso, mas que a minha formação neste espaço, foi construída a partir da lógica da branquitude.”

Assim como Vanessa, a história de muitas mulheres negras brasileiras é marcada por vivências em igrejas evangélicas. Segundo pesquisa divulgada pelo Datafolha, no final de 2019, cerca de 31% dos brasileiros são evangélicos, dentre estes 58% são mulheres, entre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como pretas, totalizando 59% de mulheres negras. Levando em conta dados como esses e as vivências de mulheres negras dentro das igrejas, que em 2018, Vanessa fundou a Rede de Mulheres Negras Evangélicas – RMNE, um movimento que começou em Recife (PE), mas que se estendeu por todo o país. O grupo, formado por 110 participantes e 35 lideranças ativas, se propõe a fazer releituras das experiências espirituais a partir de uma perspectiva que leve em conta as perspectivas de raça e gênero, além de discutir políticas públicas e de bem viver para mulheres negras. 

Apesar de ocupar um espaço de liderança no grupo, o lugar de “líder” sempre foi questionado por Vanessa. Questionamentos que foram aprofundados durante a jornada de autoconhecimento proporcionada através do incentivo ao participar da 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

“Eu me perguntava sempre que tipo de liderança eu era, e quem legitimava a minha liderança. Porque o racismo está em todas as áreas; na vida da gente, nos meios sociais, nas discussões e também no meio evangélico”, conta Vanessa, que é também assistente social. Ela diz que o Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) foi muito importante para saber que o trabalho que desenvolve com o movimento progressista evangélico não está desfocado da luta antirracista, “e nem da luta coletiva das mulheres negras, essas percepções eu fui amadurecendo ao longo do Programa”, completa. 

O edital foi visto por Vanessa como uma possibilidade de dar alguns passos em sua trajetória profissional. Por isso, utilizou o recurso para subsidiar realização de cursos de aprimoramento e aquisição de equipamentos para auxiliar sua pesquisa acadêmica, que tinha como foco os grupos de mulheres evangélicas, em especial a RMNE. Para a assistente social foi também a possibilidade de pensar em sua trajetória individual.

“Eu sempre pensei em coletivo nos espaços que eu estava inserida, mas com o apoio do Baobá eu consegui pensar em mim enquanto sujeito que tem suas individualidades e histórias. Esse recurso foi uma virada de chave para Vanessa”, relata. 

Dentre as atividades que foram desenvolvidas para as mulheres apoiadas pelo Fundo Baobá, estava o encontro das lideranças. Momento que inicialmente foi utilizado para trocar experiências sobre os trabalhos desenvolvidos, mas que por conta do cenário pandêmico, se transformou em uma rede de apoio e acolhimento. 

“Quando eu me aprofundo e vou trocando experiências com outras mulheres, eu consigo ter uma visão mais amadurecida da minha trajetória. Percebo que, como talvez a única liderança que traga esse recorte religioso evangélico, dentro do grupo, eu preciso ser mais estratégica e generosa comigo e com minhas ancestrais. Ouvir outras companheiras me fez perceber que meu trajeto não deixou de ser marcado pelo racismo e machismo apenas porque sou de uma religião que é aceita pela sociedade, meu corpo ainda é de uma mulher e negra”.

 

Cidadania, fé e política

Entre os resultados apresentados por ela está o Relatório Cidadã de Fé, que teve como objetivo conhecer as noções de cidadania e acesso a direitos de mulheres evangélicas. “Eu já havia iniciado uma pequena pesquisa exploratória sobre cidadania, com algumas mulheres evangélicas. E com o apoio do Fundo Baobá eu consegui fazer o relatório final dessa análise, que ainda que pequena, demonstra um pouco desse universo”, conta. 

A pesquisa foi realizada através de entrevistas com mulheres dos estados de Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Alagoas e uma participante brasileira nos Estados Unidos. Todas com idades entre 18 e 63 anos. Apesar de demonstrar que a maior parte das entrevistadas possuem nível superior, 64% destas nunca fizeram uma formação específica sobre cidadania, 43% de todas respondentes consideram saber pouco sobre o assunto.

Em um cenário de eleições municipais (2020), a pesquisa ainda provoca reflexões em torno da influência que a organização religiosa tem sob o eleitorado, o chamado “voto de cajado”, que configura o uso do poder clerical para impor o voto da comunidade religiosa. “As representações evangélicas têm crescido nos espaços políticos, mas quem são essas pessoas? Elas de fato representam os evangélicos? Os representantes políticos evangélicos não representam esse grupo [negras evangélicas] nem nos seus corpos e nem do princípio do ponto de vista democrático. Se questionar sobre esses pontos também é pensar sobre cidadania”, explica Vanessa. 

Os primeiros relatos do movimento evangélico na política brasileira foram na década de 60, mas só tiveram uma presença mais efetiva no sistema político do país a partir da década de 80, quando as igrejas tiveram a inclusão de mais parlamentares cristãos. Nos últimos anos, a atuação da Bancada Evangélica, na Câmara dos Deputados, tem se mostrado com bastante força, o avanço na aprovação de pautas mais conservadoras que barram direitos conquistados pela comunidade LGBTQIA+ e das mulheres é um exemplo disso.

Como mestra em educação e culturas, Vanessa atribui que o poder desses grupos é estruturado em ações que, apesar de se demonstrarem como uma forma de incentivo à educação, apresentam uma “perspectiva colonizadora da mente”.

“Existem muitas pessoas que foram alfabetizadas a partir de projetos de igrejas cristãs, imagine o que essas pessoas aprenderam além da língua portuguesa? Algumas aprenderam uma interpretação fundamentalista da bíblia. Esse é um fenômeno social que vem acontecendo há anos, que muitas vezes encontram solos férteis em determinadas denominações que têm um projeto de poder político, que cooperam com a estrutura racista da sociedade.”

Sankofa e saúde mental

Quando resolveu submeter um projeto de mestrado na Universidade Federal Rural de Pernambuco, em 2017, Vanessa não imaginava que durante o processo de pesquisa ela passaria por um cenário de crise pandêmica. No final da especialização, os desgastes físicos e emocionais atravessaram a jornada acadêmica. Com esse contexto, os recursos do Fundo foram redirecionados também para cuidados com a saúde mental e próprio sustento. 

“Quando começou o lockdown eu tive uma crise de pânico, justamente pelas incertezas e instabilidade daquele momento. Eu estava desempregada, estava bem mal financeiramente. O recurso ajudou a cuidar da minha saúde mental e da minha subsistência naquele momento”, conta. 

Distanciamento social, perda de parentes e amigos, incertezas sobre o futuro e a rotina reconfigurada pela crise sanitária mundial afetou o estado emocional dos brasileiros. Segundo uma pesquisa divulgada pelo Fórum Econômico Mundial, em abril de 2021, os brasileiros ocupam a quinta posição entre os que mais sentiram uma piora na saúde mental durante o último ano, 53% das pessoas entrevistadas apontaram que a saúde mental piorou desde março de 2020.  

Para Vanessa a psicoterapia mostrou que, além dos efeitos do contexto de pandemia, os traumas adquiridos durante a vida, por conta do racismo, também influenciaram no adoecimento mental. “Na terapia eu pude entender mais como os impactos racistas, que eu sofri durante toda a minha vida, impactam a minha existência. Como o contexto, tantas vezes, fundamentalista e conservador, serviu para o apagamento da minha negritude”. 

Nessa trajetória de aceitação do seu lugar de liderança, a pernambucana também sentiu necessidade de refazer e de construir alguns caminhos para entender melhor a sua identidade. O PDI possibilitou que Vanessa realizasse um curso na área de gestão de projetos na cidade de São Paulo, onde reside a sua família paterna. Ela não tinha proximidade e essa mudança possibilitou-a se conectar com a sua ancestralidade.

“Com essa reconexão com eles, percebi o quando o racismo afeta nossas vidas em uma perspectiva intergeracional. Eu leio isso em artigos e textos, mas quando vejo que isso trouxe para mim traumas e danos emocionais que afetam na minha construção de ser menina e mulher negra, eu venho tentando reconstruir esse processo”, conta. 

Para as pessoas negras a recuperação dessa ancestralidade é o ponto de partida para a luta antirracista. Para as mulheres negras evangélicas, que sofrem a intersecção das opressões racial e de gênero, esse caminho de reconexão permite que o racismo e o machismo não sejam naturalizados dentro da sua espiritualidade.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

“Saúde mental é uma questão política”, defende a psicóloga e ativista Joice dos Santos

Joice Silva dos Santos, liderança apoiada pelo Programa Marielle Franco, fala sobre sua trajetória e seus processos durante a pandemia

Por Giovane Alcântara*

Nascida em Jacobina (BA), Joice dos Santos reside há oito anos no estado do Piauí. Migrou para o estado com o objetivo de cursar Psicologia e hoje é mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Conversamos com Joice Silva sobre seu caminho dentro do ativismo; pandemia e os impactos para a saúde mental da população negra. Joice é uma das liderança apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Na vida de Joice dos Santos, a pauta da psicologia chega muito tempo depois do ativismo. “Enquanto pessoa negra, enquanto mulher negra, não-heterossexual, a pauta do ativismo é uma pauta que se encontra aliada à pauta da sobrevivência”, comenta. “Eu escolhi fazer psicologia porque eu entendia, e entendo, que o racismo produz um modo de adoecimento muito característico em pessoas negras. Meu interesse era entender como isso acontece, para desenvolver técnicas de cuidado para pessoas negras em meio a um mundo racista que os adoece frequentemente.” completa. 

Além de ser psicóloga, Joice também é especialista em cabelos naturais e atua como cabeleireira afro. Ela nos contou como o processo pandêmico a atingiu e como o Baobá contribuiu positivamente para passar por esse processo.

 

  • Como o processo pandêmico te atingiu enquanto mulher negra e liderança? E como o Fundo Baobá contribuiu para o seu processo?

A pandemia me atingiu em termos financeiros, que é o impacto de modo inicial que qualquer pessoa sente, se não tiver renda. Então, por exemplo no meu mestrado, devido aos cortes do desgoverno, não tem bolsa para nenhum estudante de nenhuma categoria. Se naquele momento eu não tivesse o apoio do Baobá, o mínimo teria faltado porque eu não poderia trabalhar, o salão estaria fechado devido a pandemia. Foi muito importante ser uma das escolhidas para ser financiada porque garantiu que, minimamente, eu tivesse onde morar, o que comer, pra que eu me mantivesse no mestrado. Porque se eu tivesse que escolher entre sobreviver e mestrado, óbvio que eu iria escolher sobreviver. Fora isso, estrutura. Eu pude investir numa mesa de trabalho; numa cadeira confortável para produzir; investir em curso de inglês, que estava previsto no meu projeto; pude investir e adaptar coisas que parecem pequenas, mas que são importantes. E o mais importante: pude investir em acompanhamento psiquiátrico e psicológico.

  • Quais os efeitos da pandemia para pessoas negras, e o que fazer para que a saúde mental desse grupo seja preservada?

A pandemia não é o problema que causa o racismo, a gente precisa entender que ela é um catalisador que age sobre um problema que já existia. E, como esse problema já existia de forma crônica e grave, ele só piora. Não é na pandemia que surge o racismo, nós sempre estivemos em pandemia. A população negra sempre esteve em toque de recolher, sempre esteve em pânico, sempre esteve sem saber se vai sair pro trabalho e vai voltar ou não. A primeira parte é entender isso, a gente não resolve a pandemia, a gente cria práticas de emergências. 

Pensando nessa perspectiva não é nem solucionar, mas criar outra forma de existência. É a gente voltar pra questão que gera o cenário pandêmico atravessado completamente pelo racismo. Não somos nós, pessoas negras, que racializamos o mundo, são as pessoas brancas que racializam o mundo. As coisas sempre estiveram acontecendo, a diferença é que a pandemia catalisou e aumentou a divulgação. 

  • Existe algum caminho de fortalecimento para que esse momento seja menos denso e tenso para a população negra? E você pode se incluir nesse processo… O que você fez para que esse momento fosse um pouco menos tenso para você? Se é que ele foi um pouco menos tenso para você, pensando a pandemia como catalisador de emoções  e de outras problemáticas sociais que atingem o mundo.

Alguns momentos e algumas coisas são impossíveis de torná-las menos horríveis. A gente vive num momento social de muita positividade tóxica, as invenções das fórmulas perfeitas para felicidade, para você passar no concurso, para ficar magra, para ter um desempenho sexual incrível. E isso, lógico, acontece também no campo da saúde mental. Algumas coisas são horríveis e a gente não pode fazer nada sobre isso.  A gente faz o que então? Acolhe a demanda de sofrimento. A gente não consegue mais acolher as demandas de sofrimento, então quando alguém está sofrendo, nós nos resolvemos em soluções temporárias, que é pra tapar o sofrimento dela. Para ela parar de sofrer, porque não suportamos mais escutar aquele sofrimento. Nas últimas décadas temos perdido a habilidade de sustentar o sofrimento dos outros, ouvir… então a primeira pauta é que a gente consiga sustentar. 

Resolveria grande parte do meu estresse em meio ao meu surto psicológico (psicólogos também surtam porque são pessoas) se eu soubesse que meu aluguel seria pago. Que o auxílio emergencial fosse calculado com base minimamente no que seria necessário para uma pessoa comer, morar, beber água e viver num cenário pandêmico. Saúde mental é uma questão política, assim só é possível garantir saúde mental para as pessoas se elas tiverem o mínimo. E o mínimo não foi dado, esse mínimo não está sendo dado.

  • Na sua trajetória enquanto mulher negra e enquanto pessoa articulada politicamente, ativista da raça, do gênero e da sexualidade, quando você percebeu que era necessário você se cuidar? Se autopreservar?

Essa é a parte mais difícil, mulheres são criadas para ser cuidadoras, e mulheres negras são criadas para ser cuidadoras e servas dos outros. Nós somos fortes e aguentamos muitas coisas, dentro dessa lógica, nós acreditamos que precisamos aguentar. Então, praticamente no meu caso, e de outras mulheres negras, a gente não percebe e adoece. Estamos falando de um estado mental de sobrecarga. De que essas mulheres negras têm várias funções: são mães, são trabalhadoras, são esposas, são ativistas. E o ativismo demanda muito, porque a gente tá lutando por uma questão que nos afeta diretamente, e a outras pessoas como nós. Eu fiz um artigo na pós-graduação onde questiono a maneira como a militância se organiza né?! A gente tem que parar de ter uma militância messiânica. A gente precisa entender que a militância precisa ser uma coisa co-construída, com poder, destaque, democraticamente distribuído, ou sempre vão haver pessoas sobrecarregadas.

  • Nesse processo, a articulação com outras pessoas, instituições, organizações é muito importante. Durante esse período de financiamento do Baobá você conseguiu se articular com outras mulheres que estavam participando do Programa Marielle Franco, ou fora do programa?

Sim, uma das minhas propostas era fazer um mapeamento das lideranças do meu território e transmitir para elas o conhecimento que eu estava adquirindo. A primeira fase era o mapeamento e depois o compartilhamento dos conhecimentos. A ideia era que fosse presencial, mas como a pandemia chegou, isso foi feito de maneira online. Foram várias lives, grupos, várias rodas de conversa online em que lideranças de diversas áreas eram convidadas a participar e contribuir. Eu sempre digo isso, o ativismo me manteve saudável, apesar da sobrecarga. Porque esses encontros serviam como momento catártico. É muito difícil você ficar em casa se organizando sozinha, quando você vai pros encontros, aquele encontro ressignifica sua caminhada. Ele faz com que você entenda que você não está caminhando sozinha para aquele lugar, que existe motivo real para você continuar caminhando, e que existe outras pessoas caminhando com você, mesmo que em outros lugares. Essa é a principal potência dos encontros. 

  • Você conseguiu cumprir todos os seus objetivos estabelecidos no projeto?

Acho que acabei alterando os objetivos. Um dos meus objetivos era um intercâmbio. Eu queria ir pra África do Sul, fazer uma capacitação de inglês lá, mas foi alterado devido a pandemia. Então foi adequado para o curso de inglês. Em relação ao que era meu principal foco, o mestrado, está em processo de conclusão. Vamos ver se eu consigo concluir porque meu quadro psicológico se agravou bastante e eu não conseguia produzir. Graças ao Baobá eu pude pagar psiquiatra e psicólogo pra me acompanhar nesse processo. Agora que eu colhendo os frutos de conseguir voltar a produzir, porque a escrita não é uma coisa automática, você se implica naquilo ali. Para “me ajudar” – porque já não bastava os problemas que eu tinha como ativista – minha dissertação pauta diretamente o racismo na pandemia, isso gerou um estado muito pesado, eu não conseguia abrir meu documento word porque eu não aguentava mais tanto sofrimento. Isso dificultou meu processo de produção, então, atualmente eu estou recorrendo a ter mais tempo para concluir esse mestrado, no caso, apresentar a última fase e defender, se tudo der certo nesse semestre.

  • Qual a importância de iniciativas como esta do Programa de Aceleração? 

Sobre a importância é muito louco, né?! Nas primeiras reuniões das mulheres escolhidas existia uma grande dificuldade, teve umas lives explicativas e eu entendi. Mas no começo era difícil entender o que o projeto era pra nós. Então, todas as mulheres apresentaram dificuldade para entender que esse dinheiro não era pra fazer uma feira, fazer mil cursos para outras pessoas. Esse dinheiro era pro auto investimento único e exclusivo em si mesma, enquanto liderança. Esse foi meu primeiro choque. Eu não consegui compreender. É difícil para uma mulher negra entender que esse dinheiro é todo pra ela, pro investimento na nossa capacitação, isso foi muito marcante.

O dinheiro que é investido nas lideranças, não impacta unicamente na vida dessas mulheres. Como elas são lideranças, esse dinheiro vai reverberar nas ações que elas vão produzir dali pra frente para com outras mulheres negras, pra crianças negras, pra sociedade de maneira geral. Então, o pacto para equidade racial que o Baobá se propõe e a gente compreende, é uma estratégia. Eu preciso de pessoas negras ocupando cargos de liderança, para que nesses cargos, elas consigam fazer mudanças necessárias para que o mundo exploda e a gente crie outro mundo. Para mudar o mundo, para que o mundo tenha equidade racial e que a gente consiga viver de forma justa, digna, enquanto pessoas negras. Essa é a importância do Programa Marielle Franco.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

A ativista pernambucana Jéssica dos Santos aponta os desafios da construção de políticas públicas para as juventudes

Apoiada pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, do Fundo Baobá, Jéssica Vanessa dos Santos desenvolve projetos de fomento à formação política de jovens

Por Jamile Novaes*

Jéssica Vanessa dos Santos é natural da cidade de Buíque, em Pernambuco. Aos 26 anos, atua em prol da construção de políticas para a juventude na região metropolitana de Recife. É ativista pelos direitos humanos e tem trajetória como mobilizadora e educadora popular. Durante quatro anos fez parte do Conselho Municipal de Políticas Públicas de Juventude do Recife (CMPPJ). Tem participado e ajudado a construir diversas iniciativas que impulsionam a atuação política de jovens e mulheres negras, como o projeto Juventude Negra e Participação Política, o Movimento Mulheres Negras Decidem e o projeto Emergências Políticas Jovens, do Instituto Update. 

Jessica é uma das contempladas da 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. A militante de políticas para as juventudes conta como foi o processo de ser bolsista do Baobá, e como os desafios impostos pela pandemia afetaram o percurso de seu projeto. 

 

Reprodução: Instagram

 

  • Qual foi o start da sua trajetória política? Como você despertou para essa necessidade?

Eu participei de um curso que era do CCJ Recife, o Centro de Comunicação e Juventude. Eles ofereciam curso de fotografia, audiovisual, design gráfico, cinema… Abriu um leque, porque o CCJ além de oferecer o curso de fotografia, a gente tinha uma formação sobre direitos humanos e educação popular. Também através da Ong Diaconia, que apoiava esse projeto do CCJ e tem uma trajetória de formação e diálogo com jovens, tanto da igreja quanto de fora. Então fui convidada para participar de seminários. Tinha temas ligados à juventude, direitos humanos, e eu fui me apropriando um pouco mais desse espaço. Até porque, pelo que eu conseguia ter de informações da televisão, “direitos humanos eram para bandido”, então eu fiquei um pouco curiosa para entender. Eu pensava “o que eu vou fazer lá?”. Então teve uma inquietação minha e pra mim era tudo muito novo, eu era muito nova. Foi diante desse espaço que eu consegui me entender e me observar.

Depois de acabar o curso a gente teve algumas viagens para participar de seminários e foi onde eu consegui compreender as temáticas e participar. Foi aí que eu entrei no Movimento Negro Unificado, o MNU, onde eu tive uma educação racial participativa que me ensinou muita coisa, sabe? Eu fui conhecendo outras redes, outras ações e eu não parei mais.

  • Quem são as suas principais referências políticas?

Antonieta de Barros, Benedita da Silva, Vilma Reis, Taliria Petrone, Marielle Franco, Renata Souza, Mônica Francisco, Dani Monteiro, Erica Malunguinho, Erika Hilton, Robeyoncé Lima. Eu acho que pesa mais Marielle, pelo fato de eu ter conhecido ela, ter tido a oportunidade de participar de uma atividade, estar junto.

  • Assim como todas essas mulheres, eu imagino que a sua trajetória enquanto ativista política também já vem causando impactos sobre outras jovens e mulheres negras. Você consegue perceber isso?

Eu dei uma oficina dentro da Funase (Fundação de Atendimento Socioeducativo / Pernambuco) e teve um jovem que ficou muito agarrado comigo durante a oficina inteira. Ele era curioso e queria saber sobre o tema que a gente tava falando, sobre direitos da juventude, direitos humanos. Ele também entendia que direitos humanos era só para bandido e coisa e tal.  Depois que saiu, ele me achou nas redes sociais e mandou uma mensagem falando: “Obrigado por ter ido fazer aquela palestra. Hoje eu estou trabalhando e tudo mudou totalmente depois que vocês foram lá. Hoje eu saí da Funase e tenho outra perspectiva de vida. Voltei para a escola e quero fazer enfermagem. Quero ir para a universidade”. Marcou muito o fato de eu ter ido falar da minha trajetória e vivência, levar um pouco do conhecimento que eu tenho, um pouco da bagagem, e poder transformar. Para mim é muito importante essa construção, essa troca. 

Semana passada eu recebi uma mensagem de uma jovem parlamentar me dando os parabéns pela minha trajetória. Isso porque eu estou enquanto pesquisadora do Update (Instituição da sociedade civil que atua na pesquisa e fomento de iniciativas de inovação política da América Latina), fazendo muito conteúdo de texto, card, live. Eu escrevi um texto falando sobre a radical imaginação política da juventude brasileira e ela me mandou um feedback muito massa sobre como é difícil a gente, enquanto jovem, colocar para fora o que a gente pensa, o que a gente entende, o que a gente quer. Ela falou que vai começar a fazer esse exercício de colocar também a narrativa que ela entende, que ela quer.

  • Quais são as principais demandas de juventudes no Brasil atualmente?

Eu acho que é a questão do trabalho. Não dá pra pensar em outra coisa que não seja a relação trabalhista. A gente tem 92% de jovens que estão trabalhando informalmente, seja entregando alimentos, trabalhando em comércio de feiras ou em plataformas de metrô e ônibus. Quando você pega o metrô você vê claramente o jovem vendendo água, pipoca… Então no momento a questão é o trabalho que está faltando. Quando se coloca uma oportunidade pedem tanta formação que o jovem que acabou de sair da universidade não consegue nem o estágio, porque estão pedindo muita coisa. As pessoas precisam se sustentar, pagar contas e o desemprego está enorme.

  • Quais os principais desafios para se pensar em políticas públicas de juventude e para a juventude?

A construção da política em si já é um pouco distante da nossa realidade. Quando se coloca jovem, participação política e ativa, a gente falando de impossibilidade de um jovem dentro da periferia ter esse entendimento. Foi o que aconteceu comigo: durante quatro anos eu  fui conselheira municipal de juventude aqui no Recife e eu consegui perceber o distanciamento do poder público com a sociedade civil. A gente tinha que sempre cobrando a prefeitura, o município, o secretário: “cadê o tal orçamento?”. Precisava ter um plano para que a gente pudesse ter pelo menos um recurso mínimo para construir e debater a política  do município junto com a juventude, e a grande discussão era o orçamento público. Para você ter ideia, a secretaria tem só R$5 mil para fazer as atividades anuais. Como a gente faz para que outros jovens possam participar do conselho? Porque é através do conselho que você faz a construção com a secretaria, é através do conselho que os jovens podem levar as demandas da sua comunidade, sabe? Há um distanciamento muito grande. Não dá pra gente falando de juventude sem ter jovem no meio.

  • Como foi o seu processo de inscrição no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco?

O Programa Marielle Franco veio pra minha vida de forma relâmpago. Eu tinha acabado de participar do Ocupa Política aqui em Recife, mais ou menos em agosto de 2019, e eu pude conhecer várias iniciativas, várias parlamentares. E depois disso eu pensei “poxa, tem tanta gente massa fazendo tanta coisa bacana. Por que as pessoas dizem que política não presta? Quando a Talíria (Petrone) no Congresso fazendo um mandato muito bom, a Áurea Carolina também . O Ivan está fazendo um mandato participativo aqui em Recife, fazendo prestação de contas do próprio mandato”. Daí eu conheci Daiane Dultra, que é uma pessoa maravilhosa, e foi ela quem me mandou o edital. Só estava faltando 5 dias para fechar o edital. A escrita do projeto não foi solo, foi coletiva. Teve outras pessoas envolvidas: o Bruno (Vieira), a Débora (Brito), a Mayara (Santana), [ativistas e amigos pessoais de Jéssica, que colaboraram com a elaboração e execução do projeto]. Essas pessoas ajudaram tanto na escrita, quanto na produção do vídeo, no envio do projeto. Eu fiquei muito receosa pensando que eu não tinha essa capacidade toda. Eu não sou acadêmica ainda, mas tenho um grande currículo de experiência e trajetória e Daiane me disse que não é isso que vale, que o importante era eu escrever a minha história e a minha proposta.  Durante os cinco dias a gente se falava de madrugada e foi daí que a gente foi pensando coletivamente em fazer uma caravana dentro das comunidades aqui em Recife, dialogar com as juventudes sobre as problemáticas em relação ao território, à participação social ativa. Essa seria a primeira parte e depois eu faria um tour para conhecer os mandatos, ir para Brasília conversar com a Áurea e a Talíria. Ir para São Paulo dialogar com a Érica Malunguinho (que é a primeira mulher negra trans a ocupar a assembleia legislativa de SP), ir no Rio de Janeiro conversar com a Dani Monteiro (a primeira jovem negra eleita deputada estadual pelo PSOL), ir para Salvador conversar com outras mulheres, ir para Minas Gerais… Então, a gente ia fazer uma pesquisa e depois lançar uma plataforma com todas as narrativas que a gente obteve durante o processo de viagem.

  • Você disse que a ideia inicial do seu projeto era fazer uma caravana. De que forma isso foi adaptado para a realidade da pandemia?

Eu não consegui produzir durante a pandemia toda. Eu não tive condições psicológicas. Eu não tinha algo que pudesse me levar para a frente. Eu acho que as únicas coisas positivas foram as formações do Baobá que a gente tinha e eu fui fazendo tudo muito aos poucos. Então as caravanas a gente colocou para o final, porque a gente entendia que não ia conseguir realizar online, já que tava todo mundo com muita coisa. A gente entendeu também que cada deputado ou deputada teria uma rotina muito grande, então as agendas não estavam batendo para pelo menos fazer um bate-papo online. [Dada a impossibilidade de realização das caravanas, foi realizado um ciclo de formações online sobre juventude e participação política]. Foi quando decidi que isso ficaria para o final do projeto, na expectativa de poder sair para fazer isso, mas me bateu uma tristeza muito grande de pensar que sempre que conseguimos algo tem que ter alguma coisa que faça voltar dois passos atrás. Também tive muitas perdas, mortes, o que pesou muito. Eu fiquei mal psicologicamente, então não foi uma produção da forma que eu queria que fosse. Eu fui fazendo aos poucos o meu projeto. O processo de a gente sair para os territórios também não aconteceu. A gente colocou para o final do ano, mas não aconteceu. Então pra mim foi muito ruim.

O meu projeto que seria uma plataforma incrível que estávamos imaginando e sonhando, não obteve o que a gente queria. Então eu fui fazendo leituras políticas, fui estudando aos poucos. Teve o Mulheres Negras Decidem que ajudou bastante. A gente fez várias formações e eu estava sempre participando. Ver tantas mulheres negras unidas no mesmo propósito era essencial e importante. 

  • E as atividades que aconteceram no formato online atingiram o público esperado? Ou foi necessário também alterar sua expectativa de público? Como ficou essa configuração?

Já que a gente não ia conseguir sair para os territórios, eu resolvi fazer uma formação online. Quando estava na construção dessa formação eu pensei em fazer algo fechado só para jovens aqui em Recife, mas depois eu pensando bem resolvi abrir para quem quisesse participar. Eu queria que fosse presencial porque tem outra energia, outra perspectiva e você acaba obtendo até mais que esperava, mas tudo bem. Quando fechei as inscrições, tínhamos pessoas de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro e Paraíba. Aqui em Pernambuco tinha gente de todos os municípios: Recife, Jaboatão, Camaragibe, Paulista, Igarassu, Itamaracá, todos. Querendo ou não, a gente ultrapassou a expectativa do que imaginávamos. Fiquei surpresa, mas foi muito importante ter uma galera de fora participando.

  • Qual foi a principal contribuição do Programa Marielle Franco na sua formação política? Quais são as suas perspectivas e projetos para o futuro?

Para mim foi o aprendizado com mulheres negras, todas as histórias que escutamos, as contribuições e as formações que o Fundo Baobá deu – principalmente com a (ONG) Criola. O Programa trouxe muitas mulheres acadêmicas e eu quero muito entrar na universidade e fazer gestão pública. Também pretendo lançar um projeto que possa formar jovens dentro dos seus territórios e comunidades. Tem outro projeto que é um sonho meu: um grande festival aqui na minha periferia. Ele já está guardado há 3 anos e eu estou mexendo novamente porque quero muito que isso aconteça. Eu penso também em criar um espaço no qual eu possa fomentar e estudar a imaginação política com as juventudes. Trazer essa ajuda para que o jovem que está dentro da periferia sem perspectiva de vida, possa mudar através do conhecimento e das oportunidades. Da mesma forma que eu tive a oportunidade de fazer um curso de graça, eu quero que outros jovens possam ter esse caminho. O sistema é cruel, o racismo, a sociedade em si. Construir, caminhar e ser um ativista requer muito tempo da gente, requer um espaço. Eu consegui obter isso, mas não foi sozinha. Eu consegui me tornar essa pessoa que eu sou hoje através da minha tia, porque quando eu tava na rua (brincando), ela tava trabalhando.

  • Se você pudesse mandar um recado para toda a juventude brasileira, o que diria?

Eu diria que a gente não pode deixar de sonhar. Sonhar é extremamente importante pra gente se manter vivo e manter as nossas ideias. É isso que eu faço.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Liderança multipotencial, Brígida Rocha dos Santos, atua na luta contra o trabalho escravo no Maranhão e em outros estados do país

Assistente Social de formação, a liderança maranhense atua em diversas áreas dos Direitos Humanos

Por Juliana Dias*

Quando a maranhense e assistente social Brígida Rocha dos Santos se inscreveu para ser uma das bolsistas da 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, ela não esperava que os números fossem impactar de maneira tão significativa na continuidade e fortalecimento de sua trajetória enquanto liderança negra com atuação no combate ao trabalho escravo.

O Programa, que é uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations, proporcionou a Brígida, em dois anos: fazer 13 cursos, 3 mentorias e 4 imersões; escrever 6 artigos; ampliar sua participação nas redes sociais; e integrar uma plataforma para visibilidade de assistentes sociais.

Brígida Rocha recebeu em 2015 um Prêmio de Direitos Humanos na categoria Combate e Erradicação do Trabalho Escravo. Em entrevista, a maranhense da cidade de Açailândia, nos conta como as trocas com outras mulheres negras potencializou sua atuação e contribuiu para sua autoestima e autonomia financeira dentro do campo profissional, pessoal e do ativismo.

  • Como começou sua trajetória enquanto liderança negra?

Iniciou na igreja enquanto catequista, e aí logo vem o convite, ainda adolescente, para trabalhar numa rádio comunitária em um programa infantil. Assim, eu fiz o percurso de aprender tudo sobre comunicação na rádio comunitária e aí ficava acompanhando as crianças, apresentando o programa, mas me envolvendo já com as pautas de direitos humanos, principalmente do tema trabalho escravo e trabalho infantil. E aí estudava, fazia cursos, fui até para experiência de estágio como professora, mas recebi esse convite para passar a atender pessoas vítimas de trabalho escravo. Era a possibilidade de um projeto que havia surgido na ONG Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos. É uma ONG que tinha criado essa rádio comunitária, então já trabalhava com essa temática desde sua fundação. E no período de 2005, eles com um projeto tiveram a possibilidade de contratar alguém, aí me deram esse desafio para em três meses aprender as técnicas do atendimento às vítimas de trabalho escravo. A partir disso eu fui me desenvolvendo, até mesmo em conhecer a realidade do trabalho escravo contemporâneo, pois o que eu tinha era mais a partir do que eu lia, visões muito fechadas sobre aquilo que a gente aprende nas escolas.

Foi um divisor de muitas mudanças pra mim, de ideias, de compreensões. Assim fui me destacando nessa temática, estudando bastante, sempre nessa parte de atendimentos, mas fui recebendo outras funções, outras missões, como coordenar equipes de atendimentos, fazer palestras, participar de atividades específicas, organizar eventos. E a gente nesse processo de acolher trabalhadores foi conseguindo também atender pessoas de outros estados.

Eu sempre tive esse contato com o tema da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo e é uma campanha nacional da Comissão da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Então, em um período eles se juntaram (o Centro de Defesa e a CPT) e fizeram uma indicação para eu receber um prêmio de direitos humanos na categoria de combate ao trabalho escravo, por entender dessa contribuição que eu vinha tendo diretamente.

  • Quando foi esse prêmio?

Foi em 2015. É um prêmio nacional, que foi entregue pela presidenta Dilma na época. Foi em Brasília e foi um grande momento quando esse prêmio apareceu. Uma gratidão muito grande permanece, pela confiança dos trabalhadores. Eu vejo que esse destaque todo foi devido a qualidade do atendimento, mas principalmente da aceitação, da recepção, da força dos trabalhadores que possibilitaram isso. Na minha trajetória toda eu sou conhecida como alguém que atende vítimas de trabalho escravo, que orienta, que faz encaminhamentos, articulações e trata dessa pauta. Mas, eu faço outras coisas. Também atendo mulheres vítimas de violência e também atuo nessa pauta do trabalho infantil.

Minha profissão é Serviço Social, sou assistente social, me formei em 2013. Eu tinha muito sonho de me formar em direito e por questões econômicas e por não conseguir a vaga na faculdade pública, eu não cursei. Então, depois eu consegui entrar no Serviço Social que era um curso de valor menor, com parcelas econômicas. Tão logo fui contemplada pelo PROUNI, fui bolsista integral. Fiz a graduação em Serviço Social e uma pós em gestão pública por outra faculdade estadual. É esse o meu nível de escolaridade, mas antes eu já tinha feito magistério. Sempre fiz muitos cursos nessa área de direitos humanos, participei de vários eventos nacionais e internacionais (dentro do Brasil) nesta pauta da migração forçada, do trabalho escravo. Em relação às mulheres, em especial, eu estive participando de algumas atividades de encontros de mulheres. Mas, nessa pauta da mulher negra, da raça, isso foi uma vivência que eu consegui através do projeto financiado pelo Baobá, do Programa Marielle Franco. 

  • E como é a Brígida Rocha dos Santos fora desses espaços de militância?

Eu sou mãe, tenho duas crianças de 11 e 13 anos. Eu resido no município de Açailândia, no estado do Maranhão. Eu sou natural desse município, mas trabalho em municípios diferentes pela minha relação com essa pauta do trabalho escravo e minha integração na Comissão Pastoral da Terra. Eu fico aqui no Maranhão, mas contribuo com os demais estados nessa discussão da pauta de trabalho escravo e a gente vem trazendo essa contribuição da visibilidade das mulheres vítimas do trabalho escravo, que é um contexto antes não muito discutido, era sempre tratado pela situação dos homens. Então, eu percebo que eu venho me desenvolvendo, aprendendo, conhecendo mais a partir do acompanhamento que eu tenho com comunidades quilombolas, comunidades tradicionais aqui no estado. Isso permite eu me desenvolver pessoalmente e também profissionalmente, e contribuir para o movimento quilombola do Maranhão. É um movimento que eu apoio e acompanho desde 2013. Aprendo muito com eles e também com a CPT.  Eu me vejo como alguém que é assistente social, comunicadora, mãe e faz várias coisas. Eu também crio outras estratégias empreendedoras, como vendas de roupas íntimas e assim eu vou seguindo a vida. Eu estudo bastante, mas sempre em relação a esses temas das quais eu já trabalho. Minha pós, meu TCC, por exemplo, foram com tema sobre trabalho escravo. 

  • Isso tudo que você é, representa e faz, significa ser uma liderança multipotencial, como você nomeia no seu projeto?

Eu me vejo como liderança multipotencial por eu estar em vários espaços, tanto com mulheres, com movimentos e com diversas temáticas. Eu tenho esse foco do trabalho escravo, porém eu participo de outras, tanto devido a minha profissão quanto às afinidades que eu tenho. Eu contribuo também nessa parte de formação de comunicadores; enquanto assistente social contribuo tanto em atividades técnicas, como na formação de alunos, de discussões do curso em si, como professora, facilitadora, convidada para atividades específicas, mas principalmente pelos atendimentos com as comunidades quilombolas. É uma trajetória complicada, mas muito gostosa. Quando precisei ficar algum tempo parada nesse período da pandemia, o início foi um pouco complicado, eu estava me sentindo bloqueada. Eu dizia: “Eu tenho que acordar. Essa não é a Brígida. Eu tenho que me envolver”. O Programa, por exemplo, me ajudou muito. Esse período da pandemia foi difícil, mas abriu muito essa possibilidade de estudo, de interação com outros grupos. Essa visão de estar nos espaços virtuais, que foi um desafio, mas que foi necessário e importante e que abriu grandes oportunidades. 

  • Como tem sido atuar em uma rede de assistentes sociais (a Ikesocial)?

A Ikesocial é um espaço mais para dar visibilidade às assistentes sociais, inclusive a gente vem passando por formações, discussões tanto em grupo de Instagram quanto de WhatsApp. A gente troca experiências e isso tem sido muito importante, como também é uma das bases para eu poder entrar no processo de melhor fazer minha avaliação profissional, de estabelecer preços. É uma revisão de, enquanto assistente social, eu posso fazer os trabalhos de forma autônoma sem ter que estar com vínculo trabalhista diretamente. A pessoa que faz a gestão, que é quem fundou, é também uma assistente social negra, que passou por esses desafios que a gente passa. Eu vejo como um espaço interessante que também serve para eu poder divulgar, apresentar meus trabalhos. E essa visibilidade é acompanhada de muitas formações. Para mim tem sido um grande desafio, eu me formei em 2013, porém vim ter alguns conhecimentos mais específicos desse grande leque de oportunidades já a partir desse envolvimento com a Ikesocial. Até melhorei meu Instagram, mas ainda tem coisas que eu preciso pôr em prática. 

  • Essa presença no Instagram foi algo novo dentro dessa sua experiência com a Ikesocial e com o Programa Marielle Franco? 

A orientação deles é que a gente crie um Instagram específico enquanto assistente social para dar essa visibilidade profissional, porém o meu Instagram que eu já tinha a muito tempo vivia parado. Eu não movimentava. Aí quando eu comecei a movimentar foi quando eu entrei no Programa Marielle Franco. Então, eu comecei a postar coisas no Instagram já a partir da entrada dentro do Programa, só que ainda não tinha essa grande visibilidade, eu não tinha muitos seguidores. Depois eu entro com a Ikesocial e eles vem incentivando essa melhoria do Instagram e também para melhorar a visibilidade profissional, o que eu fiz foi: não vou criar um outro Instagram como eles orientam, porque o meu também não tem muita coisa, eu só vou adequar mais para esses temas específicos e é isso que eu venho fazendo. Então assim, eu tinha um número tão baixo, acho que era menos de 300 pessoas. Esses dias eu não olhei ainda, mas suponho que está em 900 e poucas pessoas. Como também a visibilidade nos temas, nas matérias que consegui desenvolver, textos junto ao [Portal] Geledés. Então, assim essa parte de dar visibilidade a profissional Brígida, enquanto assistente social, enquanto liderança feminina negra, enquanto mulher que trabalha dentro dessa temática do trabalho escravo, pra mim é um grande resultado. Foi um grande desafio e eu vejo como resultado isso: eu consegui pensar mais em mim, me ver mais e passar isso para os outros. 

  • De que maneira a pandemia impactou nas metas que você traçou como liderança do Programa Marielle?

Eu sempre fui muito comunicativa, mas teve um período que eu me bloqueei. Eu não sei exatamente o ocorrido, mas teve um período que eu corria de lives. Alguém convidava, eu inventava desculpa, eu não queria participar desses espaços virtuais, por alguma insegurança da qual eu não sei exatamente o porquê, já que eu não tinha medo de falar. Esse foi um dos impactos que, pra mim, foi muito estranho quando eu me percebi naquele processo de não querer me comunicar. Até porque, antes eu participava bastante, mas não nos meios digitais, era sempre eventos presenciais. Creio que talvez esse tenha sido um dos motivos. Essa área virtual, de estar aparecendo nas lives, eu fiquei preocupada com várias coisas, questões de julgamento. Me perdi aí num período, mas eu reanimei depois e voltei a ativa.

A pandemia me prejudicou de concreto dentro do que eu havia planejado, na proximidade com as mulheres. Meu projeto visa dar visibilidade às mulheres vítimas de trabalho escravo, pra isso eu precisaria estar também próxima, estar em contato direto com essas mulheres. Mulheres que já haviam sido resgatadas, em períodos anteriores, mulheres que conseguiram sobreviver, sair do trabalho escravo. A pandemia me impediu no sentido de não encontrá-las, elas são do estado, mas não ficam em localidades tão fáceis, algumas eu busquei fazer agendamentos, mas não foi possível. A situação de não encontrar essas mulheres e a partir dali identificar como elas conseguiram sobreviver, quais estratégias elas utilizaram para poder resistir, sair do que elas vivenciaram, é um impacto que vejo como o mais difícil dentro do meu projeto. As outras coisas eu avalio que eu consegui ter um bom êxito, nessa coisa da partilha de saberes, porque eu participei de muitas atividades. Também de integração com outras líderes do Programa, trocamos ideias, construímos coisas juntas, fizemos artigos, participamos de lives.

Eu aprendi muito com as formações que a Baobá promoveu com os parceiros, com a Coach, com o pessoal da Criola, entre outros. De todos eu aprendi bastante. Uma coisa assim que eu vejo também que foi um grande desafio foi colocar as despesas dentro do projeto, nessa coisa pró-labore, porque é algo que, no início, eu não tinha pensado quando eu fiz o meu projeto. Ele era focado em produções, em organizar o meu registro profissional, que estava pendente.

Eu consegui me atualizar com taxas, eu consegui comprar materiais que eu não tinha, como notebook, impressora, itens de escritório, para eu poder trabalhar com tranquilidade, estudar também, poder atender as pessoas. Consegui quitar as mensalidades da internet. Pra mim essa coisa do salário de pró-labore era algo que eu não tinha pensado, nas formações e nos encontros com a Baobá fui percebendo essa possibilidade e foi o que me ajudou muito. As minhas despesas fixas, de alimentação e coisas diversas, saíram desse projeto. Antes eu nem tinha pensado, porque eu estava numa condição melhor, mas tudo mudou devido ao encerramento do projeto na organização que eu estava. Eu trabalhava com o projeto chamado Raice (Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão) e as vivências é direto nos quilombos, nas comunidades, aí como não podia ir mais devido aos protocolos de saúde, foram rompidas. 

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Líderes Negras: O sul audiovisual da cineasta e intelectual Éthel Ramos

Por Juliana Dias*

O interesse por uma memória positiva e profunda da população negra brasileira é o Sul de Éthel Ramos. Sim, o Sul. A cineasta e intelectual carioca de 44 anos diz que cansou de ser norteada. “É o Sul que está para o mundo. A América Latina, o continente africano”. Ela foi uma das líderes negras contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Com mais de vinte anos atuando no campo audiovisual brasileiro, especificamente no gênero documental, Éthel Ramos nos conta como a bolsa oferecida pelo Baobá foi fundamental para a construção da própria autonomia na produção cinematográfica. Éthel assina a co-direção do filme “Sementes – Mulheres Pretas no Poder” (2020). 

Por meio dos recursos disponibilizados pelo Programa, ela adquiriu uma série de equipamentos, aperfeiçoou o aprendizado de idioma estrangeiro e rompeu barreiras dentro da área audiovisual. Isso fez com que ela enxergasse na linguagem da ficção um dos novos caminhos para a inclusão de sua narrativa em prol da valorização da imagem criativa do povo preto. Além disso, a líder negra relata como foram os dois anos como bolsista frente à pandemia do coronavírus, que impossibilitou os encontros presenciais, mas que possibilitou a formação de uma rede de mulheres negras que contribuíram para a sustentação do próprio autocuidado e da autoestima.

Reprodução: Site Embaúba Filmes

 

  • Quais as diferenças entre a Éthel Ramos antes e depois do Programa?

Ser bolsista do Fundo Baobá foi uma das experiências mais bonitas que eu pude participar da minha vida. Tenho 44 anos, então eu já vivi bastante experiências legais, bons encontros. Foi uma grande infelicidade nós não podermos ter tido a oportunidade de um encontro presencial, você imagina todas essas mulheres incríveis juntas. Já era bastante emocionante os encontros online de formação, isso absolutamente foi fundamental, esse processo de ajuntamento das bolsistas. Eu percebo de diferença essa certeza, de que quando as mulheres negras se reúnem, não há nada mais potente do que isso. Isso me atualiza na minha fé, na minha esperança, no meu compromisso com meu trabalho e no meu compromisso em viver bem. Encontrei com Ialorixás, que é um rolê que eu faço muito – sou uma mulher de axé – mas também, encontrei com mulheres muito jovens. E essa intergeracionalidade me fortalece muito. Foram momentos muito especiais. Tanto que, esse encontro entre nós, teve impacto no filme que eu estava realizando nesse momento. 

  • Nos conte sobre esse impacto…

Eu estou co-diretora do “Sementes – Mulheres Pretas no Poder”, que é um filme independente, com pouquíssimos recursos. Começamos a fazer com recursos próprios, depois fizemos vaquinha. Apenas na reta final que conseguimos financiamento para fazer a finalização do filme. É um filme de grande êxito na sua trajetória cinematográfica. Sementes estreou no dia 7 de setembro de 2020 e teve quase mil pessoas na live de estreia. 

Nesse momento (do apoio) eu estava montando Sementes, que é uma etapa fílmica onde o filme realmente nasce. Um dos encontros foi conduzido por Jurema Werneck e ela fez uma fala muito linda sobre a Marcha das Mulheres Negras de 2018. Nós havíamos filmado essa marcha, mas não sabia bem como encaixar. Porque o Sementes também foi um filme que foi feito no sentido de ser uma escola. Primeiro porque não tínhamos dinheiro, então não podíamos pagar as profissionais. Por isso, convocamos as mulheres pretas do audiovisual pra colar com a gente. Sementes teve momentos de grande produção para filmes sem dinheiro. Um desses momentos foi a Marcha das Mulheres Negras. A gente fazia seis equipes de fotografia, som direto e produção. Minimamente 18 pessoas na rua pra poder acompanhar cada uma das personagens. Então, na Marcha das Mulheres Negras, no #EleNão e no dia da eleição [de 2018] foi essa superprodução.

A gente não tinha condições de pagar 18 pessoas, convocamos as mulheres negras do audiovisual pra colar nesses momentos. Quem colou primeiro foram as meninas mais jovens, com pouca experiência no rolê do audiovisual. Eu fiquei um pouco ali na função de formação pra elas, então é um material irregular um pouco. Tem coisas que estão legais, outras que não estão tão legais. A gente não sabia bem como encaixar, era uma montagem difícil. Depois dessa fala de Jurema, eu falei pra Julia [Mariano, também co-diretora do filme] que tínhamos que incluir essa Marcha, porque foi um calendário fundamental na direção da reorganização política das mulheres negras. 

Esse é um caso especial, a partir da importante relevância que Jurema trouxe em um dos encontros do Programa. Mas, especificamente o que mudou para mim foi isso, uma atualização muito profunda da centralidade das mulheres negras na condução de novos horizontes.

  • Como o Programa contribuiu para sua trajetória e fortalecimento enquanto mulher negra dentro do audiovisual?

Contribuiu de forma material pra mim. Isso foi fundamental. Eu estou nesse rolê do audiovisual tem quase vinte anos e nunca conseguia ter uma câmera. É muito oneroso equipamentos audiovisuais, e pagando aluguel, fazendo filmes com o próprio dinheiro, nunca priorizei ter meu próprio equipamento. Sempre contei com o apoio dos meus colegas para poder realizar os filmes que realizei. São coisas muito concretas, os equipamentos e acessórios. Porque era sempre um corre, pega uma câmera emprestada, um microfone e agora tenho o kit completo. 

Eu estudei também, estudei na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, fui bolsista nessa escola e só assim como bolsista pude fazer as formações que fiz. Agora eu pude escolher os cursos que eu poderia investir, curso de roteiro, curso de câmera, me atualizar na montagem. Então, eu pude pagar e isso colabora materialmente, colabora na minha formação enquanto intelectual também, de poder desenvolver uma segunda língua, porque o meu projeto é também de aperfeiçoamento da língua inglesa. Eu tive aulas duas vezes na semana de inglês e só não fui fazer o intercâmbio na África do Sul – seria a primeira vez que eu faria uma viagem internacional. Minha viagem estava marcada para junho e se instaurou a pandemia e eu não pude ir, mas essa viagem está marcada. Eu nunca pensei em fazer um intercâmbio, nem quando eu escrevi o projeto, porque era algo tão fora da minha realidade. Mas, trocando com o grupo de WhatsApp do Programa, as meninas começaram a falar do intercâmbio na África do Sul, que era possível. Então vou me jogar nessa coisa do intercâmbio. Estou um pouco melhor do que antes do programa e eu aguardo esse aperfeiçoamento rebuscado a partir do intercâmbio.

  • O que te motivou a se interessar pela linguagem de ficção?

Documentário é uma linguagem que eu domino, estou fazendo isso há vinte anos. Eu dou aulas sobre isso, tenho dado muitas aulas, sempre me dediquei à formação audiovisual, de compartilhar minha formação com pessoas de periferia, do terreiro, do sertão. O documentário é realmente minha zona de conforto, mas sei que a ficção vai poder me levar a maiores elaborações estéticas acerca da nossa cultura preta. A gente tem inúmeras histórias ainda não contadas a partir do nosso ponto de vista. Por exemplo, a Jurema tem um artigo chamado “Macacas de Auditório” – isso está na redação do meu projeto – falando dessas mulheres pretas que foram conhecidas como as macacas de auditórios dessa época da era do rádio. O que era essa época? Um momento de profunda internacionalização da cultura brasileira a partir da musicalidade. A bossa nova, por exemplo, que é um grande marco, no mundo inteiro conhecida. E a cara da bossa nova é Vinicius de Moraes, bastante Baden Powell. Só que qual é o disco fundamental da bossa nova? “Canção do amor demais”. E quem é a cara e a voz de “Canção do amor demais”? Elizete Cardoso. E onde está a minissérie sobre Elizete Cardoso, os grandes filmes de ficção sobre ela? Obstante tenhamos muitos filmes sobre Elis Regina, Maysa, essas grandes cantoras maravilhosas, fundamentais, esplêndidas cantoras brancas. Não tem nenhum filme sobre a Elizete, sobre a Dona Ivone Lara. Outro dia estava vendo uma história super interessante sobre a vinda da Josephine Baker ao Rio de Janeiro e ela indo a Madureira. É um roteiro pronto. 

  • Você pode adiantar que tipo de filme de ficção você pretende realizar?

Eu tenho muito desejo de fazer sobre Elizete Cardoso, sobre a musicalidade preta a partir de Elizete Cardoso. Na linguagem da ficção isso dá muito pano pra manga para entender o que é que é o Brasil de hoje. Se tivéssemos tido um letramento audiovisual a partir das imagens pretas, das experiências pretas, o Brasil não era o que é hoje. Quantos filmes nós temos sobre a maior experiência – não sei se cabe esse termo de experiência democrática horizontal de política de auto-organização no Brasil – que foi o Quilombo dos Palmares, e que durou 96 anos? São essas histórias que quero contar, e o documentário tem um grande poder, mas sei que a ficção é um universo de elaboração que talvez comunique melhor, porque nós temos um letramento audiovisual que vem das novelas. Eu acho que nós temos que nos apropriar dessa linguagem televisiva, novelesca para gente fazer a nossa história. Acho que nossa educação cultural, política, filosófica, vai avançar muito quando a gente tiver essas obras audiovisuais da ficção pela perspectiva preta, pela perspectiva travesti, lésbica… Eu sempre digo isso, que se as novelas investissem naquilo que a gente chama dentro do universo das mulheres lésbicas de rebuceteio – namora amiga, que namora a inimiga – as novelas seriam muito mais divertidas. A lesbofobia seria bastante menos alastrada, porque a gente tem um universo de narrativas e de humor dentro da comunidade lésbica muito grande, um universo de trama muito sofisticada, romances que só acontecem no universo lésbico. São essas histórias que quero contar, pra colaborar pra ampliação dos horizontes, não somente das pessoas negras, mas ampliação dos horizontes de todo telespectador brasileiro.

  • De que maneira a pandemia impactou nas metas que você traçou como líder do Programa Marielle Franco?

É um momento muito duro esse que a gente está vivendo. Você imagine o que seria a gente fazer formação presencial com Vilma Reis, Erica Malunguinho, Jurema Werneck. Nos encontrarmos, nos aliançarmos de maneira quase íntima, isso teria sido algo… O Programa já é de vanguarda, eu acho que se tivesse tido essa oportunidade presencial seria revolucionário, seria uma centelha revolucionária. 

O Fundo Baobá nos oportunizou fazer momentos de encontros que cuidávamos da nossa parte emocional também. Isso é um negócio inédito, isso só podia vir a partir da cabeça de uma mulher preta. Esse cuidado com a parte emocional, com a parte psíquica, momentos de relaxamento. Isso foi fundamental para passarmos por esse momento, esse carinho, essa atenção, esse ajuste das nossas frustações durante a pandemia, em face do nosso projeto. 

O ano passado eu estava toda envolvida com Sementes. Fazendo montagem, depois estreando, depois foi a carreira de fazer lives. Tinha dias que eu fazia três lives por dia. A gente fez um projeto de distribuição de impacto com a Taturana, que tem uma rede muito grande de pontos de distribuição. A gente teve essa estratégia de impacto, que eu coordenei, então eram muitas demandas. Fiquei todo o ano muito envolvida com isso.

Quando chegou janeiro e fevereiro eu caí numa depressão que eu só consegui levantar em julho. Esses encontros do cuidado foram fundamentais para a minha sobrevivência. E digo mais, nesse período, refletindo sobre pandemia, cheguei a conclusão que esse não é um período inédito para as pessoas pretas, nós já passamos por isso quando nossos ancestrais vieram sequestrados de África. Na privação do encontro, do encontro familiar, do distanciamento social. Nós viemos nessa situação e nós sobrevivemos a isso.  Então, está guardado, como diz a música de Virginia Rodrigues, “Está esculpido na mente muito além da minha consciência”. E isso me ajudou muito a entender que isso não era um momento inédito para nós pessoas pretas, que nós já havíamos passado por isso e nós sobrevivemos. E eu sou prova disso no sentido de que se eu sobrevivi a isso, meus ancestrais também sobreviveram e hoje sou uma mulher liberta, cineasta, intelectual, bolsista do Fundo Baobá. Então, toda essa energia preta que estava circulando na minha vida de uma maneira muito íntima todos os dias, era a palavra das mulheres pretas. Eu não estava falando por mim, eu estava falando pelo coletivo. Essa força que tem me salvado a vida toda.

  • Quais são seus planos para o futuro dentro desse campo do audiovisual após todas essas metas atingidas?

O mais importante de todos os meus planos é o desenvolvimento de roteiros de ficção e produção desses roteiros. Isso é mais importante. Já estou desenvolvendo, só não posso contar pra você, porque é um negócio tão bom (risos)… Deixa eu estar mais adiantada que você vai ouvir falar desses filmes e vai dizer: a Ethel vai fazer um bom caminho.

Por exemplo, eu estou no estado de Pernambuco, tenho grande paixão pelo Maestro Moacir Santos. Um homem que foi fundamental na musicalidade brasileira. Grande exemplo disso é que é ele quem ensina os acordes dos afrosambas para o Baden e para o Vinicius. Fez grandes trilhas em Los Angeles, um homem fundamental. Quantos filmes existem sobre esse homem que vai fazer 100 anos em 2026? Quantos? Isso é gravíssimo. Quando eu mostro as músicas do Maestro Moacir, as pessoas se ressentem de não conhecê-lo. Maestro Moacir está na lista desses filmes de ficção que eu quero fazer, e os filmes das mulheres lésbicas também. 

  • Quais as suas referências de cinema negro?

Everlane Moraes, Milena Manfredini, Clementina de Ouro e Ava DuVernay. São as mais importantes para mim. 

  • Quais foram os principais desafios e aprendizados que você teve durante essa jornada enquanto líder do Programa Marielle Franco?

O aprendizado foi principalmente esse de ter a certeza do respeito das mulheres negras. É algo muito radical, me informa, me forma, me ensina e me dá sul. Eu tenho dito isso que não quero mais ser norteada, mas sim suleada. É o Sul que está para o mundo. A América Latina, o continente africano. Então, o Programa me dá esse farol ao sul. Foi meu farol ao Sul.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Professora pernambucana, Maria da Piedade Marques de Souza, propõe mergulho na memória ancestral para fortalecer grupos de mulheres nordestinas

Redes de apoio e incentivo às mulheres negras são fundamentais para “erguer-nos enquanto subimos”

Por Julia de Miranda*

A filósofa estadunidense Angela Davis escreveu um texto em 1987 sobre o empoderamento das mulheres negras norte-americanas e propôs que devemos subir, unidas e nos apoiando, todas juntas. Ela sinalizou que precisamos nos esforçar para erguer-nos enquanto subimos. “Essa deve ser a dinâmica essencial da nossa busca por poder – um princípio que deve não apenas determinar nossas lutas enquanto mulheres afro-americanas, mas também governar todas as lutas autênticas das pessoas despossuídas”, pontuou Davis.

Estar de pé e seguir resistentes na caminhada implica em cuidar umas das outras (sem esquecer de si) e criar a possibilidade de novos espaços que trabalhem, politicamente, em prol da proteção e defesa de meninas e mulheres. 

É justamente partindo desse pensamento que a professora pernambucana Maria da Piedade Marques, do Recife (PE), entendeu que, ao se erguer, poderia levar outras mulheres.  Ela foi uma das contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. 

Com o projeto “Mulheres Negras e Irmandade: Construindo redes de solidariedade”, a professora está construindo uma rede de irmandade de mulheres negras, através de vivências e oficinas de memórias entre mulheres de Pernambuco, do Nordeste brasileiro e do exterior. Coordenadora da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, ela acredita que a educação, não apenas a formal, mas também os saberes orais, são a base fundamental e humana para o nosso crescimento pessoal e coletivo. “Durante o desenvolvimento do projeto tivemos encontros virtuais fantásticos, mesmo com tantas dores, a alegria sobressaiu e conseguimos nos conectar com mulheres de quase todos os estados do Nordeste”, comemora Piedade.

Confira na entrevista como foi a experiência dela no Programa, os desafios e anseios, e conheça um pouco mais do seu projeto. 

  • Como surgiu a ideia do projeto Mulheres Negras e Irmandade: Construindo redes de solidariedade?

Quando saiu o edital do Fundo Baobá eu estava como pesquisadora visitante na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, em 2019, e de lá é que eu escrevi a proposta. Algumas questões me inquietaram ao longo da minha trajetória e surpresas da vida vieram reforçar isso. Refletia sobre a dificuldade que nós, mulheres negras da minha faixa de idade (40 a 50 anos), temos de descobrir a necessidade da língua inglesa para ampliar o diálogo. Essa era uma das minhas preocupações iniciais e a motivação para aprender o idioma nos 4 meses que eu residi no país.

Nos Estados Unidos eu tive uma grata surpresa, consegui encontrar um grupo de mulheres negras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), elas foram as responsáveis pela vinda da Angela Davis em 2017 para a Bahia. Esse era um curso com pessoas vinculadas às organizações sociais e pude então entrar em contato com esse pessoal e acabei recebendo convites para somar nas ações.

O campo fértil que foi estar em contato com ativistas de outros países me motivou a preparar, para o edital do Fundo, uma metodologia envolvendo a solidariedade de mulheres negras de Pernambuco para apresentar no exterior. Nesse meio tempo, por questões pessoais, precisei voltar para o Brasil e não pude retornar ao intercâmbio devido a pandemia. Ser acolhida nos Estados Unidos foi algo que me tocou profundamente e me fez querer colaborar ainda mais. Ser solidária é algo de quem sabe se colocar no lugar do outro.

  • E como foi o desenvolvimento e os desdobramentos do projeto?

Com a mentoria do coaching proporcionada pelo Baobá, eu tive o auxílio na escolha por um novo caminho diante das circunstâncias. Continuo em contato com várias pessoas nos Estados Unidos, mesmo que a proposta não seja vinculada só lá, mas é onde hoje eu posso dizer que existe um  vínculo um pouco maior. O grande desejo da metodologia era poder juntar mulheres negras para conversar sobre memória, epistêmica e oral, que incluísse nossas mães, avós e tantas mulheres negras ‘anônimas’ do núcleo familiar que não são lembradas na academia. 

Com a adaptação do projeto eu consegui realizar durante esse período oficinas on-line. Iniciei construindo um percurso com a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco: de forma tranquila e leve os encontros foram acontecendo no formato virtual, nada presencial e esse foi um pedido do Baobá. Outra inquietação que a prática me trouxe foi que nós passamos toda a nossa militância escrevendo ou dizendo que “as mulheres negras das nossas vidas vieram de muito longe”. Porém, é essa questão do tempo e da memória que trazem isso à tona, todavia a gente termina se afundando somente nos referenciais teóricos e esquecendo de resgatar quem realmente são as mulheres importantes, além das ativistas e intelectuais. 

Quem são essas outras mulheres que estão mais perto de nós, e algumas a gente nem sequer conhece? Eu posso não tê-la conhecido fisicamente, contudo ela tem um papel importante na nossa memória coletiva, isso não pode ser desconsiderado. As nossas rodas de conversa foram fantásticas, mesmo com dores no compartilhamento das memórias (reunimos algumas mulheres mais velhas), existiu muita alegria e força  em todos os encontros com as mulheres nordestinas, tanto das capitais como do interior. A carga emocional acessada nas trocas foi positiva e relevante para todas nós nesse momento de pandemia. Ao todo, fizemos encontros e oficinas de resgate a memórias das nossas ancestrais em seis estados da região Nordeste (Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte), os que faltaram foi por falta de tempo. Nem tudo proposto foi alcançado, mas ressignificar e mudar a rota do projeto foram essenciais para o aprendizado. 

  • No decorrer do processo, quais foram os aprendizados e conquistas?

Uma das coisas que eu inclusive levo como anseio para o futuro é que eu percebi o quanto essa experiência nos trouxe alegria. Apesar das memórias nem sempre apresentarem conteúdos lindos, muita dor emergiu e a gente conseguiu conectar as pessoas através dessa experiência sublime e luminosa.  As memórias compartilhadas nos alimentavam através da identificação com as histórias. Memórias desde o tempo que a gente era criança, e hoje, como adultas, acolhemos com gentileza e cuidado. 

Eu optei em investir no idioma, pois pretendo voltar para os Estados Unidos. Quero organizar uma grande rede e conectar as mulheres norte-americanas com as brasileiras para instigar e encontrar soluções de apoio para as nossas vivências, dessa maneira a gente avança. Como conquista, além do curso de inglês, foi conhecer outro universo, diferentes realidades e culturas durante a minha imersão. 

Pretendo voltar em breve e mostrar a nossa realidade e o que fazemos aqui no Brasil com a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Rede de Mulheres Negras do Nordeste. 

A experiência com as outras lideranças que estão vinculadas a organizações comunitárias nos Estados Unidos, a recepção, o apoio e a percepção de que é possível construir pontes, diálogos e relações de acolhimento lá e cá, é algo latente e inspirador para mim.

  • Quais são seus planos para o futuro? 

Enquanto a pandemia não acaba, eu sigo a caminhada no Brasil no passinho de tartaruga. Pretendo em breve me reunir presencialmente com os grupos e voltar às oficinas e encontros. Quero trabalhar com as imagens dessas memórias de cada uma de nós e fazer uma exposição fotográfica em todas as cidades visitadas nas reuniões. É importante que a sociedade veja e reconheça as nossas “mulheres anônimas”. Em 2023 o plano é voltar para os Estados Unidos.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

O conhecimento que se adquire e distribui de Girlian Silva

Liderança Negra que atua na Amazônia, Girlian acredita no poder da coletividade para transformar a realidade das mulheres negras

Por Juliana Dias*

A Sumaúma é uma das árvores mais extraordinárias da Amazônia e sua grandiosidade não está apenas na altura que ela pode chegar (70 metros), mas também por ser um portal de comunicação para os povos da floresta, nos âmbitos real e espiritual. É  enraizada na sagacidade da gigante da Amazônia que Girlian Silva de Sousa, integrante da 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, nomeou o seu projeto: “Sumaúma Literária”. O Programa é uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

A iniciativa de Girlian tem como foco principal a publicação de um e-book escrito por mulheres negras (cis e trans) do Baixo Amazonas, principalmente da cidade Santarém (Pará). Aliando o ativismo feminismo negro com os saberes do meio digital, a baiana de Itabuna movimentou diversas mulheres negras da região da Amazônia para potencializar a transmissão de conhecimentos. Embora tenha sido ela a contemplada pelo Programa, o projeto aprovado foi realizado em coletividade com o grupo Mulheres Negras de Santarém, da qual ela faz parte. O resultado dessa movimentação em rede vai gerar a publicação do livro “Vozes Afroamazônidas: entre rios, terras e afetos” e do blog “Vozes Negras”. Nessa entrevista exclusiva, a economista Girlian Silva, que tem mestrado e é doutoranda em Desenvolvimento Socioambiental (UFPA), comenta como a especialização em Influência Digital (PUC-RS) vem contribuindo para ampliação de seus horizontes dentro do ativismo feminista negro.

  • Como é a atuação de uma liderança consciente do pluralismo do feminismo negro?

Desde o início eu me coloquei enquanto uma liderança em formação, porque realmente eu sou uma liderança em formação, eu ainda estou naquele processo de aprendizado e de descobrir um pouco mais sobre o feminismo negro. Toda vez que começo acreditar que eu já sei muito, eu descubro que não é bem assim; quanto mais você lê, escuta outras mulheres falando sobre, você descobre que ainda tem muita coisa que ainda não percebeu. Um dos aprendizados mais importantes que eu tive ao longo desse Programa, foi justamente esse relacionado a pluralidade do feminismo negro. Porque a gente costuma falar em mulher negra e acaba muitas vezes caindo no mesmo equívoco do feminismo tradicional, do feminismo não negro, que é você colocar todas as mulheres dentro de uma categoria só, esquecendo as particularidades de cada uma, as demandas de cada uma. É como se não habitássemos em territórios diferentes e sofrêssemos formas de opressão diferentes. Eu gostaria de sair de todo esse processo, que ainda tem muita coisa pela frente, com essa capacidade, essa consciência muito mais entranhada, mais trabalhada, mais desenvolvida. De que as mulheres negras são plurais, são diferentes e você precisa enxergar até mesmo quando elas não conseguem se enxergar, não conseguem enxergar sua própria particularidade. Então, eu acho que para se colocar no lugar de liderança você precisa ter essa expertise e se você não tiver, tá faltando muita coisa ainda para você desenvolver. Antes de participar do Programa, por exemplo, eu não tinha uma visão um pouco mais elaborada sobre as mulheres trans. Eu estava naquela pegada de “Olha, somos todas negras e tal”. E aí depois de conviver ao longo desses dois anos com uma mulher trans, de ter a oportunidade de ouvi-la, eu fui perceber a importância. 

  • Quais outras contribuições do Programa Marielle Franco para sua formação enquanto liderança negra?

Uma ideia muito mais clara sobre coletividade, que eu acho que é fundamental. Veja, eu sou baiana de Itabuna, moro na Amazônia há quase dez anos. Eu vim para cá em 2013, para fazer um mestrado, fiquei, iniciei um doutorado e estou vivendo aqui. Mesmo sendo economista e sabendo do quanto o capitalismo acaba formatando a nossa visão de mundo, o jeito de conviver, interagir, formando uma sociedade totalmente individualista, nem sempre eu estive ciente desse individualismo entranhado. E nem sempre eu tive essa consciência de que, naquele momento, minha visão era uma visão individualista, mesmo sendo uma pessoa que trabalhava dentro do movimento.

Eu só fui me associar a um grupo de mulheres em 2017, o Movimento de Mulheres Negras de Santarém, no Pará. Até então, eu achava que eu sozinha, estava tudo ótimo. Aquela história de que você não precisa estar no coletivo para poder atuar. Somente a partir de 2017 eu fui ter esse convívio, e com o Programa fui tendo essa visão melhor sobre coletividade. No coletivo somos mais fortes. Ao longo desses dois anos também, eu acho que adquiri um pouco mais de compreensão sobre os problemas que esse comportamento individualista acaba causando dentro do próprio movimento de mulheres. Eu acho que consegui construir esse objeto de observação, de começar prestar mais atenção nas outras, tentar diminuir o julgamento e prestar mais atenção nas ações. E hoje eu saio desse projeto entendendo que precisamos trabalhar bastante dentro do movimento essa coisa do individualismo, que cria concorrência. E esse sentimento de concorrência é algo que nunca faz sentido, mas que muitas vezes tá ali velado e enfraquecendo as coisas. 

  • Você conseguiu atingir os objetivos e as metas que você esperava com o programa?

Todos ainda não. Estou atrasada nisso. A pandemia me pegou de jeito. Pra mim, o Programa começou junto com a pandemia, porque as bolsas foram implementadas em março/abril de 2020 e eu já estava sofrendo as consequências da pandemia. Eu não sei o que poderia ter acontecido se eu não tivesse sido agraciada pelo Programa. Ele foi fundamental pra mim. E mesmo tendo esse suporte, a coisa foi feia, muito difícil. Uma das minhas metas era concluir o curso de especialização em Influência Digital e na sequência colocar um blog no ar. Outra meta importante que eu tinha no meu PDI (Plano de Desenvolvimento Individual) era a publicação do livro. Na minha cabeça quando tudo foi estruturado, o livro era para ser publicado em 31 de julho. Não foi bem assim que aconteceu, o livro está sendo encaminhado para editora ainda essa semana [novembro de 2021]. O livro se mostrou um grande desafio porque me coloquei na obrigação de organizá-lo de forma coletiva. Primeiro tivemos que mobilizar a mulherada para comprar a ideia do livro, fazer as pessoas acreditarem que seria possível ter a publicação desse livro aqui na Amazônia. Se a mulher negra já é invisibilizada, aqui na Amazônia é muito mais. Ainda mais na região que será o foco do livro. A ideia inicial era que a gente ficasse com as mulheres do baixo Amazonas, principalmente da cidade de Santarém, uma cidade que é extremamente elitista, racista, machista e homofóbica. Tivemos todos esses desafios.  

  • Esse processo de elaboração do livro foi coletivo?

Peguei o recurso do Baobá e fui para as mulheres do movimento, do grupo e convoquei aquelas que se interessassem para formar uma comissão organizadora para pensar o livro. Tudo foi pensado de forma coletiva. Quando vimos que havia a necessidade de provocar uma mobilização mais forte para que as mulheres conhecessem o edital, já estava na época da COVID. Então, usamos as mídias digitais. Abrimos um edital para que as mulheres negras cis e trans do baixo Amazonas se inscrevessem. Com a chamada, as mulheres diziam que não se sentiam seguras, achavam que não tinha condições de escrever um artigo. Então, pensamos em fazer aulas online falando sobre temas relacionados ao livro e trazer as pessoas, para ouvir os debates, as aulas e depois isso poderia ser um material para usarmos mais lá na frente, para incentivar.

  • Quais os temas que vocês estão trabalhando no livro?

São diversos eixos temáticos que colocamos lá: mulheres negras e acesso à saúde; mulheres negras e acesso a saneamento básico; empreendedorismo; mulheres negras e direito; mulheres negras e educação, entre outros. Eram eixos pensados para que pudéssemos adequar ao que as mulheres quisessem escrever pra não ficar uma coisa muito engessada. Fizemos parcerias com professoras, professores, profissionais de outras áreas, inclusive pessoas não negras também, que se disponibilizaram a gravar essas vídeos-aulas e convocar a galera para isso. Fizemos toda essa movimentação, mas ainda assim quando o prazo de submissão chegou, tivemos dois artigos submetidos. A previsão era de que publicássemos 16 artigos. Reabrimos o edital e nada. Tivemos que pensar alternativas, porque se a gente não publica o livro, reforça a ideia de que mulheres negras não conseguem escrever. Na época, o edital foi muito visto, o projeto foi bem midiatizado e depois dizer que não ia rolar, seria um tiro no pé. Aí pensamos em abrir para a Amazônia inteira. Deixamos de abrir somente para o baixo Amazônia, ainda assim não rolou. Por último, decidimos chamar mulheres que já tinham o hábito de publicar artigos. Uma preocupação que tínhamos também era que não queríamos só doutoras, em nenhum momento pensamos em um livro formado somente por doutoras ou por mulheres que já eram reconhecidas no meio acadêmico. A gente queria mulheres anônimas.  Colocamos em prática essa ideia e ainda assim – e eu digo que foi por conta da pandemia -, a gente acabou não conseguindo os 16 artigos, a muito custo conseguimos 09 e para isso as mulheres que estavam na organização tiveram que participar também.

Uma coisa que nós diagnosticamos é que existe muita insegurança, as pessoas não acreditam que elas são capazes de escrever, mesmo pegando mulheres que já estão na academia. Daí, pensamos o seguinte: vamos juntar e escrever esses artigos não de forma individual, mas vamos fazer duplas, trios, quartetos, o que for, mas vamos escrever. E daí conseguimos que os 09 artigos saíssem dessa forma. Eu acho que a partir daí já conseguimos atingir alguma coisa, não era a meta que a gente tinha colocado antes, mas o projeto não morreu.

Eu acho que conseguimos homenagear mulheres da região, mulheres anônimas. Queríamos dar visibilidade a essas pautas do território, falar sobre as demandas daqui, mesmo porque temos um problemão quando falamos sobre negritude aqui. Houve todo um processo histórico de apagamento do negro na Amazônia, como se a Amazônia não tivesse participação do negro e teve! Cada vez que as pessoas veem um negro de pele retinta pergunta logo se é do Maranhão, nunca se é do Pará, por exemplo. Então, as pessoas não entendem que o processo de formação social aqui se deu de uma forma, que as pessoas negras daqui vão ter características diferentes das pessoas negras da Bahia, por exemplo. Eu acho que o livro acaba atingindo pelo menos essa meta. 

  • Qual a avaliação positiva desses desafios?

O aprendizado, porque a partir dessa dificuldade toda, tanto pra mim quanto para as outras colegas que estão participando, ficou claro: trabalhar um edital para mulher negra não é o mesmo que trabalhar para mulheres não-negras. Temos gargalos que precisam ser vistos. Saímos desse processo todo com a certeza de que é possível e de que é um eixo que precisa, pode e deve ser trabalhado. O meu grupo acha que a gente vai ter que correr atrás, depois do livro, vamos ter que sentar, reavaliar tudo, ver onde nós erramos, o que pode ser melhorado e gostaríamos de continuar com esse tipo de iniciativa, em outro formato. Eu acho que tem muita história que a gente precisa contar, tem muita coisa para ser visibilizada, discutida. Então, eu acho que o livro de positivo tem isso e sei que vai ser muito legal quando ele for impresso, acreditamos que em novembro já estaremos com ele em mãos. Eu sei que vai ser muito bom para a autoestima das mulheres que participaram desse processo. 

  • Sua proposta de projeto estava relacionada com o âmbito digital, com a chegada da pandemia esse foi o principal ambiente de atuação das líderes negras e de outras atrizes sociais. Como foi essa experiência para você? 

Foi novamente uma outra oportunidade que o Programa me deu, porque no final das contas essa especialização que estou concluindo foi fundamental não somente no campo profissional, do ativismo, porque isso vai se desenvolvendo em novos projetos, em novas ações, vai ser uma forma de eu atuar através da mídias digitais, através do blog Vozes Negras. O que ficou muito claro que é uma ferramenta do futuro, uma forma de trabalho do futuro e ela agregou não somente nesse campo ativista, mas na minha formação profissional enquanto economista. Por exemplo, eu vejo oportunidade da gente tentar fomentar negócios de outras mulheres negras que estão no afroempreendedorismo. Foi uma experiência que confirmou inclusive a hipótese que eu tinha quando escrevi o projeto: de que esse meio digital seria muito mais eficiente do ponto de vista de larga escala do que o presencial. Porque a gente para montar uma ação presencial às vezes os custos são muito maiores, temos que mobilizar carro de som, contar com a boa vontade da polícia, mobilizar uma série de atores que muitas vezes não estão interessados que aquele ato saia. E no meio digital eu pego uma câmera e pronto. Sou eu e minha câmera, claro que tem os outros cuidados e conhecimentos, mas assim é muito mais fácil e consegue atingir um público muito maior. A pandemia foi uma oportunidade de comprovar isso, foi uma confirmação de que eu estava correta. É um curso que realmente vai me render muito. 

  • De que maneira as metas que você atingiu com o programa vão impactar nos grupos sociais/ instituições de mulheres negras que você faz parte?

Eu acho que já começou a impactar. Quando a gente começou a articular o livro, a gente conseguiu, através da mídia, chamar a atenção de outras mulheres do território. Uma coisa que eu acho muito legal porque hoje temos uma demanda maior de mulheres pelo menos com mais curiosidade, principalmente em cidades menores do interior. Outro impacto é a questão trans, essa discussão sobre as demandas LBT, que a gente ainda não estava nessa pegada, ainda não estávamos falando com as mulheres trans. Temos muito o que aprender com elas. É um dos impactos positivos que nós tivemos coletivamente.

  • Quais são seus planos e interesses para o futuro?

Então, finalizar a publicação do livro e colocar logo esse blog no ar. Eu estou saindo dessa experiência toda com a ideia de coletividade muito bem assentada na minha cabeça. Temos planos de começar a garimpar editais para publicar novos livros. Durante o tempo que estávamos rodando a organização do livro, surgiram outras ideias, outras demandas. Por exemplo, tivemos participação de outras mulheres que nesse formato do livro em artigo não seria possível, que são mulheres mais da zona rural. Então, temos de pensar como a gente poderia fazer, pensar que tipo de narrativas e escritas a gente pode passar a aproveitar para que essas mulheres também tenham visibilidade. Pensamos em fazer uma espécie de documentário com mulheres quilombolas, temos até o título: “Meu Quilombo Por Elas”. Seria um documentário em que as mulheres quilombolas falariam sobre os quilombos, a vivência do quilombo a partir das mulheres. Chegamos a submeter em alguns editais, mas ainda não conseguimos aprovação, talvez não tenha sido o momento mesmo. Mas, ideias a gente tem.  

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Primeira Infância no Contexto da Covid-19: As Histórias

Por Eliane de Santos

Diante da novidade catastrófica – a pandemia de Sars-CoV-2 anunciada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde – uma reação natural foi recolher-se num gesto de autopreservação e até mesmo de respeito para com a parcela da população que deveria seguir com as suas jornadas de serviços essenciais: jornalistas; profissionais da saúde, da segurança pública; comerciantes e comerciários do setor de alimentos e remédios, por exemplo.

Mas, em pleno isolamento domiciliar, um grupo de brasileiros não conseguiu acompanhar o mundo apenas pela janela de casa ou pela televisão. Eram profissionais de diversas áreas que desejavam encarar o inimigo invisível, e imprevisível, para apoiar famílias – de norte a sul do país – que desde sempre estiveram à margem da sociedade e, portanto, se encontravam mais vulneráveis do que nunca.

Se havia alguma dúvida sobre como e por onde começar esse apoio, ela acabou quando o Fundo Baobá para Equidade Racial anunciou o Edital para a Primeira Infância no Contexto da Covid-19, com doações emergenciais de R$ 5 mil para projetos que deveriam ser executados, preferencialmente, de forma remota e ressaltando os protocolos sanitários, a fim de não contribuir com a propagação do novo coronavírus nas comunidades assistidas. Um desafio lançado em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Porticus América Latina e Imaginable Futures.

A iniciativa mostrou-se um grande feito de transformação social, levando mais do que alimentos e itens de higiene ou limpeza para as famílias que tinham em seu núcleo crianças de 0 a 6 anos, ou seja, na fase mais de delicada e importante da formação do ser humano.

As propostas apresentadas e avaliadas por uma assessoria técnica ofereceram também o resgate da cidadania; amor, cuidado, acolhimento psicológico, bem-estar e informação, enquanto o que mais pairava no ar eram ameaças e dúvidas. Uma prova de que o Brasil é gigante: em extensão, sim, mas também em coragem e solidariedade.

Agora eu te convido a conhecer e, por que não, se inspirar com algumas dessas histórias.

 

Fundo Baobá encerra 2020 comemorando parcerias que apoiaram a busca pela equidade racial na sociedade brasileira

A criação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em 2011, foi alicerçada sobre três pilares: articulação social, mobilização de recursos e investimentos programáticos. Dentro do item “investimentos programáticos”, quatro balizamentos coordenaram nossas ações nesses quase dez anos de atividades de filantropia para a equidade racial: Viver com Dignidade, Educação, Desenvolvimento Econômico e Comunicação & Memória. Todas as ações estabelecidas foram construídas levando sempre em conta essas diretrizes.

Nenhuma jornada vitoriosa é constituída apenas de caminhos fáceis de serem percorridos. É preciso muita firmeza de propósitos, perseverança e alto poder de convencimento. Sem isso, não construímos alianças, não estabelecemos parcerias e não alcançamos o que preconiza nossa teoria de mudança: a população negra inserida e incluída de forma justa no desenvolvimento da sociedade brasileira.

Felizmente, estamos alcançando nossos principais objetivos. Mas ainda há muito a caminhar. A sociedade brasileira tem se tornado permeável em relação às questões de equidade de raça e gênero, como se espera de uma sociedade plural em relação a todas as diferenças.

Neste ano de 2021, que marca os 10 anos de fundação do Baobá, nossa busca não será diferente. Temos um leque de projetos  nos quais vamos trabalhar e que ajudarão ainda mais a consolidar o nome de nossa instituição como principal articuladora da promoção da equidade  para a população negra no Brasil. As novidades de 2021 você saberá ao longo do ano!

O que será destacado aqui é como foi 2020 para o Fundo Baobá. Um ano completamente atípico, conturbado pela pandemia do Coronavírus na esfera mundial – e que serviu para explicitar as desigualdades raciais em várias nações.

A luta contra o racismo eclodiu de forma positiva, ganhando repercussão e ações pelo mundo todo, até o Brasil. Estamos na esfera dos países de economia emergente, com potencial econômico para se tornar uma grande potência. Porém, nosso nível de desenvolvimento está na linha do mediano para baixo, marcado por uma abissal desigualdade social e um racismo incrustado nas relações sociais. Devemos baixar a cabeça? Não! Devemos lutar pela busca desse desenvolvimento, que trará crescimento econômico, equilíbrio socioambiental, paz, segurança, saúde e bem-estar para a população do país.

De forma evidente, o segmento da filantropia para equidade racial no Brasil sofreu impactos. Dos 207,8 milhões de pessoas no Brasil, 55,8% se descrevem como pardos, 9,3% como negros e 43,1% como brancos. Pretos e pardos formam a população negra. Todos os indicadores sociais – de educação, condições de vida, engajamento político, emprego e renda – refletem a desigualdade da sociedade brasileira e o papel nela desempenhado pelo racismo estrutural. Até recentemente, os esforços filantrópicos das organizações não negras da sociedade civil se limitavam a oferecer assistência, preservando ao mesmo tempo a posição social dos beneficiários. Não é, portanto, coincidência a  coexistência entre a filantropia mainstream e o racismo estrutural.

E, no intuito de melhorar as condições das pessoas negras  da sociedade brasileira, o Fundo Baobá atuou com determinação em 2020. Nossos parceiros de tempos, e outros que chegaram mais recentemente, têm nos ajudado na busca por consolidar nossos objetivos. São eles: WK Kellogg Foundation, Ford Foundation, Instituto Ibirapitanga, Open Society Foundations, Citi Foundation, J.P. Morgan, Fundação Lemann, Laudes Foundation, Porticus, Imaginable Futures, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, OAK Foundation, Instituto Unibanco, The Coca-Cola Foundation, Instituto Coca-Cola Brasil, BV Banco, Instituto Votorantim, Google, Wellspring Philanthropic Fund e Demarest Advogados. 

Esses parceiros apoiadores, além dos doadores individuais, têm nos propiciado investir em nosso fortalecimento institucional e realizar doações por meio de editais que, este ano, trataram de auxílio emergencial, educação, primeira infância e produção acadêmica para subsidiar a tomada de decisão.   Entre 2011 e 2020 o Baobá lançou 15 editais de apoio. Destes, cinco tiveram lançamento em 2020. Cerca de 450 beneficiários diretos e mais de 210 mil indiretos. Investimento de R$ 10,2 milhões. Com relação ao Programa Marielle Franco, em 2020 foram doados R$ 3.148.285,34.  São marcas significativas, mas sabemos que nosso potencial de trabalho pode nos levar a muito mais e vamos alcançar isso. 

 Abaixo, selecionamos alguns fatos que fizeram ao no de 2020 do Fundo Baobá: 

Em 14 de março ocorreu o aniversário de dois anos da morte de Marielle Franco, vereadora e socióloga, assassinada no Rio de Janeiro ao lado do motorista Anderson Gomes. O Fundo Baobá, que em 2019 havia lançado um edital em apoio a mulheres negras líderes e a organizações lideradas por mulheres negras, que, recebeu o nome de Marielle Franco,  fez seu posicionamento por intermédio de artigo assinado pela diretora executiva do Fundo, Selma Moreira,  no jornal O Globo. Veja artigo neste link: Precisamos proteger todas as Marielles

Abril de 2020 marcou o lançamento do edital Doações Emergenciais no Contexto da Pandemia da Covid-19, voltado para organizações sem fins lucrativos ou pessoas físicas negras, comprometidas com a equidade racial e engajadas na promoção de ações para a proteção de pessoas e comunidades, que apresentassem propostas de ações de prevenção ao coronavírus realizadas junto à população residente em comunidades periféricas e outros territórios de vulnerabilidade; população em situação de rua; população privada de liberdade; idosos;  jovens em cumprimento de medidas socioeducativas; populações residentes em áreas remotas de todas as regiões do país, comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas, ciganos, migrantes, refugiados, e outras comunidades tradicionais, nas florestas e ilhas, onde existissem casos notificados. A resposta ao edital foi imediata e em menos de 15 dias mais de 1.000 candidaturas foram feitas visando o apoio financeiro. Esse edital atingiu o que determina o propósito de criação do Fundo Baobá: contribuir para o enfrentamento ao racismo promovendo justiça e equidade racial para a população negra, a mais atingida pela pandemia.

Movimento Mulheres da Parada de São Gonçalo (RJ) foi uma das apoiadas do edital Doações Emergenciais

O edital em parceria com o Desabafo Social também aconteceu em abril. A objetivação foi  apoiar ideias e projetos com foco em pessoas em situação de risco em São Paulo e no Rio de Janeiro – iniciativa que, posteriormente, foi ampliada para todo o país.  Na primeira fase, 64 projetos de homens e mulheres de 15 a 35 anos foram selecionados. Na segunda fase, estendida para todo Brasil, 86 projetos foram incentivados, perfazendo 150 no total. O montante  investido no Desabafo Social foi R$ 30 mil e cada ideia foi contemplada com valores que variaram de R$ 60 a R$ 350.

Projeto da Andreza Delgado, apoiado pelo edital em parceria com Fundo Baobá e Desabafo Social 

Também em abril, o Fundo Baobá apoiou a coalizão  Éditodos, que  criou o Programa de Emergências Econômicas para apoio a Empreendedores(as) das Comunidades, Favelas e Periferias. Coube ao Baobá gerenciar os recursos e fazer com que esses chegassem até a ponta. Além de atuar como fundo de captação de recursos no Brasil e fora dele visando o investimento em organizações e lideranças negras, o Baobá também atua como parceiro fiscal e operador para outras organizações negras que têm por objetivo implementar ações de filantropia.

O 1o de maio marca o Dia Internacional do Trabalho. O Fundo Baobá esteve na mídia em entrevista da diretora executiva Selma Moreira sobre financiamento de projetos de prevenção à Covid 19 entre negros, pobres e indígenas: Fundo Baobá financia projetos de combate à Covid-19 para negros, pobres e indígenas 

Também em maio, no dia 25,  ocorreu nos Estados Unidos a morte de George Floyd. Ele foi asfixiado por um policial. O fato teve repercussão mundial e iniciou uma série de protestos em território norte-americano e em todo mundo. Floyd virou símbolo da luta antirracismo. No Brasil, o portal UOL publicou o posicionamento do Fundo Baobá sobre essa questão em entrevista concedida pela diretora executiva Selma Moreira. Veja aqui a íntegra da entrevista: Qual o Reflexo da Filantropia na Equidade Racial?

No início de julho, com o Brasil sofrendo severamente com a Covid-19 e chegando à marca de quase 33 mil mortes,  foi lançado o edital  Primeira Infância no Contexto da Pandemia da Covid-19, com foco em famílias com crianças de 0 a 6 anos – um grupo que até então estava recebendo pouquíssima atenção no contexto da pandemia. Seu objetivo foi explícito: selecionar iniciativas de apoio a famílias que tivessem em seu núcleo crianças de 0 a 6 anos, mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz ou homens responsáveis e corresponsáveis pelo cuidado de crianças. A parceria do Baobá foi com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e a Imaginable Futures. As iniciativas estão sendo implementadas e, em breve, pretendemos compartilhar resultados, boas práticas e lições aprendidas. 

Em julho, foi lançado o edital para o programa  Já É: Educação e Equidade Racial. . O parceiro na iniciativa foi a Citi Foundation, braço do Citi Group para investimentos sociais. O objetivo: oferecer condições favoráveis para que 100 jovens negres da cidade de São Paulo e região metropolitana conseguissem vencer as dificuldades que impedem o acesso ao ensino superior.  As aulas começam em março de 2021.

Difusão do conhecimento e divulgação de artigos que contribuíssem para melhorar ações de filantropia para a equidade racial no Brasil pós-pandemia foi a tônica do edital para Produção de Artigos Acadêmicos, lançado em agosto. A parceira nessa iniciativa do Fundo Baobá foi a Fundação Ford. A proposta do edital era selecionar 20 artigos que serão reunidos em uma publicação bilíngue a ser lançada no primeiro semestre de 2021.

Dois importantes eventos de parceiros do Fundo Baobá agitaram o calendário do mês de outubro: a Live do Citi sobre Promoção da Equidade Racial para a População Negra no Brasil e o Webinário Investimentos Filantrópicos para a Promoção da Equidade Racial, feito pelo  JP Morgan.  O Webinário discutiu se houve ou não progresso rumo à justiça racial na filantropia brasileira. Além disso, discutiu também como ampliar a incidência de investimentos sociais privados em organizações, grupos e coletivos negros.

Em novembro, um importante evento internacional, o Moving Forward Rebuilding a More Just and Equitable Educational Future – Wise,   discutiu a questão do acesso à Educação. A diretora executiva do Baobá, Selma Moreira, falou para o público de países no exterior, sobre essa dificuldade de acesso enfrentada pela jovem população negra brasileira. Em sua fala, Selma Moreira chamou a atenção para o fato de que há um conceito enraizado na cabeça de muita gente na sociedade brasileira de que o elemento negro, independentemente de sua idade ou sexo, é inferior. “O fato de não terem acesso ao estudo, principalmente em seus níveis superiores, poderá ocasionar o não acesso aos melhores postos de emprego, talvez não consigam reunir condições de criar e administrar o seu próprio negócio e, em inúmeros casos, sequer terão moradia e meios de sobrevivência”. 

Selma Moreira participa do Moving Forward Rebuilding a More Just and Equitable Educational Future – Wise 

Grandes marcas se reuniram para apoiar o edital Programa de Recuperação Econômica de Pequenos Negócios de Empreendedores(as) Negros(as), que o Fundo Baobá lançou. Essas marcas foram o Instituto Coca-Cola Brasil, Banco BV e Instituto Votorantim. Juntos, eles apoiarão pequenos empreendimentos liderados por pessoas negras em comunidades periféricas ou territórios em contexto de vulnerabilidade socioeconômica no Brasil. Ao todo, serão investidos mais de R$ 1,6 milhão.

Fundo Baobá - Edital Recuperação Econômica de pequenos negócios de Empreendedores(as) Negros(as)

O Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, foi a data escolhida para que fosse anunciado o apoio do Google ao Fundo Baobá. A ação conjunta visa contribuir para a promoção da equidade racial no Brasil,  viabilizando projetos focados no avanço da justiça racial e combate à violência contra a população negra. O Google fará uma doação de US$ 400 mil, mais de R$ 2,1 milhões. Infelizmente, na mesma data, o Fundo Baobá e todo o Brasil tomaram conhecimento de que, em Porto Alegre, no interior de uma loja do grupo Carrefour, foi morto por espancamento João Alberto, um cidadão negro brasileiro. João foi morto por seguranças da loja. Esse triste acontecimento lembra a todos nós a importância de ações de enfrentamento ao racismo e promoção da equidade racial para garantir a construção de sociedades democráticas, justas e inclusivas. E reforça nosso compromisso com o trabalho que vamos desenvolver na próxima década, começando agora, em 2021.

Feliz Ano Novo!

Webinário Filantropia e Justiça Racial discutiu em outubro investimentos por equidade racial e de gênero dentro das empresas

Em um país como o Brasil, cuja maioria da população é predominantemente negra (56%), como incutir nas diretrizes sócio-empresariais que é fundamental investir na diversidade? O tema diversidade atualmente deveria ser encarado como questão de avanço e sobrevivência para qualquer instituição, em qualquer segmento, que queira de fato promover ações que contribuam para a equidade e a erradicação de uma das piores doenças sociais: o racismo. 

Alguns estudos acadêmicos evidenciam que empresas que têm a diversidade como valor atingem graus de desenvolvimento de seus negócios em nível maior que aquelas que não a valorizam. O que determina isso? As diferentes trocas de experiências entre as pessoas.  Visões diversificadas levam a um número maior de possibilidades de desenvolvimento de  uma ideia ou um produto. O que determina esse maior leque de opções são as diferentes vivências dos funcionários. Onde existe a homogeneidade existe também a limitação. Diferenças contribuem para o aprimoramento. 

Para discutir a questão da diversidade dentro das empresas e o trabalho da filantropia voltada ao combate ao racismo e à equidade racial, aconteceu em outubro o webinário Filantropia e Justiça Racial, promovido  pelo JP Morgan em parceria com o Fundo Baobá para Equidade Racial. Nele, importantes agentes da filantropia, da educação e do combate fizeram suas palestras em mesas que trouxeram muitos fatos e esclarecimentos sobre importantes questões na busca por uma sociedade justa e igualitária. Juntamos aqui falas importantes de Fabio Alperovitch e de Tricia Calmon. 

Fabio Alperovitch, da Fama Investimentos, administrador de empresas formado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), com cursos de extensão na Universidade da Califórnia (Berkeley) e na Harvard Kennedy School -profissional que atua na captação de recursos financeiros para empresas- enxerga  uma certa dificuldade de muitas delas em levar a temática da diversidade, equidade e combate ao racismo para dentro de seus muros. “Além de procurar diversidade de gênero, procuramos diversidade racial, diversidade de identidade de gênero e orientação sexual. Para a grande maioria das empresas, se conectar com esses grupos diversos e fazer com que se sintam parte integrante da empresa, eliminando vieses muitas vezes inconscientes, representa um desafio”, afirma.

Fabio Alperovitch, da Fama Investimentos, administrador de empresas

Para Tricia Calmon, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça, também pela  Universidade Federal da Bahia, além de membro do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá para Equidade Racial, a dificuldade empresarial em lidar com questões de raça e gênero está nas bases em que a sociedade brasileira foi alicerçada, por isso nem sempre os investimentos convertidos em ações filantrópicas ganham sentido efetivamente transformador.  “A falta de intencionalidade e de compreensão sobre a natureza do racismo colocou boa parte da filantropia brasileira na armadilha de pensar em promover a almejada justiça social sem mexer nas bases escravagistas nas quais está assentada a sociedade. Parte da elite brasileira se orgulha dessa herança e se ressente das mínimas fissuras ocorridas nesse pacto de silêncio e morte nos últimos anos”, diz. 

Trabalhar com filantropia no Brasil requer muito foco em fazer com que estruturas opressoras sejam abaladas. “Com a pandemia do novo coronavírus, que escancarou as desigualdades sociorraciais, e com o fenômeno da violência policial iconizado no caso George Floyd,  estamos diante da oportunidade de atualizar o debate no campo da filantropia. Não se trata de fenômenos novos, mas estamos em um novo momento. É hora de decidir por um projeto de sociedade sustentável e inclusivo que descolonialize os pensamentos e imagine o Brasil do presente e do futuro como um país viável para todas as pessoas. Sem isso,  seguiremos assistindo a elites que almejam ganhar dinheiro no Brasil e constituir suas vidas fora do país. Neste cenário de nada importa  o  fortalecimento da sociedade brasileira como um todo”, afirma Tricia Calmon. 

Tricia Calmon, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça, também pela Universidade Federal da Bahia

Para Fabio Alperovitch, que reforça a opinião de Tricia Calmon, a questão do investimento em diversidade dentro das empresas tem impacto positivo direto na economia brasileira. “Acredito que as empresas que têm projetos de diversidade e inclusão têm um impacto muito forte não só nas comunidades onde elas operam, mas na economia brasileira como um todo. A nossa história tem um legado de discriminação racial muito forte que ainda é muito presente no dia a dia do país. No Brasil, conforme dados do IBGE de 2018, mais da metade da população brasileira se declara como preta ou parda. No entanto, a sua representatividade no mercado de trabalho e em cargos de liderança é extremamente baixa. Ao termos uma empresa investida preocupada com esse tema e com metas específicas a serem atingidas, avançamos, mesmo que pouco, na redução dessa desigualdade”, afirma Alperovitch. 

Tricia Calmon reforça que investimentos sociais privados ou filantropia empresarial devem  ser muito bem balizados e focados nas necessidades das comunidades para as quais são destinados. Dessa intenção foi que surgiu o Fundo Baobá. “O programa para equidade racial da Fundação Kellogg,  gestado desde 2008, resultou no que hoje é o primeiro e maior fundo para financiamento de ações para o enfrentamento ao racismo: o Fundo Baobá. As desigualdades regionais precisam ser consideradas e não se deve descansar enquanto os investimentos não chegarem em boa proporção às regiões mais empobrecidas, como é o caso do Norte e Nordeste brasileiros”, finalizou.

Promovendo a equidade racial em território nacional, Fundo Baobá lança seis editais em 2020

Em um ano tão desafiador como 2020, o Fundo Baobá se fez presente em território nacional,  captando recursos dentro e fora do país para apoiar iniciativas de organizações e lideranças por meio de seis editais. Os investimentos estavam diretamente relacionados às prioridades programáticas: viver com dignidade, educação, desenvolvimento econômico. 

Em um balanço preliminar, no contexto da pandemia da COVID19 foram investidos mais de R$ 1.180 mihão, que beneficiaram, direta ou indiretamente, 421 indivíduos e 135 organizações. Paralelamente, foram mantidos os investimentos no desenvolvimento de lideranças femininas negras, em um programa que leva o nome da vereadora assassinada Marielle Franco, que totalizaram R$ 4,2 milhões em 2020. 

Abaixo, relembramos quais foram os editais lançados em 2020, além do total investido, número de inscritos, os principais parceiros e número de selecionados.

1 – Edital Apoio Emergencial para Ações de Prevenção ao Coronavírus

Data de lançamento:
5 de abril
Instituições Financiadoras: Fundo Baobá para Equidade Racial e Fundação Ford
Período de implementação: maio a julho de 2020.
Total investido: R$ 870 mil
Público apoiado: Comunidades vulneráveis, mulheres, população negra, idosos, povos originários e comunidades tradicionais
Inscritos: 1.037
Selecionados: 350 projetos (215 de indivíduos e 135 de organizações)
Distribuição geográfica: Para todo o Brasil

Dentro do contexto da pandemia do novo coronavírus, foi lançado o edital de Doações Emergenciais de até R$ 2,5 mil para ações de prevenção em comunidades periféricas, de difícil acesso e populações vulneráveis.   

2 – Qual a sua ideia para ajudar pessoas em situação de risco? – Fundo Baobá e Desabafo Social
Data de lançamento: 15 de abril
Período de implementação: maio e junho de 2020.
Total investido: R$ 30 mil
Parceiro Implementador: Desabafo Social
Público apoiado: Homens e mulheres de 15 a 35 anos de idade
Selecionados: 150
Distribuição geográfica: A primeira fase do edital apoiou 64 projetos (31 no Rio de Janeiro e 33 em São Paulo) A segunda fase apoiou 86 projetos Salvador (BA), Recife (PE), Olinda (PE), Belo Horizonte (MG), Feira de Santana (BA), Belém (PA), Brasília (DF), Cachoeira (BA), São Luís (MA), Boa Vista (RR) e Laguna (SC), além de regiões no interior do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Ceará.

O edital apoiou ideias e projetos com foco em pessoas em situação de risco em São Paulo e no Rio de Janeiro – iniciativa que, posteriormente, foi ampliada para todo o país.
As pessoas interessadas apresentaram suas ideias respondendo a um desafio dentro da plataforma ItsNoon. A curadoria foi realizada pelo Desabafo Social e as pessoas selecionadas  receberam entre R$60 até R$350 por sua  boa ideia.

3 – Doações Emergenciais – Edital Para Primeira Infância do Contexto da pandemia da Covid-19
Data de lançamento: 6 de julho
Instituições financiadoras: Imaginable Futures, Porticus e Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal
Total investido: R$ 280 mil (R$ 5 mil por iniciativa)
Inscritos: 200
Selecionados: 56 profissionais de saúde, educação e serviço social cujas iniciativas estavam voltadas para apoiar famílias que, em seu núcleo, tivessem crianças de 0 a 6 anos, mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz.
Distribuição geográfica: Para todo o Brasil 

O Fundo Baobá lançou o edital com o objetivo de selecionar iniciativas de apoio a famílias que, em seu núcleo, tenham: crianças de 0 a 6 anos, mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz, homens responsáveis e corresponsáveis pelo cuidado de crianças de 0 a 6 anos.  

 

4 – Já É: Educação para Equidade Racial
Data de lançamento: 10 de julho
Período de implementação: 2021 – 2022
Instituições Financiadoras: Citi Foundation e Demarest Advogados (parceria firmada em dezembro de 2020)
Total a ser investido: R$ 972.683 mil
Público apoiado: Jovens mães, homens, trans de 17 a 25 anos que concluiu ou vai concluir o ensino médio em 2021.
Inscritos: 245
Selecionados: 100
Distribuição geográfica: Cidade de São Paulo e Região Metropolitana

Lançado para apoiar jovens negros, residentes em bairros periféricos de São Paulo e outros municípios da região metropolitana, a acessarem o ensino de nível superior. O Programa Já É inclui não só os custos dos estudos em cursinho preparatório para o vestibular e as despesas com transporte e alimentação ao longo do programa. Ele prevê também atividades voltadas para o enfrentamento dos efeitos psicossociais do racismo e para a ampliação das habilidades socioemocionais e vocacionais e ainda mentoria com profissionais de diferentes formações acadêmicas, experiências profissionais e de vida.

5 – Chamada Para Artigos – Filantropia para Promoção da Equidade Racial no Brasil no Contexto Pós-pandemia da Covid-19
Data de lançamento: 6 de agosto
Período de implementação: dezembro de 2020 – abril 2021 Instituição Financiadora: Ford Foundation
Total investido: R$ 50 mil (20 artigos,  R$ 2,5 mil cada)
Público apoiado: Pesquisadores(as) negr(as)
Inscritos:  79
Seleção em curso
Distribuição geográfica: Para todo Brasil

O Fundo Baobá lançou uma chamada para artigos inéditos que contribuam para aprimorar a ação de filantropia para equidade racial no Brasil pós-pandemia da Covid-19 com o objetivo de selecionar até 20 trabalhos. Seus autores vão receber verba de apoio no valor de R$ 2,5 mil cada. Em 2021, ano em que o Fundo Baobá para Equidade Racial completa 10 anos de fundação, uma edição eletrônica bilíngue (português-inglês) de um livro com os artigos será publicada.

6 – Programa de Recuperação Econômica de Pequenos Negócios de Empreendedores(as) Negros(as)
Data de lançamento: 11 de novembro de 2020
Período de implementação: março a julho de 2021
Instituições Financiadoras: Instituto Coca-Cola Brasil, Instituto Votorantim e Banco BV
Total investido: R$ 1,6 milhão
Público apoiado: Empreendedores(as) negros(as) cujos negócios estão localizados em comunidades periféricas ou territórios em contexto de vulnerabilidade socioeconômica
Inscritos: 700
Seleção em curso
Distribuição geográfica: Para todo Brasil, com ênfase nas regiões Norte e Nordeste

o Programa de Recuperação Econômica de Pequenos Negócios de Empreendedores(as) Negros(as), vai apoiar 47 negócios que precisem de um aporte financeiro para melhor se desenvolver. Esses negócios têm que ser comandados por pessoas (homens e mulheres) negras que toquem os seus negócios em comunidades periféricas ou territórios em contexto de vulnerabilidade socioeconômica. Cada iniciativa selecionada, contendo 3 negócios,  receberá R$30 mil (dez mil por negócio).

#TBlack 2020 – Os principais acontecimentos da população negra no Brasil e no Mundo

2020: o ano que ficou marcado pela maior pandemia mundial dos últimos anos, também será lembrado pela luta por justiça e equidade racial. O caso George Floyd nos Estados Unidos inflamou uma série de protestos ao redor do mundo, inclusive no Brasil, com os brados de Vidas Negras Importam. A violência contra corpos negros também se fez presente em nosso país ao longo do ano passado, sendo inclusive maior do que nos Estados Unidos. Um relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, e apresentado em 2020 mostra que os negros representam 75% dos mortos pela polícia.

Seguindo o conceito do #TBT das redes sociais, de relembrar algum acontecimento importante, em união com a palavra Black, evocada com afinco pelo movimento negro, ao redor do mundo, relembramos nessa matéria, os fatos mais impactantes para a comunidade negra no ano de 2020.

Marielle sempre Presente

No dia 14 de março, completou-se dois anos da morte da vereadora Marielle Franco. Em 2019, o Fundo Baobá para Equidade Racial lançou o edital “Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco”, em parceria com a Fundação Kellogg, Instituto Ibirapitanga, Fundação Ford e Open Society Foundations. A premissa do programa é fomentar e incentivar a participação feminina negra em espaços de tomadas de decisão. Em virtude dos dois anos sem Marielle, a diretora de programa do Fundo Baobá, participou do programa Bom Para Todos da TVT, falando sobre o projeto e também de como a comunidade negra poderia se reorganizar e atuar para fortalecer a liderança de mulheres negras de todo o país na luta por equidade racial.. A diretora-executiva Selma Moreira escreveu para o jornal O Globo, o artigo Precisamos Proteger Todas as Marielles, e as apoiadas do edital individual do Programa de Aceleração escreveram uma carta aberta pedindo providências para a solução do assassinato de Marielle Franco.

A pandemia tem cor

No dia 11 de março, a OMS (Organização Mundial da Saúde) decretou a pandemia do novo Coronavírus e, a partir do dia 14, os estados brasileiros começaram a decretar isolamento social. Em maio, um estudo do NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde) da PUC-RJ, revelou que as pessoas negras em condições vulneráveis, estavam mais expostas ao vírus do que uma pessoa não negra. Naquele momento, dos  8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%. Em São Paulo, um estudo da Rede Nossa São Paulo, também apontou os negros como sendo os mais atingidos pela pandemia. Os três bairros com o maior número de mortes por covid-19 em São Paulo – Capão Redondo, Jardim Ângela e Grajaú – estavam também entre os oito distritos com maior proporção de população preta e parda na cidade.

Foi antevendo esse contexto que, em 05 de abril, o Fundo Baobá para Equidade Racial lançou o edital Doações Emergenciais, voltado para pessoas e organizações que estavam na linha de frente auxiliando populações vulneráveis.

“Não, eles não estão”

A política de extermínio de jovens negros e periféricos, seguiu atuante no país em 2020. No dia 18 de maio, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, João Pedro Matos, 14 anos, foi morto dentro de sua casa e levado pelo helicóptero da polícia, deixando os seus pais em profundo desespero. Dois dias depois, foi a vez de João Victor Rocha, 18 anos, ser baleado durante um tiroteio, no momento em que estava próximo a uma ação solidária de entrega de cestas básicas na Cidade de Deus (RJ). Na ocasião chamamos a atenção para os dois casos , relembramos os dois casos em nossas redes sociais.

Na edição de maio do nosso boletim mensal, a jornalista Maíra de Deus Brito, e também autora do livro, “Não. Ele não está”, que denuncia a mortalidade da juventude negra no Brasil, abordou o tema em uma entrevista ao lado do doutor em direito e sociedade, conflito e movimentos sociais, Felipe Freitas, que também é membro do Conselho Deliberativo do Baobá. Confira as entrevistas aqui

Investimentos em iniciativas que contribuam para promover a dignidade e a justiça, reduzir a violência contra jovens e população negra em geral, apoiar as famílias vitimadas, são prioridades para o Fundo Baobá.

Vidas Negras Importam

No dia 25 de maio morria o homem, mas nascia mais um  símbolo da luta antirracista no ano de 2020. O norte americano George Floyd foi assassinado após uma abordagem policial em Mineápolis, e a sua morte gerou uma série de protestos ao redor do mundo, inclusive no Brasil, como o ocorrido no Largo da Batata (SP) no dia 7 de junho.

Veículos de imprensa aproveitaram a oportunidade para traçar um paralelo com a morte de George Floyd e a importância do enfrentamento ao racismo e da promoção da equidade racial, sendo assim, a diretora-executiva Selma Moreira foi convidada para falar sobre o tema em entrevistas para a Capital Aberto e para o Portal UOL.

Wakanda Forever 

O mundo se despediu precocemente do ator norte americano Chadwick Boseman, aos 43 anos de idade, no dia 28 de agosto. Intérprete no cinema do Pantera Negra, herói das histórias em quadrinhos, encarnando o  rei de Wakanda, uma nação tecnológica fictícia, localizada no continente africano, Chadwick Boseman fez história mostrando a importância da representatividade negra no cinema.

O filme teve uma das maiores arrecadações da história, ocupando a 12ª posição das 100 maiores bilheterias mundiais, com um total de US$1.349 bilhão. A morte do ator foi lembrada em nossas redes sociais.

Beto Freitas, Presente

Na véspera do dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, foi assassinado por seguranças da Rede Carrefour na cidade de Porto Alegre. O ato covarde e impetrado por um viés racista explícito, foi repudiado com veemência  por inúmeros coletivos e movimentos sociais, algumas autoridades, artistas e outras pessoas defensoras dos direitos para todos os humanos,  fosse nas redes sociais ou nas ruas, em  diversas passeatas e protestos foram realizados ao longo dos dias, por todo país, ressaltando que Vidas Negras Importam.

Diante do fato, o Fundo Baobá se manifestou com uma nota oficial, divulgada para imprensa e também em suas redes sociais e publicada na íntegra no site oficial. No dia 24, o presidente do conselho deliberativo da organização, Giovanni Harvey, também deu uma declaração sobre o tema para o Jornal Folha de São Paulo.

110 Anos da Revolta da Chibata

No dia 22 de novembro celebramos os 110 da Revolta da Chibata, o grande acontecimento histórico que passa completamente despercebido em nosso país, mas que celebra a luta e resistência do povo negro. No dia 22 de novembro de 1910 o marinheiro João Cândido liderou uma revolta dentro do navio Minas Gerais, em protesto pelo castigo que o seu amigo, e também marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi condenado: 250 chibatadas, uma quantidade que o levaria à morte. Com 2 mil marinheiros comandando os principais navios de guerra da esquadra e com os canhões apontados para o Rio de Janeiro, a capital do país, eles exigiam o fim dos castigos corporais na Marinha.

O acontecimento foi celebrado em nossas redes sociais.

2020 foi um ano desafiador e que lamentamos e sofremos pelas mortes dos nossos semelhantes, seja pela pandemia do novo coronavírus, como pela operação do racismo institucional. Como sempre, a dor virou luta e incentivo para a promoção da equidade racial como o principal meio para alcançar a justiça social. A movimentação do setor filantrópico mundial e nacional em torno do tema equidade racial após esses trágicos acontecimentos, trouxe um olhar mais atento para esse campo de atuação, justamente o lugar onde o Fundo Baobá opera e continuará operando.

Equidade Racial foi tema do 11º Congresso GIFE

No dia 2 de dezembro, o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) promoveu de forma virtual o seu 11o Congresso. Reunindo as associações que promovem ações de investimento social no Brasil, o tema do evento foi “Investimento para a Equidade Racial”.

Entre os palestrantes, estava a diretora executiva do Fundo Baobá para Equidade Racial, Selma Moreira. Além de Selma, participaram da roda expositiva Allyne Andrade, superintendente adjunta do Fundo Brasil de Direitos Humanos; Daniel Teixeira, diretor de projetos do Ceert (Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades);  Helio Santos, diretor-presidente do IBD (Instituto Brasileiro da Diversidade); Marcia Lima, coordenadora do Afro-Cebrap (Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento); Marcus Casaes, da Associação de Jovens Empreendedores da Bahia; Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto; Sheila de Carvalho, da Uneafro e do Instituto Referência Negra Peregrum e  Thiago Amparo, professor da FGV Direito. A mediação coube a Adriana Barbosa, CEO do Instituto Feira Preta.

11º Congresso GIFE

 O congresso contou com três mesas de exposição e a pergunta era única: “Quais são os desafios colocados para o fim do racismo e pela busca por equidade racial em todas as esferas da sociedade brasileira?” 

A diretora executiva do Fundo Baobá, Selma Moreira, foi ao ponto: “Falta vontade efetiva de transformação da parte de todos os entes da nossa sociedade. Em todas as esferas da sociedade: pública, privada e acadêmica. O Movimento Negro está, há muito tempo, apontando caminhos e soluções; indicando como se deve direcionar os investimentos, processos de gestão e, ainda assim, a gente vive fazendo a mesma pergunta. Será que é por falta de resposta ou é por falta efetiva de ação? Temos uma sociedade formada de múltiplas camadas. Esse é um ponto fundamental para dialogar com essa temática.”

Complementando seu raciocínio, Selma Moreira, fez uma análise sobre o que ocorre no mundo corporativo: “Enquanto não tivermos conselhos de empresas e executivos com esse mandato, o de atuar para a promoção da equidade racial, vamos seguir trabalhando de uma maneira muito singela no que se refere à promoção da equidade racial no País”.

Helio Santos, dialogando com o pensamento de Selma Moreira, colocou o dedo na ferida. “Temos que compreender que a sociedade brasileira é doente. A equidade racial é a terapia regeneradora que nossa sociedade não tem. Temos que pensar políticas que acabem com essa sangria dos jovens negros. Nessas três horas de congresso, seis jovens negros morrerão”, disse o ex-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá e atual presidente do IBD (Instituto Brasileiro da Diversidade). 

A questão da invisibilidade que foi imposta à população negra desde a escravidão e que vem permeando a história da formação da sociedade brasileira foi o foco da fala de Sheila de Carvalho, da Uneafro e do Instituto Referência Negra Peregrum. Para ela, as dificuldades atuais têm que ser vencidas pelo diálogo e pelo posicionamento. “Fomos privados do diálogo e da construção de políticas públicas. Por mais que tenhamos um espaço maior agora, ainda há dificuldade de enxergar, de dialogar e dificuldade de trazer essas organizações e movimentos para a mesa dos debates. O racismo só vai ser combatido com ações práticas”, afirmou. 

Reafirmando que as entidades que já lutam contra o racismo e as que pretendem se engajar nessa luta devem começar promovendo mudanças em suas próprias estruturas, o professor Thiago Amparo, da FGV Direito, denuncia que o básico para a mudança da realidade do racismo no Brasil está sendo mal feito. “Trazer mais pessoas negras para as mesas de discussão é o básico do básico em um país que tem mais de 50% de população negra. Precisamos quebrar as fragilidades da branquitude sobre a questão racial. Muitas vezes os brancos vêm para um diálogo para escutar, escutar e escutar. Mas o momento é de mover estruturas. Mover estruturas que os próprios brancos criaram”, disse. 

Abaixo o link da íntegra do 11o Congresso GIFE, disponível no Youtube: